quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A guerra dos poetas mortos.

 
 
 
Emil Nolde, Noite de Outono, 1924
 
 
 
 
Chamaram-lhe a Belle Époque. Na sua autobiografia Die Welt von Gestern, Stefan Zweig deu a esses “gute alte Zeiten” o nome de Idade de Ouro da Segurança. Parecia um tempo sem ameaças, prometedor e auspicioso. As forças extremistas, como os perigosos anarquistas da segunda metade do século XIX, estavam, dizia-se, controlados. O clima das grandes capitais europeias aparentava privilegiar sentimentos internacionalistas e europeístas. Os símbolos dessa época eram a cosmopolita Paris e a multicultural Áustria-Hungria.
Quando a guerra chegou, pondo fim a uma época áurea, emergiu de imediato a necessidade visceral de culpar a outra parte. Que melhor maneira de o fazer do que recorrer à elaboração culta que revisita a antiguidade e demonstra a superioridade moral e cultural sobre aqueles que, subitamente, descobrimos como bárbaros? Era o tempo do amador dotado, do gentleman poet estudioso do grego e do latim, frequentador das páginas dos quotidianos ingleses onde as suas versalhadas eram acolhidas com deleite jingoísta. Para os críticos posteriores, nunca a poesia britânica estivera tão em baixo. Mas os sentimentos eram puros e incentivadores do espírito guerreiro de uma nação em armas. A guerra como salvação espiritual e força regeneradora inspirava os poetas de sofá.
Em Agosto de 1914 assistiu-se a uma inaudita manifestação de sentimentos patrióticos em verso. O The Times calcula que nesse mês recebeu para publicação cerca de cem poemas por dia. Todos os jornais, nacionais e locais, testemunharam o mesmo impulso versejador. A pouco e pouco, começaram a chegar os poemas da frente de batalha. O vate mais famoso, nesta primeira fase, foi Rupert Brooke. Tinha passado vagamente pelo Bloomsbury Group, onde parece ter sido apreciado mais pela beleza física. Integrou outros grupos literários, como os Georgian Poets e os Dymock Poets, mas ficou na memória como poeta da guerra. E como poeta morto.
 
 

Rupert Brooke

 
 
 
 
 
Assinou um poema famoso, “The Soldier”, escrito em 1914, no fulgor do início de uma grande aventura:
 
“If I should die, think only this of me;
 
That there's some corner of a foreign field
 
That is for ever England.”
 
E morreu em 1915, a caminho de Galipoli, doente com blood poisoning, ou seja, septicemia, num navio hospital francês. Winston Churchill celebrou pressurosamente a sua memória, criando o mito. Em 26 de abril de 1915, publicou-lhe o obituário no The Times, num registo épico, que dava a entender que morrera em combate:
He expected to die; he was willing to die for the dear England whose beauty and majesty he knew; and he advanced towards the brink in perfect serenity, with absolute conviction of the rightness of his country´s cause and a heart devoid of hate for fellow-men.”
 
 
Julian Grenfell
 
 
 
Julian Grenfell também ficou famoso por um único poema. E por ter proferido estas palavras eufóricas: “I adore war. It´s like a big picnic. I have never been more well or more happy.”
Quando se ouvem palavras como estas, ditas por um soldado, pensa-se em alguém ingénuo e entusiasta, que ainda não experimentou a verdadeira guerra. Mas Grenfell não era assim. Viveu confrontado com a miséria humana, com o sangue e a lama. E adorou. Grenfell era efectivamente um guerreiro que amava a excitação da batalha e da morte, da alheia e da própria. Adorava ser sniper e sentir a excitação da caçada: a espera, a deteção do alvo, o disparo, a queda de um corpo atingido. E filosofava nos seus cadernos. Para ele, matar significava por em contacto o que os homens têm de mais bárbaro com as forças fundamentais da natureza. Visar um inimigo tinha algo de sensual e visceralmente humano:  One loves one´s fellow man so much more when one is bent on killing him.
Tinha um caderninho onde anotava os seus feitos: “November 16th: 1 Pomeranian; November 17th: 2 Pomeranians”. E assim por diante. Até que foi apanhado por um estilhaço.
No dia a seguir à sua morte, 26 de Maio de 1915, o The Times publicou “Into the Battle” de Julian Grenfell. Este poema é o motivo por que ainda se fala dele:
         And life is Colour and Warmth and Light,
         And a striving evermore for these;
         And he is dead who will not fight;
         And who dies fighting has increase.”
Esta exaltação da vitalidade do combate foi depois rejeitada. Quando John Silkin incluiu este poema no Penguin Book of First World War Poetry sentiu o dever de frisar que abominava aqueles sentimentos. Não obstante, são sentimentos que ainda tocam uma corda que vibra no coração de muitos seres humanos.
Julian Grenfell era um sniper na primeira guerra em que o sniping foi elevado a uma especialidade da maior importância. Outros poetas da guerra foram mortos por snipers. Edward Tennant em 22 de Setembro de 1916. Arthur West em 3 de Abril de 1917. Charles Sorley em 29 de Agosto de 1918. Contudo, a mais eloquente de todas as vítimas dos snipers não foi um poeta, mas um novelista, um mestre da short story macabra. Foi ele H. H. Munro, atingido em 14 de novembro de 1916, depois de se ter abrigado com alguns camaradas na cratera aberta por uma granada e de ter proferido as imortais palavras: “− Apaga a merda do cigarro!”
 
