segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Lisboa, 1879.

 
 
 
 
Marie-Laetitia de Solms (1831-1902)
 
 
 
         É sobejamente conhecido o célebre livro da princesa Rattazzi, Le Portugal à vol d’oiseau – Le Portugal et les Portugais, saído em Paris em 1879 e com um profundo e polémico impacto no nosso país. A melhor edição dessa obra, com introdução e notas de José M. Justo, foi publicada entre nós em 1997, pela Antígona, sendo dela que se publica este brevíssimo trecho:
 
Mosteiro dos Jerónimos, 1879
 
 
Em testemunho da boa e leal verdade deve fazer-se justiça aos habitantes de Lisboa: o que entre eles há de mais notável não é à sua indústria que o devem, é à natureza que se deleitou em benevolências, que tudo lhes concedeu, entre outras coisas uma admirável, o Tejo, e depois de os acariciar como filhos mimosos da fortuna, recolheu-se ao silêncio do descanso para ver e observar o que eles fariam desses dons privilegiados. Sim, o Tejo é verdadeiramente belo e eu admiro-o com toda a sinceridade da minha alma: não porque o rio possua, como afirmam as liras hiperbólicas dos poetas, ou como talvez possuísse em tempos pré-históricos, as famosas margens floridas, habitualmente cantadas em odes laudatórias; ou ainda porque enrola e desenrola as suas águas puras e transparentes em que se espelha, orgulhoso, o céu azul; mas porque é grande, desafogado, aformoseado de amplos e luminosos horizontes e abriga um dos mais esplêndidos ancoradouros do mundo.
         Subir o Tejo, desde a barra até Lisboa, é um dos espectáculos que valem bem toda uma viagem. É simplesmente maravilhoso! Deixando-se o mar, e salva essa passagem que é a entrada na barra, manobra laboriosa para as embarcações de grande lote em consequência da acumulação e deslocação quotidiana das areias, seguimos rio acima. As margens estreitam-se, a massa de água contém-se sensivelmente num leito de menores proporções, entre a torre de Belém e o Lazareto; depois, conservando sempre na distância de algumas centenas de metros uma largura média, desenvolve-se e dilata-se novamente no centro da própria Lisboa, entre o Arsenal da marinha, na margem direita, e o Barreiro e a Aldeia Galega, na margem esquerda, numa extensão superior a três léguas; ostentando a mais admirável bacia onde quotidianamente dão fundo centenares de navios, e onde todas as armadas e frotas do universo estariam perfeitamente, comodamente, podendo manobrar à vontade sem perigo de abalroamentos.
         Não há espectáculo mais grandioso nem gozo superior ao de aportar a Lisboa, vindo do Alentejo, embarcando no Barreiro, e cortar o Tejo na sua maior amplidão. A cidade abre-se então como um leque aos olhos deslumbrados do touriste, com os seus milhares de casas disseminadas na espalda das colinas e nas cumeadas dos montes.
         (…)
         Lisboa, com os passeios e calcetamentos angulosos, afigura-se-nos um alegrete de cardos e azevinhos simetricamente guarnecido de buxo. Dir-se-ia que houve um prazer especial em reunir todas as pedras pontiagudas ou chanfradas que se encontraram no país para adrede as semear sob os pés dos transeuntes. Alguém me disse: «Quando deixaremos de caminhar sobre escórias de bronze? Onde diabo iria a câmara municipal buscar estes engenhos de tortura e destruição? Não há razão para nos admirarmos que os pés femininos sejam aqui verdadeiros pés de estátuas!»
         Afinal, tudo isto condiz perfeitamente com os estendais de camisas, calças, cobertas de cama, cobertores esfarrapados, saias e outras variedades de trapos pendurados sobre as nossas cabeças na maior parte das ruas, balouçando-se nas janelas ao sabor da viração.
         Muitas ruas, porém, constituem excepção e não oferecem aos transeuntes esses picarescos aspectos. Algumas são verdadeiramente notáveis. Infelizmente, figuram em minoria e como que parecem perdidas no labirinto.
         Os monumentos, as praças públicas, os passeios correspondem ao resto. A cada passo se nos deparam belezas dignas de menção e quase todas devidas à munificência da natureza.
         Os monumentos não abundam em Lisboa e aos estrangeiros que, desembarcando, pedem para os ver, faz-se ouvidos de mercador.
 
Maria Rattazzi   
 
    

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