Angelo Soliman (c. 1721-1796)
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Em
Um Homem Sem Qualidades, Robert Musil
faz entrar em cena um jovem criado negro, que a dada altura é despedido por se
descobrir a sua relação amorosa com uma rapariga branca.
A personagem de Musil é inspirada em
Angelo Soliman (prefiro «Solimão»), um
negro que chegou a Viena no século XVIII e desaguou na minha enciclopédica
ignorância graças à generosidade imensa da Isabel e do Miguel, que do Brasil me
trouxeram Ter e Manter. Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções, de Philipp Bloom. A dado passo desse
livro maravilhoso, Bloom conta que se deslocou a Paris, ao Musée de l’Homme,
para visitar a colecção de crânios de Franz José Gall. Só recentemente tinham identificado
a máscara mortuária de Angelo Soliman.
Nascido provavelmente no território que
é hoje a Nigéria, Soliman/Solimão foi escravizado e vendido, viajando do norte
de África para Marselha e, depois, para Messina. Aí, o príncipe Joahn
Lobkowitz, governador austríaco da Sicília, achou graça ao neguinho e pediu
para ficar como ele. Assim, sem mais. O príncipe levou-o para o seu posto
seguinte, na Lombardia, e o menino, na altura com treze anos, seguiu com o seu
novo amo. Angelo cresceu, ganhou corpo e fama nas pelejas daqueles tempos.
Nestas andanças, percorreu o Império Habsburgo inteiro, o que é muito. Aos 34
anos, mudou de príncipe, para o de Wenzel von Liechenstein, e fixou-se em
Viena.
Tutor
do filho do príncipe, tornou-se, também ele, um cavalheiro distinto. Os
retratos a óleo mostram-no na companhia de uns senhores ilustríssimos, ainda
que de pé. Uma gravura, só a ele dedicada, exibe-no em trajes de corte, enfeitados
de peles, com um casaco abotoado e um turbante branco. As feições? Perfeitas.
Na mão, um bastão. Um bastão com um leão. A legenda da gravura é sintética, mas
diz tudo: Angelus Solimanus, Regiae
Numidarum gentis Nepos, decora facie, ingenio validus, os humerosque Jugurthae
similis. in Afr. in Sicil. Gall. Angel. Francon. Austria Omnibus Carus, fidelis
Principium familiaris («Angelo Solimão, da família real dos númidas, homem
de belas feições, grande perspicácia, igual a Jugurtha no rosto e na
constituição, querido de todos na África, Sicília, França, Inglaterra, Frncónia
e Áustria, e leal companheiro do príncipe»).
Falava com fluência alemão, francês e
italiano, e conseguia expressar-se em checo, inglês e latim. Entrou na
Maçonaria. Mais precisamente, tornou-se pedreiro-livre na loja «Verdadeira
União», o que o fez tornar-se irmão de Mozart e Haydn. Ensarilhou-se em
negócios, contraiu dívidas soberanas e acabou com um ataque de coração, perto
da catedral de Santo Estêvão. Morreu de preocupações e de idade – ou, para usar
palavras, doutro contexto, de um sábio africano, morreu de ter vivido –, com uma provecta idade para a época: 75
anos. Um dos seus irmãos maçons, escreveu sobre o seu destino póstumo:
«É preciso registar ainda o seguinte:
1. que, por ordem do imperador Franz II,
ele teve a pele tirada,
2. que a sua pele foi posta numa armação
de madeira e reassumiu as antigas feições de Angelo Soliman com grande
exactidão, e ficou exposta ao público durante dez anos
3. que essa pele, na sua armação de
madeira, ou a forma esculpida do nosso irmão Soliman, foi devorada pelo fogo 52
anos depois, com grande barulho […]»
Outra fonte, citada por Holl, descreve
assim o modo como apresentaram Soliman:
«Angelo Soliman era apresentado em pé, o
pé direito virado para trás e a mão esquerda estendida, usando um cinto de
plumas na cintura e uma coroa de plumas na cabeça, ambas feitas de penas de
avestruz vermelhas, azuis e brancas, em sequência. Braços e pernas eram
enfeitados com um colar de pérolas de vidro brancas, e um largo colar tecido
delicadamente com caracóis de porcelana amarelos e brancos pendia-lhe até ao
peito.»
Como se vê, de pouco bastou a Angelo
ser um cortesão distinto, maçon e irmão de Mozart e Haydn. Depois de morrer,
vestiram-no de Carmen Miranda, e trataram-no como sempre o devem ter encarado: um preto. Integrou a colecção do
imperador Franz II e é melhor não começar a falar de Kunstkammeren se não ficávamos aqui o dia todo. Passou para um
expositor, aberto ao público em 1797, que albergava várias salas exóticas.
Meteram-no numa caixa, onde era mostrado ao público, perto de uma paisagem
pintada, que figurava uma mata tropical e exibia um tapir e um porco-espinho.