 
 
Wilfred Owen
 
 
 
O melhor de todos eles, o melhor dos poetas da guerra, um dos grandes poetas de língua inglesa do século XX, Wilfred Owen, também foi atingido por um único tiro, em novembro de 1918, sete dias antes do armistício.
A certo ponto, a linguagem divorciou-se dos acontecimentos e dos sentimentos. A linguagem dos políticos e dos jornalistas. E também a linguagem dos poetas. Impunha-se encontrar novas palavras e novas formas. Os jornais ingleses começaram então a dar lugar a alguns novos autores, como Siegfrid Sassoon, que descreviam com realismo o horror da guerra. Apesar de algumas reações negativas, após três anos de guerra o público inglês já estava pronto para os aceitar. O próprio Winston Churchill, então Ministro das Munições, não avaliou os poemas de Sassoon como propaganda pacifista e antipatriótica. Admirou-os, apesar de tudo, porque davam conta aos ingleses do sofrimento das suas tropas na frente. E, como bem o demonstrou na guerra seguinte, Churchill sentia o dever de transmitir aos cidadãos de uma pátria livre em guerra as verdades mais difíceis de aceitar.
Não sabemos o que Churchill pensou da poesia de Wilfred Owen. Na verdade, apenas um dos seus poemas foi publicado durante a guerra, em The Nation, no ano de 1917. Depois, o seu amigo Sassoon, para sempre marcado pelo escrúpulo de não o ter convencido a ficar em Inglaterra quando Owen aí esteve em tratamento até Agosto de 1918, tudo fez para promover a sua poesia.
Um dos mais conhecidos poemas é “Anthem For Doomed Youth”:
         “What passing-bells for these who die as cattle?
         Only the monstrous anger of the guns.
         Only the stuttering rifle´s rapid rattle
Can spatter out their hasty orisons.
No mockeries for them; no prayer´s nor bells,
Nor any voice of mourning save the choirs,
The shrill, demented choirs of wailing shells…”
 
Esta é a verdade da guerra. Um dos seus poemas, “Strange Meeting”, encontrado entre os papéis que deixou, termina de uma forma que estranhamente parece evocar a relação de um sniper com a sua vítima.
 
         “Foreheads of men have bled were no wounds were.
         I am the enemy you killed, my friend.
I knew you in this dark; for you frowned
Yesterday trough me as you jabbed and killed.
I parried; but my hands were loath and cold.
Let us sleep now…”
 
Owen descreve aqui a experiência demencial do soldado que para se abrigar salta para dentro de uma cratera de granada e depara com o inimigo que matara no dia anterior e que ali o espera como para lhe mostrar que, naquele pesadelo sem fim, a sua natureza e o seu destino são os mesmos. Resta tão somente dormir …
Dylan Thomas diria dele que Owen será para sempre o poeta de todas as guerras, porque só há uma guerra, a mesma de sempre, a do homem contra o homem.
Wilfred Owen e outros quinze britânicos, poetas da guerra que os matou, são hoje reverenciados no Poet´s Corner, na Westminster Abbey, no memorial dos poetas da Grande Guerra. Aí, registada na pedra, a frase de Wilfred Owen diz tudo o que há a dizer: “My subject is War, the pity of War. The poetry is in the pity.
Ou talvez o dissesse melhor se Owen tivesse sido bem citado. As palavras que constam do prefácio da sua única obra, que basta para lhe atribuir o título de um dos poetas maiores da Velha Albion, são exatamente estas:  Above all, this book is not concerned with Poetry. The subject of it is War, and the pity of War. The Poetry is in the pity.”
E o prefácio continua: “Yet these elegies are not to this generation. (…) They may be to the next. All the poet can do to-day is warn.”
Pois é, diz-se que nada há de mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou. A ideia do horror à guerra foi tão forte que permeou todos os sobreviventes da “Lost Generation”. Muitos não creram que o seu regresso fosse possível. Outros julgaram que se lhe poderiam opor com boas intenções e muito idealismo internacionalista. Quando despertaram, depararam com o mesmo horror, então com ainda mais sinistros tons por se estender aos não combatentes.
 


