Paula Rego, Salazar a Vomitar a Pátria, 1960
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Foi
durante o congresso internacional camoniano, realizado em Abril de 1980, na
Universidade de Toronto, no Canadá, para comemorar o IV Centenário da morte de
Camões. Entre os conferencistas e participantes, encontrava-se também António
José Saraiva.
Pede
a modéstia que cale, mas manda a verdade que diga que, para agradável surpresa
minha, António José Saraiva, camonista de mérito e humanista respeitável, teve
a amabilidade de elogiar a minha comunicação – “Leitura alegórica do Auto
dos Anfitriões de Camões”
(publicada primeiro na revista Bracara
Augusta, Janeiro-Junho de 1980, e depois no meu livro Leituras Alegóricas de Camões e outros estudos de literatura portuguesa,
Lisboa, IN-CM, 1999) – e de se pôr a conversar e a confraternizar comigo, tendo
esse facto sido o início de um intermitente convívio transatlântico que viria a
prolongar-se pelos anos fora.
No
penúltimo dia do congresso, se não me engano, o Cônsul Geral de Portugal em
Toronto deu uma solene recepção e um opíparo jantar a todos os congressistas e
a algumas pessoas gradas da comunidade luso-canadiana. Em determinado momento,
no decorrer dessa recepção e desse jantar, António José Saraiva, em visível
estado de euforia, mas com a maior lucidez e na melhor das disposições,
aproxima-se de mim e diz-me estas palavras textuais:
- Ó Cirurgião,
vamos fazer uma irreverência?
Refeito
do meu espanto, perante uma saída dessas, voltei-me para ele e perguntei-lhe
que tipo de irreverência tinha em mente.
- Por exemplo - apressou-se ele a sugerir - tiramos os casacos e as gravatas,
subimos para cima de uma mesa, pedimos silêncio, e gritamos bem alto: - Viva Salazar!
Dizer
da minha estupefacção diante de tal proposta é desnecessário. É que António
José Saraiva, historiador da literatura e cultura portuguesas, crítico
literário, ensaísta e autor, em parceria com Óscar Lopes, da melhor História da Literatura Portuguesa do seu
tempo, era para mim, acima de tudo, o homem que professava ostensivamente o
Marxismo e que, entre 1960 e 1974, conhecera as agruras do exílio, ou, pelo
menos, do autoexílio, durante o regime salazarista. E, sendo assim, ele, para
mim, poderia ser tudo, menos admirador público de Salazar, mesmo que essa
proclamação de admirador fosse feita em tom festivo e irreverente. Mas, feita
essa estranha e bizarra proposta, António José Saraiva desceu do mundo onírico
e fantasista em que por momentos gravitara e voltou ao mundo prosaico da
realidade. Com o que quero dizer que, na nossa condição de cidadãos livres, ele
e eu, alegres e oriundos de um país finalmente democrático, depois de longas
décadas de ditadura, brindámos à nova democracia portuguesa e divertimo-nos
muito durante essa recepção e esse jantar e noutros momentos do congresso, e
que António José Saraiva não voltou a falar-me de irreverência idêntica à que me
propusera durante a recepção dada pelo Cônsul Geral Português em Toronto.
Vieram
as férias de Verão desse ano lectivo e, como de costume, parti para Portugal, a
fim de fazer pesquisas literárias nas bibliotecas e nos arquivos portugueses e
visitar a família e os amigos. Quase logo após a minha chegada, encontrei-me
com António José Saraiva na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde
ele era então professor. Após os cumprimentos, perguntei-lhe o que pensava da
política portuguesa.
Sem se fazer rogado, António José Saraiva informou-me
em tom maior, sem quaisquer reticências nem ressalvas, que Portugal estava a
saque; que a Revolução de Abril tinha falhado redondamente; que a tão apregoada
“descolonização exemplar” tinha sido desastrosa; que o ensino andava pelas
portas da amargura e que a vida académica portuguesa não passava de uma farsa e
de uma fraude. Que me dava um exemplo. Dias antes, dirigindo-se ele para uma
sala de aula na Faculdade de Letras, alguém lhe dá uma palmadinha nas costas,
dizendo:
- Então, Colega,
como está?
Ele volta-se e qual não é o seu
espanto quando dá com os olhos na pessoa que assim o cumprimentava. É que se
tratava, nada mais, nada menos - dizia-me
António José Saraiva com mal disfarçada raiva, à mistura com uma visível dose
de desânimo e de tristeza - de um indivíduo
que ele conhecera vagamente em Paris, durante o seu exílio político, indivíduo
que fazia uns vagos cursos numa vaga universidade francesa de classe inferior.
Um rapazola – prosseguiu ele -, sem quaisquer
credenciais e sem qualquer cultura, que tomara de assalto, como vários dos seus
comparsas, um posto de professor na Universidade de Lisboa e noutras
universidades do país. Que perante essa e tantas outras misérias a que a
chamada Revolução dos Cravos levara Portugal só havia um remédio para pôr ordem
nas coisas públicas e governar esse país ingovernável: restaurar a monarquia e
inventar um reizinho, uma figura de cariz paternal, à imitação de Salazar.
Ao
ouvir essas palavras, disse a António José Saraiva que eu lhe fizera uma
pergunta séria e que agradecia que me desse uma resposta séria, começando por
lhe chamar a atenção para a injustiça que fazia a si próprio e a tantos outros
professores competentíssimos a quem o regime ditatorial de Salazar tinha
fechado as portas das universidades portuguesas, unicamente por razões políticas,
e a quem a Revolução de Abril, num acto de louvável justiça exemplar, lhas
tinha aberto.
