quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Pele e osso - 3

 
 
 
 
 
Angelo Soliman (c. 1721-1796)
 
 
 
Em Um Homem Sem Qualidades, Robert Musil faz entrar em cena um jovem criado negro, que a dada altura é despedido por se descobrir a sua relação amorosa com uma rapariga branca.
         A personagem de Musil é inspirada em Angelo Soliman (prefiro  «Solimão»), um negro que chegou a Viena no século XVIII e desaguou na minha enciclopédica ignorância graças à generosidade imensa da Isabel e do Miguel, que do Brasil me trouxeram Ter e Manter. Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções, de Philipp Bloom. A dado passo desse livro maravilhoso, Bloom conta que se deslocou a Paris, ao Musée de l’Homme, para visitar a colecção de crânios de Franz José Gall. Só recentemente tinham identificado a máscara mortuária de Angelo Soliman.
         Nascido provavelmente no território que é hoje a Nigéria, Soliman/Solimão foi escravizado e vendido, viajando do norte de África para Marselha e, depois, para Messina. Aí, o príncipe Joahn Lobkowitz, governador austríaco da Sicília, achou graça ao neguinho e pediu para ficar como ele. Assim, sem mais. O príncipe levou-o para o seu posto seguinte, na Lombardia, e o menino, na altura com treze anos, seguiu com o seu novo amo. Angelo cresceu, ganhou corpo e fama nas pelejas daqueles tempos. Nestas andanças, percorreu o Império Habsburgo inteiro, o que é muito. Aos 34 anos, mudou de príncipe, para o de Wenzel von Liechenstein, e fixou-se em Viena.
 
 
 
 
 
 
Tutor do filho do príncipe, tornou-se, também ele, um cavalheiro distinto. Os retratos a óleo mostram-no na companhia de uns senhores ilustríssimos, ainda que de pé. Uma gravura, só a ele dedicada, exibe-no em trajes de corte, enfeitados de peles, com um casaco abotoado e um turbante branco. As feições? Perfeitas. Na mão, um bastão. Um bastão com um leão. A legenda da gravura é sintética, mas diz tudo: Angelus Solimanus, Regiae Numidarum gentis Nepos, decora facie, ingenio validus, os humerosque Jugurthae similis. in Afr. in Sicil. Gall. Angel. Francon. Austria Omnibus Carus, fidelis Principium familiaris («Angelo Solimão, da família real dos númidas, homem de belas feições, grande perspicácia, igual a Jugurtha no rosto e na constituição, querido de todos na África, Sicília, França, Inglaterra, Frncónia e Áustria, e leal companheiro do príncipe»).
         Falava com fluência alemão, francês e italiano, e conseguia expressar-se em checo, inglês e latim. Entrou na Maçonaria. Mais precisamente, tornou-se pedreiro-livre na loja «Verdadeira União», o que o fez tornar-se irmão de Mozart e Haydn. Ensarilhou-se em negócios, contraiu dívidas soberanas e acabou com um ataque de coração, perto da catedral de Santo Estêvão. Morreu de preocupações e de idade – ou, para usar palavras, doutro contexto, de um sábio africano, morreu de ter vivido –, com uma provecta idade para a época: 75 anos. Um dos seus irmãos maçons, escreveu sobre o seu destino póstumo:
 
«É preciso registar ainda o seguinte:
1. que, por ordem do imperador Franz II, ele teve a pele tirada,
2. que a sua pele foi posta numa armação de madeira e reassumiu as antigas feições de Angelo Soliman com grande exactidão, e ficou exposta ao público durante dez anos
3. que essa pele, na sua armação de madeira, ou a forma esculpida do nosso irmão Soliman, foi devorada pelo fogo 52 anos depois, com grande barulho […]»
 
         Outra fonte, citada por Holl, descreve assim o modo como apresentaram Soliman:
 
«Angelo Soliman era apresentado em pé, o pé direito virado para trás e a mão esquerda estendida, usando um cinto de plumas na cintura e uma coroa de plumas na cabeça, ambas feitas de penas de avestruz vermelhas, azuis e brancas, em sequência. Braços e pernas eram enfeitados com um colar de pérolas de vidro brancas, e um largo colar tecido delicadamente com caracóis de porcelana amarelos e brancos pendia-lhe até ao peito.»  
         
