Faleceu
no dia 7 de Janeiro de 2017, com 92 anos, Mário Soares, no Hospital da Cruz
Vermelha de Lisboa.
Foram três os meus encontros pessoais com Mário Soares.
O
primeiro aconteceu no dia 17 de Outubro de 1974 e encontra-se narrado numa das
entradas do meu Diário, nos termos que se seguem:
“No
contexto da dita visita [a do Presidente da República, General Costa Gomes, às
Nações Unidos e aos Estados Unidos], não posso esquecer o encontro com Mário
Soares, ao tempo Ministro dos Negócios Estrangeiros, na residência do
Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Professor Veiga Simão, no célebre
Dakota Building da 72.th Street de Nova Iorque. Como, por essa altura, uma das questões
mais debatidas entre os membros das comunidades portuguesas da diáspora era o
papel que lhes caberia desempenhar no futuro político de Portugal, alguns de
nós aproveitámos a ocasião para perguntar a Mário Soares, na sua capacidade de
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, se não achava bem que os
emigrantes tivessem também direito a voto para a eleição dos deputados à
Assembleia Constituinte e, futuramente, à Assembleia da República, e também
para a eleição do Presidente da República. Que sim: que em princípio concordava
com isso, mas que a questão era muito complexa e que havia muitas coisas a
considerar. Respeitosamente solicitado a explicar-se, o ilustre Ministro dos
Negócios Estrangeiros voltou-nos malcriadamente as costas e pôs-se a brincar,
no meio da sala apinhada de convidados, com a filha mais nova de Veiga Simão,
a Cristiana, atirando-a ao ar
repetidamente, para gáudio da menina e para decepção dos emigrantes portugueses,
apaixonados pela velha Pátria e sedentos de esclarecimentos por parte dos
putativamente representantes da coisa pública portuguesa, neste caso o Ministro
dos Negócios Estrangeiros do novo Portugal”
O
meu segundo encontro pessoal com Mário Soares teve lugar por ocasião da
inauguração em Constância do Jardim-Horto de Camões, ocorrida no dia 21 de
Abril de 1990. Na qualidade de membro da Associação para a Reconstrução da Casa
- Memória de Camões, ou Casa dos Arcos, em Constância, estive presente na
cerimónia oficial dessa inauguração, a convite da fundadora dessa Associação,
Dona Manuela de Azevedo, jornalista do Diário
de Notícias (de Lisboa), escritora e camonista.
(Esclareço,
entre parêntesis, que foi essa sua faceta de camonista de Manuela de Azevedo
que esteve na origem do convite para eu me tornar membro dessa associação. É
que ela tinha lido os meus estudos sobre o contemporâneo de Camões e
possivelmente seu conhecido e amigo pessoal, Fernão Álvares do Oriente,
contidos no que foi a minha tese de doutoramento: Fernão Álvares do Oriente – O Homem e a Obra. Paris: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1976; e na terceira edição da sua novela pastoril: Fernão
Álvares do Oriente, Lusitânia
Transformada. Introdução e actualização de texto de António Cirurgião.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. Um dos temas constantes da
tese e da introdução à terceira edição é a hipótese de Camões ser uma das
principais personagens da novela pastoril de Fernão Álvares e, como tal, ter
sido desterrado pelo rei para a vila de Constância, lá onde os rios Nabão e
Zêzere desaguam no Tejo.)
Tendo
passado praticamente o dia inteiro em companhia dos outros membros da
Associação e de um vasto número de convidados ilustres, não pude deixar de
ficar relativamente impressionado pelo à vontade com que o Presidente da
República confraternizou com todos os presentes e pela sua razoável cultura
humanística.
Nesse
contexto, não me posso esquecer de dois episódios ocorridos durante o banquete
servido numa espécie de barracão muito rústico, em enormes mesas de granito, a
fazer lembrar os grandes jantares nas fartas casas senhoriais da Idade Média.
