terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Pele e osso - 2




 

Minik, pouco depois de chegar a Nova Iorque
1897

 
 
 
 
No fim de um texto publicado aqui, falámos de Minik. Há uns anos, não me lembro quantos, escrevi sobre ele num suplemento do Diário de Notícias, o DNA, a propósito de um livro saído na altura. Originariamente, o livro, publicado em edição de autor em 1986, circulou incógnito durante muitos anos, vendendo-se apenas numa loja de generalidades da recôndita ilha de Baffin, nos confins gelados do Ártico. Foi novamente publicado em 2000, com um prefácio do actor Kevin Spacey, e logo se tornou um best seller. Chama-se Give Me My Father's Body: The Life of Minik, the Nr«ew York Eskimo.
         «Os que chegam na Primavera» (ou upernaqallit, na linguagem dos esquimós) é a expressão que designava os exploradores ou comerciantes que, todos anos, quando o tempo melhorava, se aventuravam nas terras polares. Contando a história singular de Minik, um jovem esquimó, este livro é um relato absolutamente extraordinário daquele encontro de culturas.
Juntamente com um conjunto de outros esquimós, Minik foi literalmente transplantado do seu ambiente natal da Gronelândia para a turbulenta Nova Iorque do princípio do século. Esta operação, levada a cabo pelo explorador  Robert E. Peary, tinha como objectivo dar a conhecer ao mundo «civilizado» exemplares vivos de uma outra raça, os esquimós (ou inuit, como preferem ser chamados). O problema é que, depois de terem sido confinados nas caves do Museu de História Natural, em pouco tempo deixaram de existir exemplares vivos dos esquimós, já que no espaço de poucas semanas os «espécimes» polares foram morrendo uns atrás dos outros, vítimas de pneumonia (o que, em si mesmo, não deixa de ser cruelmente irónico). Sobrou Minik, uma criança de seis anos que viajara acompanhada do pai.
 
 
 
Robert Peary (1856-1920)
 
 
         A história, a partir daí, desenrola-se de uma forma dramática e, ao mesmo tempo, rocambolesca. Minik ficou entregue aos cuidados de William Wallace – um funcionário do Museu que, apesar de tudo, é um dos poucos personagens dignos desta tragédia –, mas este, envolvido num esquema de corrupção, perdeu o emprego. O jovem Minik Wallace, que ficara com o apelido do pai adoptivo, entra nos caminhos da marginalidade e é então que ocorre o episódio central desta trama: Minik descobre que o funeral do seu pai, a que assistira, não passara de uma encenação e que os seus ossos se encontravam em exposição numa vitrine do Museu de História Natural. O livro narra, depois, os pormenores da batalha desigual entre Minik e as autoridades do Museu, que se recusam a devolver os restos mortais do seu pai.
 
 
Minik, no seu regresso falhado à Gronelândia
 
 
         Por fim, o jovem esquimó resolve voltar à sua terra natal, de onde viera com apenas seis anos de idade. E é aí que tem lugar um dos mais expressivos sucessos desta saga: depois de experimentar os «custos da alteridade» na América, Minik casa e torna-se caçador, mas sente-se igualmente desenraizado nas paragens gélidas onde nasceu. O jovem esquimó ficara «preso entre dois mundos», para usar as palavras de Kevin Spacey. A desumanidade etnocêntrica da antropologia fin de siècle, tratando-o como um mero objecto de estudo e uma curiosidade descartável, fizera dele um «sem-terra», na verdadeira acepção da palavra. Despojado de referências, Minik retorna, por fim, aos Estados Unidos e, talvez sem grande entusiasmo, naturaliza-se cidadão norte-americano. Os seus últimos anos de vida são, porventura, os mais felizes, com um patrão que o trabalha como a um filho. Mas, à semelhança do seu pai, é vitimado pela pneumonia e morre em 1918. Foi sepultado em Pittsburgh.
Este livro contém um relato factual (ainda que obviamente engagé) de uma história bizarra, sendo, pois, destituído de quaisquer pretensões literárias e, muito menos, de devaneios sentimentais. Eis um ponto a favor do autor: Kenn Harper percebeu que a tragédia de Minik, em si mesma, possui uma força e uma intensidade tais que dispensa – e, pelo contrário, até desaconselha – invólucros romanescos. O estilo «jornalístico» é, sem dúvida, o mais adequado: com ele, a narrativa adquire uma fluidez que torna a leitura compulsiva.
 
 
Minik, em criança, aqui

 
 
 
É certo que o autor não deixa de ceder – e, por vezes, excessivamente – a um maniqueísmo redutor e simplista, que separa os «bons» dos «maus» consoante estivessem a favor ou contra a causa do pequeno esquimó. Mas também é certo que, ante o drama pessoal de Minik, se torna difícil ser absolutamente neutro ou imparcial. Poderemos ler dezenas de estudos antropológicos sobre os encontros de culturas, a descoberta do «outro» ou fenómenos de aculturação. Mas este livro tem, sobre todos aqueles, a vantagem de nos dar um retrato da dimensão humana dessas realidades. Quem aqui fala não são as nações, os povos ou as culturas, mas as pessoas – ou, melhor dizendo, uma pessoa na singularidade e na estranheza do seu devir.
         E, afinal, o que sucedeu às ossadas de Qisuk, o grande caçador esquimó, pai de Minik, encerrado numa cela de vidro de um museu nova-iorquino? Eis um pergunta a que só saberá responder quem se aventurar a mergulhar neste livro, ou neste documentário, juntando-se à legião dos upernaqallit, «os que chegam na Primavera». Satisfazendo a curiosidade dos leitores, dir-se-á apenas que as ossadas dos esquimós nova-iorquinos foram trasladadas para a Gronelândia. O Museu de História Natural, através de um expediente ínvio, libertara os esqueletos que tinha em exposição. Em 1993, os ossos de quatro esquimós chegaram à sua terra natal. Os problemas não acabaram aí. A igreja luterana, religião oficial da Dinamarca e da Gronelândia, decidiu, inicialmente, que, por serem pagãos, os esquimós não poderiam ter um funeral cristão. O bom senso acabou por prevalecer e Qisuk e os seus três companheiros seriam sepultados na presença de algumas pessoas, poucas, uma das quais um representante do Museu de História Natural. Em 1997, cem anos depois da viagem dos esquimós para Nova Iorque, a rainha da Dinamarca presidiu ao descerramento de uma placa evocativa da memória dos infortunados inuit. Quanto a Minik, continua sepultado nos Estados Unidos – e, segundo Kenn Harper, é aí que deve permanecer para sempre. Uma opinião sensata.
 


Minik (ou «Mene») Wallace, 1887-1918
 
 
         E em breve falaremos da pele. A pele de Solimão.
 
 
(Continua, em mais um e último fascículo)
 
António de Araújo
 
 
 
 

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