Emil Nolde, Noite de Outono, 1924
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Chamaram-lhe
a Belle Époque. Na sua autobiografia Die Welt von Gestern, Stefan Zweig deu a
esses “gute alte Zeiten” o nome de
Idade de Ouro da Segurança. Parecia um tempo sem ameaças, prometedor e
auspicioso. As forças extremistas, como os perigosos anarquistas da segunda
metade do século XIX, estavam, dizia-se, controlados. O clima das grandes
capitais europeias aparentava privilegiar sentimentos internacionalistas e
europeístas. Os símbolos dessa época eram a cosmopolita Paris e a multicultural
Áustria-Hungria.
Quando
a guerra chegou, pondo fim a uma época áurea, emergiu de imediato a necessidade
visceral de culpar a outra parte. Que melhor maneira de o fazer do que recorrer
à elaboração culta que revisita a antiguidade e demonstra a superioridade moral
e cultural sobre aqueles que, subitamente, descobrimos como bárbaros? Era o
tempo do amador dotado, do gentleman poet
estudioso do grego e do latim, frequentador das páginas dos quotidianos
ingleses onde as suas versalhadas eram acolhidas com deleite jingoísta. Para os
críticos posteriores, nunca a poesia britânica estivera tão em baixo. Mas os
sentimentos eram puros e incentivadores do espírito guerreiro de uma nação em
armas. A guerra como salvação espiritual e força regeneradora inspirava os
poetas de sofá.
Em
Agosto de 1914 assistiu-se a uma inaudita manifestação de sentimentos
patrióticos em verso. O The Times
calcula que nesse mês recebeu para publicação cerca de cem poemas por dia.
Todos os jornais, nacionais e locais, testemunharam o mesmo impulso versejador.
A pouco e pouco, começaram a chegar os poemas da frente de batalha. O vate mais
famoso, nesta primeira fase, foi Rupert Brooke. Tinha passado vagamente pelo Bloomsbury Group, onde parece ter sido
apreciado mais pela beleza física. Integrou outros grupos literários, como os Georgian Poets e os Dymock Poets, mas ficou na memória como poeta da guerra. E como
poeta morto.
Assinou
um poema famoso, “The Soldier”,
escrito em 1914, no fulgor do início de uma grande aventura:
“If
I should die, think only this of me;
That
there's some corner of a foreign field
That
is for ever England.”
E
morreu em 1915, a caminho de Galipoli, doente com blood poisoning, ou seja, septicemia, num navio hospital francês.
Winston Churchill celebrou pressurosamente a sua memória, criando o mito. Em 26
de abril de 1915, publicou-lhe o obituário no The Times, num registo épico, que dava a entender que morrera em
combate:
“He expected to die; he was willing to die for the dear England whose
beauty and majesty he knew; and he advanced towards the brink in perfect
serenity, with absolute conviction of the rightness of his country´s cause and
a heart devoid of hate for fellow-men.”
Julian Grenfell
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Julian
Grenfell também ficou famoso por um único poema. E por ter proferido estas
palavras eufóricas: “I adore war. It´s
like a big picnic. I
have never been more well or more happy.”
Quando
se ouvem palavras como estas, ditas por um soldado, pensa-se em alguém ingénuo
e entusiasta, que ainda não experimentou a verdadeira guerra. Mas Grenfell não
era assim. Viveu confrontado com a miséria humana, com o sangue e a lama. E
adorou. Grenfell era efectivamente um guerreiro que amava a excitação da
batalha e da morte, da alheia e da própria. Adorava ser sniper e sentir a excitação da caçada: a espera, a deteção do alvo,
o disparo, a queda de um corpo atingido. E filosofava nos seus cadernos. Para
ele, matar significava por em contacto o que os homens têm de mais bárbaro com
as forças fundamentais da natureza. Visar um inimigo tinha algo de sensual e visceralmente humano: “One
loves one´s fellow man so much more when one is bent on killing him.”
Tinha
um caderninho onde anotava os seus feitos: “November
16th: 1 Pomeranian; November 17th: 2 Pomeranians”. E assim por diante. Até
que foi apanhado por um estilhaço.
No
dia a seguir à sua morte, 26 de Maio de 1915, o The Times publicou “Into the
Battle” de Julian Grenfell. Este poema é o motivo por que ainda se fala
dele:
“And life is Colour and Warmth and Light,
And a
striving evermore for these;
And he
is dead who will not fight;
And who
dies fighting has increase.”