Vamos aos episódios. Populista, extrovertido e “bon vivant”, logo me dei
conta de que Mário Soares conhecia de cara e de nome praticamente todos os
membros da Associação e os convidados. E, sendo assim, em determinado momento
levantou-se da mesa e fez questão de cumprimentar individualmente e
informalmente cada um dos comensais. Quando se aproximou de mim, voltou-se para
a senhora que estava sentada à minha direita, uma jornalista do New York Times, que acompanhava Mário
Soares em todas as viagens oficiais, e perguntou-lhe quem eu era. Apresentado
pela senhora jornalista, que eu conhecera nesse dia, por mero acaso, Mário
Soares, com a destreza dos políticos natos, apressou-se a felicitar-me pela
“nobre” profissão que escolhera e a exortar-me a que continuasse a promover a
língua e a cultura portuguesas nos Estados Unidos, e, especificamente, a
levantar cada vez mais alto o nome glorioso de Camões.
O
outro episódio só não vim a utilizá-lo um pouco mais tarde como jornalista
“free lance”, que eu era, por dele haver tomado conhecimento nas circunstâncias
que passo a expor. Quando a principal fundadora da Associação, Dona Manuela de
Azevedo, aproveitou do seu brinde para pedir ao Presidente da República apoio
financeiro para levar a bom termo a reconstrução da Casa-Memória de Camões em
Constância, Mário Soares, batendo levemente no ombro de Carlos Melancia,
governador de Macau, sentado a seu lado, respondeu prazenteiramente, mais ou
menos nestes termos, à digna senhora: - Dinheiro? Precisa de dinheiro? Ó minha
senhora, peça-o aqui ao meu amigo Melancia, que ele é Governador de Macau e é
muito rico. É que, como muitos deverão saber, a questão de presumível
enriquecimento fraudulento em Macau, por parte de certas figuras públicas e
governantes portugueses, viria a ser objecto de um livro altamente polémico de
Rui Mateus, Contos Proibidos,
publicado em 1996, e de quentes debates públicos em Portugal, de que o chamado
“Fax de Macau” pode servir de metáfora e paradigma.
Para
concluir o breve relato do meu segundo encontro pessoal com Mário Soares,
acrescentarei apenas que a maneira como o Presidente de Portugal viveu essa
efeméride em honra do Príncipe dos Poetas Portugueses em Constância me impeliu
a escrever-lhe uma breve carta no dia seguinte, a felicitá-lo pelo seu
manifesto interesse pela cultura portuguesa com C maiúsculo.
À
guisa de apêndice, apraz-me registar nesta entrada do meu Diário uma nota pertinente, sem nome de autor nem data, descoberta
na “internet”:
O Jardim-Horto [em Constância],
desenhado pelo arq.º Gonçalo Ribeiro Teles, foi inaugurado pelo presidente da
República, dr. Mário Soares, em 1990. Reúne toda a flora referida por Camões na
sua obra, num total de 52 espécies. No seu interior o visitante pode apreciar
ainda o Jardim de Macau, o Planetário de Ptolomeu no Auditório ao ar livre e um
painel de azulejos que apresenta as partes do mundo que Camões percorreu, de
Lisboa a Macau, passando por África e pela Índia. A enorme esfera armilar, a
maior de Portugal, assinala os 500 anos dos Descobrimentos Portugueses, que o
épico imortalizou em Os Lusíadas, e o caráter universalista da nossa
cultura.
É,
sem dúvida, um dos mais vivos e singulares monumentos erguidos no mundo a um
poeta.
O
meu terceiro encontro pessoal com Mário Soares aconteceu por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e
das Comunidades, celebradas no dia 10 de Junho de 1990, em Braga. Tendo sido
nesse ano galardoado com a Grã Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique o meu
amigo Dr. Adriano Seabra Veiga, cônsul honorário de Portugal no Estado de
Connecticut, e vendo-se impossibilitado de se deslocar a Portugal, pediu-me a
mim que o representasse oficialmente nessa cerimónia, em que, entre outras
altas individualidades, estavam presentes, como é da praxe, o Presidente da
República, Dr. Mário Soares, e o Chanceler das Antigas Ordens Militares
Portuguesas, Marechal António de Spínola.