John Singer Sargent, Gassed, 1918-19

 


 


Como que respondendo ao obituário de Rupert Brooke, da autoria de Churchill, Owen disse aos seus compatriotas que nunca é bom morrer pela pátria:
 
         “If in some smothering dreams you too could pace
Behind the wagon that we flung him in,
(…)   
My friend, you would not tell with such high zest
To children ardent for some desperate glory,
The old Lie: Dulce et decorum est 
Pro patria mori.”
 
As palavras e os sentimentos de Owen marcaram a consciência nacional inglesa por vinte anos. Avisaram, como ele pretendia, a geração seguinte. O poeta Cecil Day-Lewis, hoje mais conhecido como pai do actor Daniel Day-Lewis, mas que foi um importante membro da geração de trinta dos poetas de Oxford e Poet Laureate of United Kingdom em 1968 (trata-se de um cargo honorífico cujo titular é designado pela Rainha por sugestão do Primeiro-Ministro, e de quem se espera que produza alguns versos para ocasiões solenes), escreveu na sua introdução a “The Collected Poems of Wilfred Owen”, editado em 1963:
It is Owen, I believe, whose poetry came home deepest to members of my generation, so that we could never again think of war as anything but a vile, if necessary, evil.”
Aquele “if necessary” certamente não constaria antes de 1939. Pois, por vezes é mesmo necessário. Churchill nunca deixou de acreditar na suprema necessidade do sacrifício, quando justificado. Sempre admirou o poema de Rupert Brooke, cujo primeiro verso, recordemos, é “If we should die”. Curiosamente, ainda hoje deparamos na Internet como um mito urbano sobre Churchill e a eventual recitação durante a Segunda Guerra Mundial de um poema que começa de modo semelhante, da autoria de Claude Mackay:
 
            If we must die—let it not be like hogs
 
            Hunted and penned in an inglorious spot,
 
            While round us bark the mad and hungry dogs,
 
            Making their mock at our accursed lot.
 
            If we must die—oh, let us nobly die,
 
            So that our precious blood may not be shed
 
            In vain; then even the monsters we defy
 
            Shall be constrained to honor us though dead!
 
Uns dizem que o terá citado na Câmara dos Comuns, outros no Congresso dos Estados Unidos, outro perante tropas britânicas prestes a entrar em combate no Pacífico, outros para a resistência na Europa continental, outros que nunca pela cabeça lhe passaria usar palavras de um poeta negro e comunista norte-americano inspirados por um motim racial em 1919, outros que as disse sem citar o autor. Perante tamanha diversidade, o acontecimento é mais do que duvidoso, mas que tais palavras ficariam bem ditas por Churchill, isso ninguém pode negar.
 
Claude Mackay
 
 
A melhor mensagem é, pois, a que concilia o horror da guerra com a necessidade de combater para que um horror maior não vença. Wilfred Owen, afinal, também voltou ao combate, quando não era obrigado a fazê-lo. Voltou porque quis testemunhar até ao fim o horror da guerra. Voltou porque queria ter autoridade para continuar a transmitir aquelas imagens demenciais. Ao voltar porque quis, e apenas porque quis, deu um sentido à sua morte. Foi conduzindo os seus homens que perdeu a vida. Aos vinte e cinco anos de idade. Atingido por um sniper. Não é provável, mas poderá ter sido um poeta alemão, porventura prisioneiro dos mesmos dilemas, mas com pontaria boa demais. Porém, prefiro pensar que a justiça divina não pode ser assim tão estranha.
 
José Luís Moura Jacinto
 
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Muitíssimo grato, caro Moura Jacinto, por aqui nos trazer tão interessante guerra à poesia de guerra, pela poesia de guerra!!

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  2. Magnífico artigo. Parabéns!

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  3. Um dos meus favoritos foi escrito por uma mulher,mas acho que aqui não fica mal :

    Over the Top


    Ten more minutes! - Say yer prayers,
    Read yer Bibles, pass the rum!
    Ten more minutes! Strike me dumb,
    'Ow they creeps on unawares,
    Those blooming minutes. Nine. It's queer,
    I'm sorter stunned. It ain't with fear!

    Eight. It's like as if a frog
    Waddled round in your inside,
    Cold as ice-blocks, straddle wide,
    Tired o' waiting. Where's the grog?
    Seven. I'll play yer pitch and toss -
    Six. - I wins, and tails yer loss.

    'Nother minute sprinted by
    'Fore I knowed it; only Four
    (Break 'em into seconds) more
    'Twixt us and Eternity.
    Every word I've ever said
    Seems a-shouting in my head.

    Three. Larst night a little star
    Fairly shook up in the sky,
    Didn't like the lullaby
    Rattled by the dogs of War.
    Funny thing - that star all white
    Saw old Blighty, too, larst night.

    Two. I ain't ashamed o' prayers,
    They're only wishes sent ter God
    Bits o' plants from bloody sod
    Trailing up His golden stairs.
    Ninety seconds - Well, who cares!
    One -
    No fife, no blare, no drum -
    Over the Top - to Kingdom Come!

    Sybil Bristowe

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