Esta
exaltação da vitalidade do combate foi depois rejeitada. Quando John Silkin
incluiu este poema no Penguin Book of
First World War Poetry sentiu o dever de frisar que abominava aqueles
sentimentos. Não obstante, são sentimentos que ainda tocam uma corda que vibra
no coração de muitos seres humanos.
Julian
Grenfell era um sniper na primeira
guerra em que o sniping foi elevado a
uma especialidade da maior importância. Outros poetas da guerra foram mortos
por snipers. Edward Tennant em 22 de
Setembro de 1916. Arthur West em 3 de Abril de 1917. Charles Sorley em 29 de Agosto
de 1918. Contudo, a mais eloquente de todas as vítimas dos snipers não foi um poeta, mas um novelista, um mestre da short story macabra. Foi ele H. H.
Munro, atingido em 14 de novembro de 1916, depois de se ter abrigado com alguns
camaradas na cratera aberta por uma granada e de ter proferido as imortais
palavras: “− Apaga a merda do cigarro!”
Wilfred Owen
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O
melhor de todos eles, o melhor dos poetas da guerra, um dos grandes poetas de
língua inglesa do século XX, Wilfred Owen, também foi atingido por um único
tiro, em novembro de 1918, sete dias antes do armistício.
A
certo ponto, a linguagem divorciou-se dos acontecimentos e dos sentimentos. A
linguagem dos políticos e dos jornalistas. E também a linguagem dos poetas.
Impunha-se encontrar novas palavras e novas formas. Os jornais ingleses
começaram então a dar lugar a alguns novos autores, como Siegfrid Sassoon, que
descreviam com realismo o horror da guerra. Apesar de algumas reações
negativas, após três anos de guerra o público inglês já estava pronto para os
aceitar. O próprio Winston Churchill, então Ministro das Munições, não avaliou
os poemas de Sassoon como propaganda pacifista e antipatriótica. Admirou-os,
apesar de tudo, porque davam conta aos ingleses do sofrimento das suas tropas
na frente. E, como bem o demonstrou na guerra seguinte, Churchill sentia o
dever de transmitir aos cidadãos de uma pátria livre em guerra as verdades mais
difíceis de aceitar.
Não
sabemos o que Churchill pensou da poesia de Wilfred Owen. Na verdade, apenas um
dos seus poemas foi publicado durante a guerra, em The Nation, no ano de 1917. Depois, o seu amigo Sassoon, para
sempre marcado pelo escrúpulo de não o ter convencido a ficar em Inglaterra
quando Owen aí esteve em tratamento até Agosto de 1918, tudo fez para promover
a sua poesia.
Um
dos mais conhecidos poemas é “Anthem For
Doomed Youth”:
“What passing-bells for
these who die as cattle?
Only the monstrous anger of the guns.
Only the stuttering rifle´s rapid
rattle
Can spatter out their hasty orisons.
No mockeries for them; no prayer´s nor bells,
Nor any voice of mourning save the choirs,
The shrill, demented choirs of wailing shells…”
Esta
é a verdade da guerra. Um dos seus poemas, “Strange
Meeting”, encontrado entre os papéis que deixou, termina de uma forma que
estranhamente parece evocar a relação de um sniper
com a sua vítima.
“Foreheads of men have bled
were no wounds were.
I am the enemy you killed, my friend.
I knew you in this dark; for you frowned
Yesterday trough me as you jabbed and killed.
I parried; but my hands were loath and cold.
Let us sleep now…”
Owen
descreve aqui a experiência demencial do soldado que para se abrigar salta para
dentro de uma cratera de granada e depara com o inimigo que matara no dia
anterior e que ali o espera como para lhe mostrar que, naquele pesadelo sem
fim, a sua natureza e o seu destino são os mesmos. Resta tão somente dormir …
Dylan
Thomas diria dele que Owen será para sempre o poeta de todas as guerras, porque
só há uma guerra, a mesma de sempre, a do homem contra o homem.
Wilfred
Owen e outros quinze britânicos, poetas da guerra que os matou, são hoje
reverenciados no Poet´s Corner, na
Westminster Abbey, no memorial dos poetas da Grande Guerra. Aí, registada na
pedra, a frase de Wilfred Owen diz tudo o que há a dizer: “My subject is War, the pity of War. The poetry is in the pity.”
Ou
talvez o dissesse melhor se Owen tivesse sido bem citado. As palavras que
constam do prefácio da sua única obra, que basta para lhe atribuir o título de
um dos poetas maiores da Velha Albion, são exatamente estas: “Above
all, this book is not concerned with Poetry. The subject of it is War,
and the pity of War. The Poetry is in the pity.”