         Como se vê, de pouco bastou a Angelo ser um cortesão distinto, maçon e irmão de Mozart e Haydn. Depois de morrer, vestiram-no de Carmen Miranda, e trataram-no como sempre o devem ter encarado: um preto. Integrou a colecção do imperador Franz II e é melhor não começar a falar de Kunstkammeren se não ficávamos aqui o dia todo. Passou para um expositor, aberto ao público em 1797, que albergava várias salas exóticas. Meteram-no numa caixa, onde era mostrado ao público, perto de uma paisagem pintada, que figurava uma mata tropical e exibia um tapir e um porco-espinho.
         A pele de Soliman, esticada para que recuperasse as suas belas feições naturais, era a piéce de résistance da mostra exótica. Já contámos a história de Minik, o pequeno esquimó que tentou resgatar os ossos do pai das vitrinas do Museu de História Natural. Também a filha de Solimão, Josefina, procurou recuperar a pele de seu pai. Quer Minik, quer Josefina não conseguiram os seus intentos. Imaginam o que é ver os ossos ou a pele do pai exibidos numa vitrina, perante o olhar de visitantes extasiados e crianças malcriadonas? Nem o apoio do prínncipe arcebispo de Viena conseguiu que Josefina recuperasse os restos mortais de Angelo. Em 1802, deram-lhe companhia. Uma menina negra, também empalhada, oferta do Rei de Nápoles, passou a estar ao seu lado, num armário que já começava a ficar apertado, pois que lá estavam mais dois negros: um enfermeiro africano do hospital dos Irmãos Misericordiosos e um tratador do zoo de Schönbrunn, o primeiro local onde vi pandas-gigantes, que é um bicho simpático, que, mais tarde ou mais cedo, vai aparecer aqui no Malomil. O panda-gigante, muito mais do que o Homem, é o verdadeiro zoon politikon, na acepção mais aristotélica da palavra. Leia-se o livro The Way of the Panda. The Curious Histtory of China’s Political Animal, de Henry Nicholls, sobre pandas-gigantes e política. Está lá tudo explicado. Um dos capítulos do livro, veja-se a coincidência, chama-se «Pele e osso».
         No início do século XIX, em 1806, talvez por um rebate de consciência, o novo director da colecção, Karl Schreiber, achou que não seria muito próprio exibir ao público aquilo que chamavam, numa linguagem bastante avant-garde, «representantes negros da humanidade». Tê-los ali empalhados, à vista de todos, era um excesso. Foram despachados para o sótão do edifício, onde, mediante uma gorjeta generosa, os guardas do museu os mostravam aos visitantes mais curiosos e endinheirados. Sim, houve gente que pagava acima da tabela para poder contemplar negros empalhados. Depois, em 1848, no meio das convulsões revolucionárias que atravessaram a Europa esse ano, uma bala de canhão atingiu o edifício e um incêndio destruiu a colecção, ou parte dela. As peles de Solimão e de todos os outros negros foram consumidas pelas chamas.
         A filha nunca recuperou o pai, mas o charme de Soliman continua a encantar Viena. Em 2011, dedicaram-lhe uma grande exposição. Era mesmo, ao que parece, de ascendência principesca, do povo Kaduri, tendo por nome de nascença Mmadi Make. Pertenceu ao beautiful people da cidade, dando-se com o imperador José II e o conde Franz Moritz von Lacy, e tendo casado com a irmã de François Etienne de Kellerman, general de Napoleão e duque de Valmy. O seu neto era o barão von Feuchtersleben, médico reputado e filho de Josefina. A irmã de um general e duque casar com um negro, que é avô de um barão e depois acaba empalhado numa vitrina… A vida dá muita volta. Boa e má. Maravilhosa.
         Há um blogue maçónico dedicado a Angelo Soliman, que deve ser muito interessante mas está escrito em húngaro, suponho eu. Um dos pedreiros-livres que se tornaram irmãos de Soliman era o poeta húngaro Ferenc Kazincy, o que talvez explique tudo. Outros referem que Soliman e Mozart se encontraram várias vezes, tendo o primeiro servido de inspiração a uma personagem que integra a obra operática mozartiana, O Rapto no Serralho. Há quem diga que é também o modelo da personagem Monostatos doutra obra de Mozart, A Flauta Mágica (já considerada «racista»). Sobre o busto, há quem diga que está em Paris, no Musée de l’homme, outros asseveram que se encontra em Baden. No início desta série Pele e Osso, mostrámos um busto – de Ota Benga, o pigmeu que animou o Zoo de Brooklyn. Também de Angelo Solimam, o gentil-homem que encantou Viena, se fez um busto, ou máscara mortuária.  
 
 
O busto de Solimão
 

 
 
         Já se fizeram  exposições e recriações da sua figura. Uma performance recente, criada pelo dramaturgo sul-africano Brett Bailey, mostrava Solimão e outros negros. Causou escândalo, houve furor.
 
 

«Exhibit A»


«Exhibit B»
 
 
VVVVVNa Alemanha, alguns activistas mais inflamados, pertencentes à Bühnenwatch, acusaram-no de querer recriar os «zoos humanos» do passado, quando o objectivo da performance era justamente o inverso. Em Berlim, quando Bailey discutia publicamente o seu trabalho, com toda a abertura, os membros da Bühnenwatch tentaram interromper a sessão. Um artista negro sul-africano atacou Bailey, dizendo ser um branco que coloca em cena negros sem lhes dar voz, expondo-os como nos zoos humanos de outrora. Os actores, note-se, são, por exemplo, requerentes de asilo na Europa, que viram o seu pedido ser-lhes negado. Bailey escolheu-os precisamente para denunciar essa situação. Assim, não estariam os acusadores a levar longe demais a sua ardente militância? Sem dúvida. Sobretudo, quando impedem o criador de explicar a sua criatura, o que fez e o quis dizer. Enquanto Bailey tentava falar, oscontestatários continuaram aos gritos, até que a segurança teve de os tirar dali à força. Procurar silenciar os outros é uma modalidade de tirania, muito praticada nos nossos dias.  Tumultos orquestrados, que visem calar a palavra alheia, não exprimem indignação. São, isso sim, uma forma nova de opressão. Indigna de Solimão e da sua memória, tão luminosa quanto trágica.
 

 
António Araújo 
 
 
 
   
 
 
 

2 comentários:

  1. como sempre magnifico post , é sempre um privilégio aprender consigo...
    Abraço
    PC:.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado pelas suas (imerecidas) palavras.
      Cordialmente,
      António Araújo

      Eliminar