Perante
esta minha observação, António José Saraiva disse-me que, independentemente de
reconhecer esse facto irrefutável, nunca falara tanto a sério como nesse
momento. Que se eu não vivesse do outro lado do Atlântico e visse bem as coisas
por dentro, como ele as via, a toda a hora, pensaria da mesma maneira que ele.
Essas
palavras de António José Saraiva deixaram-me tão intrigado, que eu, quando uns
dias depois me encontrei com a Professora Maria de Lourdes Belchior, não
resisti a referir-lhe esse facto. Que não podia ser – apressou-se ela a dizer. Que
ela não acreditava nisso. Que eu não conhecia António José Saraiva. Que ele
estava certamente a brincar comigo. Mas eu insisti que ele me garantira que
falara a sério. Que, aliás, eu tinha precedentes. E para lhe provar a razão de
ser da minha afirmação, contei-lhe o episódio ocorrido em Toronto, em 1980, por
ocasião do congresso internacional camoniano. Que não senhor: ela tinha a
certeza que António José Saraiva não pensava assim – rematou categoricamente
Maria de Lourdes Belchior.
Ora
aconteceu que quando, uns dias mais tarde, a Maria de Lourdes Belchior e eu nos
íamos sentar para almoçarmos juntos num restaurante de Campo de Ourique, na Rua
do Patrocínio, demos com os olhos em António José Saraiva, sentado a uma mesa
sozinho, a acabar de almoçar. Fomos cumprimentá-lo e António José Saraiva
convidou-nos a sentar-nos à mesa dele, o que nós fizemos. À sobremesa, eu
encaminhei a conversa para a política portuguesa, a fim de tirar a prova real
às convicções políticas de então de António José Saraiva. Depois de ele
proferir os maiores horrores sobre a situação política, social, económica e
cultural de Portugal, eu perguntei-lhe que remédios aventava ele para
solucionar essa deplorável situação. E a resposta dele não se fez esperar. “Essa
deplorável situação” resolvia-se com a restauração da monarquia, com um
reizinho, uma figura paternal, à imitação de Salazar. Só dessa maneira se
poderiam governar os portugueses, o povo mais individualista e ingovernável do
planeta - concluiu António José Saraiva.
A
Professora Maria de Lourdes ficou boquiaberta, mas convencida de que, na
realidade, era assim que pensava por esse tempo António José Saraiva.
Um
dia contei estes factos à D. Mécia de Sena, já depois da morte do marido. Ficou
ela surpreendida? De maneira nenhuma. Surpreendida ficaria se António José
Saraiva persistisse na ortodoxia marxista que tinha publicamente assumido para
atingir os seus objectivos políticos e académicos. Que Jorge de Sena tinha
percebido isso há muito tempo. Uma das provas encontrava-se na dedicácia com
que o mimoseara (aos que porventura não saibam esclareço que as Dedicácias de Jorge de Sena são as
herdeiras legítimas das Cantigas de
Escárnio e Maldizer dos nossos virtuosos e castos avoengos medievais). Que,
continuou Dona Mécia, tendo vestido em jovem a farda da Mocidade Portuguesa e
tendo sido legionário, António José Saraiva ainda um dia voltaria ao culto
salazarista. Que se eu o não sabia, que ficasse a sabê-lo: o Marxismo de
António José Saraiva tinha sido recebido em segunda mão, do irmão de D. Mécia,
Óscar Lopes. Esse, sim, tinha lido e compreendido Marx e tinha abraçado o
Marxismo-Leninismo em jovem. Que pela sua filiação no PCP (Partido Comunista
Português), pela sua firme profissão de fé no Marxismo-Leninismo e pela sua
prática fiel, sofrera ele as consequências e estivera preso e fora impedido de
ensinar numa universidade portuguesa, enquanto não chegou a Revolução de Abril.
O Marxismo de António José Saraiva, pelo contrário, prosseguiu D. Mécia, tinha
sido colado com cuspe, o que aliás me tinha sido dito, vários anos antes, pelo
próprio Jorge de Sena, mas a que eu não tinha dado a atenção que essa
informação – e afirmação - de Jorge de
Sena merecia, por nesse tempo eu ainda não conhecer pessoalmente António José
Saraiva.
António Cirurgião
Para já não falar das patifarias que a mesma personagem fez a J. Rentes de Carvalho e que foram alvo de processo judicial em que AJS foi considerado culpado e condenado.
ResponderEliminarhttp://tempocontado.blogspot.pt/search?q=saraiva
ResponderEliminarPode ser verdade, mas isso apenas evidencia o carácter irreverente, rebelde e sumamente independente de AJS. Para avaliar o seu mérito intelectual torna-se irrelevante a exigência de coerência política, que, essa AJS, claramente não a tinha. Mas a sua obra atesta com exuberância a sua originalidade analítica sobre temas da cultura portuguesa, bem como o seu domínio da Língua, equiparado aos melhores paradigmas históricos que conhecemos que se exprimiram nesta culta, doce e esbelta Língua, «última filha do Lácio». António Viriato, 13Dez2017
ResponderEliminarPode ser verdade, mas isso apenas evidencia o carácter irreverente, rebelde e sumamente independente de AJS. Para avaliar o seu mérito intelectual torna-se irrelevante a exigência de coerência política, que, essa AJS, claramente não a tinha. Mas a sua obra atesta com exuberância a sua originalidade analítica sobre temas da cultura portuguesa, bem como o seu domínio da Língua, equiparado aos melhores paradigmas históricos que conhecemos que se exprimiram nesta culta, doce e esbelta Língua, «última filha do Lácio». António Viriato, 13Dez2017
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