E o prefácio continua: “Yet these elegies are not to this
generation. (…) They may be to the next. All the poet can do to-day is warn.”
Pois
é, diz-se que nada há de mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou. A ideia
do horror à guerra foi tão forte que permeou todos os sobreviventes da “Lost Generation”. Muitos não creram que
o seu regresso fosse possível. Outros julgaram que se lhe poderiam opor com
boas intenções e muito idealismo internacionalista. Quando despertaram,
depararam com o mesmo horror, então com ainda mais sinistros tons por se
estender aos não combatentes.
Como que respondendo ao obituário de Rupert Brooke, da autoria de Churchill, Owen disse aos seus compatriotas que nunca é bom morrer pela pátria:
“If in some smothering
dreams you too could pace
Behind the wagon that we flung him in,
(…)
My friend, you would not tell with such high zest
To children ardent for some desperate glory,
The old Lie: Dulce et decorum est
Pro patria mori.”
As
palavras e os sentimentos de Owen marcaram a consciência nacional inglesa por
vinte anos. Avisaram, como ele pretendia, a geração seguinte. O poeta Cecil
Day-Lewis, hoje mais conhecido como pai do actor Daniel Day-Lewis, mas que foi
um importante membro da geração de trinta dos poetas de Oxford e Poet Laureate of United Kingdom em 1968
(trata-se de um cargo honorífico cujo titular é designado pela Rainha por
sugestão do Primeiro-Ministro, e de quem se espera que produza alguns versos
para ocasiões solenes), escreveu na sua introdução a “The Collected Poems of Wilfred Owen”, editado em 1963:
“It is Owen, I believe, whose poetry came home deepest to members of my
generation, so that we could never again think of war as anything but a vile,
if necessary, evil.”
Aquele
“if necessary” certamente não
constaria antes de 1939. Pois, por vezes é mesmo necessário. Churchill nunca
deixou de acreditar na suprema necessidade do sacrifício, quando justificado. Sempre
admirou o poema de Rupert Brooke, cujo primeiro verso, recordemos, é “If we should die”. Curiosamente, ainda hoje
deparamos na Internet como um mito urbano sobre Churchill e a eventual
recitação durante a Segunda Guerra Mundial de um poema que começa de modo
semelhante, da autoria de Claude Mackay:
If we must
die—let it not be like hogs
Hunted and penned in an inglorious
spot,
While round us bark the mad and
hungry dogs,
Making their mock at our accursed
lot.
If we must die—oh, let us nobly die,
So that our precious blood may not
be shed
In vain; then even the monsters we
defy
Shall be constrained to honor us
though dead!
Uns
dizem que o terá citado na Câmara dos Comuns, outros no Congresso dos Estados
Unidos, outro perante tropas britânicas prestes a entrar em combate no Pacífico,
outros para a resistência na Europa continental, outros que nunca pela cabeça
lhe passaria usar palavras de um poeta negro e comunista norte-americano
inspirados por um motim racial em 1919, outros que as disse sem citar o autor.
Perante tamanha diversidade, o acontecimento é mais do que duvidoso, mas que tais
palavras ficariam bem ditas por Churchill, isso ninguém pode negar.
Claude Mackay
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A
melhor mensagem é, pois, a que concilia o horror da guerra com a necessidade de
combater para que um horror maior não vença. Wilfred Owen, afinal, também
voltou ao combate, quando não era obrigado a fazê-lo. Voltou porque quis
testemunhar até ao fim o horror da guerra. Voltou porque queria ter autoridade
para continuar a transmitir aquelas imagens demenciais. Ao voltar porque quis,
e apenas porque quis, deu um sentido à sua morte. Foi conduzindo os seus homens
que perdeu a vida. Aos vinte e cinco anos de idade. Atingido por um sniper. Não é provável, mas poderá ter sido
um poeta alemão, porventura prisioneiro dos mesmos dilemas, mas com pontaria
boa demais. Porém, prefiro pensar que a justiça divina não pode ser assim tão
estranha.
José
Luís Moura Jacinto
Muitíssimo grato, caro Moura Jacinto, por aqui nos trazer tão interessante guerra à poesia de guerra, pela poesia de guerra!!
ResponderEliminarMagnífico artigo. Parabéns!
ResponderEliminarUm dos meus favoritos foi escrito por uma mulher,mas acho que aqui não fica mal :
ResponderEliminarOver the Top
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One -
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Sybil Bristowe