Terminadas
as cerimónias e a entrega das condecorações, todos os participantes tomaram
parte num piquenique organizado ao ar livre, junto ao Santuário do Bom Jesus de
Braga, à sombra de frondosas árvores.
Tal
como sucedera por ocasião do primeiro encontro, na residência oficial do
Representante de Portugal às Nações Unidas, em Nova Iorque, também em Braga,
durante o piquenique, aproveitei a ocasião para tentar trocar impressões com o
Presidente da República sobre questões relacionadas com a política do governo
português junto dos portugueses da
diáspora. E tal como sucedera em 1974, em que Mário Soares se furtou ao
diálogo, também em 1990, mutatis mutandis, sucedeu a mesma coisa, provavelmente por
achar que os portugueses da diáspora não eram dignos das atenções de quem como
ele, além de Presidente da República, ex-Primeiro Ministro e ex-Ministro dos
Negócios Estrangeiros, era l’ami de
Monsieur Mitterrand, de Willy Brandt, de Olof Palme e de outros estadistas
célebres.
Em
compensação, e em gritante contraste com o comportamento do seu ilustríssimo
marido, a Primeira Dama, a D.ra Maria de Jesus Barroso, ao saber que eu era
professor de Português numa universidade americana, entrou em conversa comigo,
com a maior simplicidade, começando por me perguntar se eu por acaso conhecia
um professor de Português da Universidade da Califórnia em Los Angeles, chamado
Eduardo Mayone Dias, o qual – dizia-me ela com entusiasmo – tinha sido colega
dela na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. E, no decorrer da
conversa, sendo vago conhecedor da carreira de declamadora e de actriz de Maria
Barroso, numa fase longínqua da sua vida, aproveitei para lhe lembrar alguns
dos seus grandes êxitos no palco, dando especial relevo à encenação, em estreia
absoluta, no Teatro Nacional, da peça de teatro de José Régio: Benilde ou a Virgem Mãe, drama em três actos, em que ela, D.ra
Maria Barroso, desempenhou com brilhantismo o papel da protagonista, facto que
José Régio fez questão de registar, com orgulho, nas Páginas do Diário Íntimo (Lisboa:
IN-CM, 2004, p. 230).
No
termo dessa conversa com Maria Barroso pude concluir que ela era dotada de uma
grande curiosidade intelectual, vivia apaixonadamente as coisas da cultura e
tinha saudades dos seus tempos áureos de declamadora e de actriz.
António Cirurgião
Penetrante descrição de Soares , através do "retrato" da Dra.
ResponderEliminarMaria Barroso...
Penetrante descrição de Soares , através do "retrato" da Dra.
ResponderEliminarMaria Barroso...
Consta que soares não gostou do retrato de pomar.
ResponderEliminarMas não teve coragem de lho dizer.
Mostra um gesticulante vendedor de banha da cobra.
Um burlador palpitante, habituando ao mando e à cumplicidade sobre quem se achava com superioridade moral e credor de favores, prebendas e lugares.
Pairava sobre a grei, qual um "alfa" sobre esfaimada matilha.
Um sátrapa.
Vou-me repetir mas é uma delícia ler estas suas memórias!
ResponderEliminarSr.(S.ra) Camisa,
ResponderEliminarMuito obrigado pelas suas amáveis e generosas palavras.
Cordiais saudações
do
Cirurgião
Foi o Doutor António Cirurgião que um dia falando comigo na Galeria de Constância me convidou a pesquisar sobre os seus estudos em torno da "Lusitânia transformada". Na altura eu deveria ter uns 23 anos (dirigi o orfeão que actuou na inauguração do Jardim-horto de Camões inaugurado por Mário Soares). Obrigado pela sugestão.
ResponderEliminarNa sequência da sugestão que me fez escrevi por exemplo este texto que sujeito ao seu crivo se tanto merecer: https://www.entroncamentoonline.pt/portal/romaria-dos-martires-ou-dos-milagres-de-constancia-ecos-na-obra-de-camoes/
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