A pele de Soliman, esticada para que
recuperasse as suas belas feições naturais, era a piéce de résistance da mostra exótica. Já contámos a história de
Minik, o pequeno esquimó que tentou resgatar os ossos do pai das vitrinas do
Museu de História Natural. Também a filha de Solimão, Josefina, procurou
recuperar a pele de seu pai. Quer Minik, quer Josefina não conseguiram os seus
intentos. Imaginam o que é ver os ossos ou a pele do pai exibidos numa vitrina,
perante o olhar de visitantes extasiados e crianças malcriadonas? Nem o apoio
do prínncipe arcebispo de Viena conseguiu que Josefina recuperasse os restos mortais
de Angelo. Em 1802, deram-lhe companhia. Uma menina negra, também empalhada,
oferta do Rei de Nápoles, passou a estar ao seu lado, num armário que já
começava a ficar apertado, pois que lá estavam mais dois negros: um enfermeiro
africano do hospital dos Irmãos Misericordiosos e um tratador do zoo de
Schönbrunn, o primeiro local onde vi pandas-gigantes, que é um bicho simpático,
que, mais tarde ou mais cedo, vai aparecer aqui no Malomil. O panda-gigante,
muito mais do que o Homem, é o verdadeiro zoon
politikon, na acepção mais aristotélica da palavra. Leia-se o livro The Way of the Panda. The Curious Histtory of China’s Political Animal, de Henry Nicholls, sobre
pandas-gigantes e política. Está lá tudo explicado. Um dos capítulos do livro,
veja-se a coincidência, chama-se «Pele e osso».
No início do século XIX, em 1806, talvez
por um rebate de consciência, o novo director da colecção, Karl Schreiber,
achou que não seria muito próprio exibir ao público aquilo que chamavam, numa
linguagem bastante avant-garde,
«representantes negros da humanidade». Tê-los ali empalhados, à vista de todos,
era um excesso. Foram despachados para o sótão do edifício, onde, mediante uma
gorjeta generosa, os guardas do museu os mostravam aos visitantes mais curiosos
e endinheirados. Sim, houve gente que pagava acima da tabela para poder
contemplar negros empalhados. Depois, em 1848, no meio das convulsões
revolucionárias que atravessaram a Europa esse ano, uma bala de canhão atingiu
o edifício e um incêndio destruiu a colecção, ou parte dela. As peles de
Solimão e de todos os outros negros foram consumidas pelas chamas.
A filha nunca recuperou o pai, mas o
charme de Soliman continua a encantar Viena. Em 2011, dedicaram-lhe uma grande exposição. Era mesmo, ao que parece, de ascendência principesca, do povo
Kaduri, tendo por nome de nascença Mmadi Make. Pertenceu ao beautiful people da cidade, dando-se com
o imperador José II e o conde Franz Moritz von Lacy, e tendo casado com a irmã
de François Etienne de Kellerman, general de Napoleão e duque de Valmy. O seu
neto era o barão von Feuchtersleben,
médico reputado e filho de Josefina. A irmã de um general e duque casar com um
negro, que é avô de um barão e depois acaba empalhado numa vitrina… A vida dá
muita volta. Boa e má. Maravilhosa.
Há um blogue maçónico dedicado a Angelo Soliman, que deve ser muito interessante mas
está escrito em húngaro, suponho eu. Um dos pedreiros-livres que se tornaram
irmãos de Soliman era o poeta húngaro Ferenc Kazincy, o que talvez explique
tudo. Outros referem que Soliman e Mozart se encontraram várias vezes, tendo o
primeiro servido de inspiração a uma personagem que integra a obra operática
mozartiana, O Rapto no Serralho. Há
quem diga que é também o modelo da personagem Monostatos doutra obra de Mozart,
A Flauta Mágica (já considerada «racista»). Sobre o busto, há
quem diga que está em Paris, no Musée de l’homme, outros asseveram que se
encontra em Baden. No início desta série Pele
e Osso, mostrámos um busto – de Ota Benga, o pigmeu que animou o Zoo de
Brooklyn. Também de Angelo Solimam, o gentil-homem que encantou Viena, se fez
um busto, ou máscara mortuária.
O busto de Solimão
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Já se fizeram exposições e recriações da sua
figura. Uma performance recente,
criada pelo dramaturgo sul-africano Brett Bailey, mostrava Solimão e outros
negros. Causou escândalo, houve furor.
«Exhibit A»
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«Exhibit B»
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VVVVVNa Alemanha, alguns activistas mais inflamados,
pertencentes à Bühnenwatch,
acusaram-no de querer recriar os «zoos humanos» do passado, quando o objectivo
da performance era justamente o
inverso. Em Berlim, quando Bailey discutia publicamente o seu trabalho, com
toda a abertura, os membros da Bühnenwatch
tentaram interromper a sessão. Um artista negro sul-africano atacou Bailey, dizendo ser um branco que coloca em cena negros sem lhes dar voz, expondo-os como nos
zoos humanos de outrora.
Os actores, note-se, são, por exemplo, requerentes de asilo na Europa, que viram
o seu pedido ser-lhes negado. Bailey escolheu-os precisamente para denunciar
essa situação. Assim, não estariam os acusadores a levar longe demais a sua ardente
militância? Sem dúvida. Sobretudo, quando impedem o criador de explicar a sua
criatura, o que fez e o quis dizer. Enquanto Bailey tentava falar, oscontestatários continuaram aos gritos, até que a segurança teve de os tirar dali à força. Procurar silenciar os outros é uma modalidade de tirania, muito praticada nos nossos dias. Tumultos orquestrados, que visem calar a palavra alheia, não exprimem indignação. São, isso sim, uma forma nova de opressão. Indigna de Solimão e da sua memória, tão luminosa quanto trágica.
António Araújo
como sempre magnifico post , é sempre um privilégio aprender consigo...
ResponderEliminarAbraço
PC:.
Muito obrigado pelas suas (imerecidas) palavras.
EliminarCordialmente,
António Araújo