quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Memórias perdidas - 5

 
 
 
 
 
 
 
 
         Há dias, falei aqui das memórias perdidas de um Casanova lusitano, que pontificou na Lisboa boémia e na linha do Estoril, entre conquistas e mil amores. O autor desse livro, como então disse, mostrava-se um tanto ou quanto reacionário em matéria política, considerando, por exemplo, ter sido desastroso o 25 de Abril de 1974.
         Cesare Pavese disse que «a vida é política», mas nem tudo o que levamos nas nossas existências breves tem de levar a marca de uma ideologia ou de um credo. Pessoas que têm a mesma visão política podem ter opiniões e práticas muito diferentes noutros domínios da vida. É o que concluímos se compararmos as memórias de Adrião Homem de Sá e este livro hoje aqui apresentado ao público-leitor do Malomil. À semelhança de Homem de Sá, Virgínia Theotónio Pereira era de um conservadorismo extremo em matéria política. Mas era igualmente ultraconservadora em matéria de costumes, de moral sexual, de religião e de tudo o mais de que é feita a nossa passagem terrena. Homem de Sá, um reacionário galã, era certamente muito vanguardista em matéria de costumes (os dele, pelo menos…); Virgínia Theotónio Pereira, pelo contrário, revela-se uma conservadora integral, total. Só lido. Irmã do embaixador Pedro Theotónio Pereira (o que lhe permitiu visitas aos Estados Unidos e a Londres, em conforto diplomático), Virgínia nasceu no Ginjal. Era lá que a família tinha os seus armazéns de vinhos, e o parto na Margem Sul deu-se por um acaso fortuito. Encontrava-se na altura a família Theotónio Pereira a passar férias de Verão nessa casa à beira-Tejo, onde tomavam «banhos de mar» (na verdade, de rio), contemplando os golfinhos que a poluição repeliu. Depois, foi uma vida vivida, contada nestas memórias de uma senhora da alta burguesia, que, mais do que monárquica, era miguelista, tradicionalista, a ponto de fustigar a Rádio Renascença pela imoralidade das letras das músicas que transmitia e transmite, impróprias de uma emissora católica… Ataca ainda tudo quanto lhe cheire a mudanças da Igreja, desde o Concílio Vaticano II ao bispo brasileiro D. Hélder Câmara, passando pelo ecumenismo (!). A dada altura, cai a máscara e desvenda-se a crua realidade: Virgínia Theotónio Pereira era uma fervorosa admiradora do integrismo ultramontano de Monsenhor Lefebvre.  
Não sendo um primor de escrita («a erudição nunca foi o meu forte», diz a autora, pedindo desculpas, nas primeiras linhas), o livro é muitíssimo interessante para reconstruir a visão do mundo de uma senhora de outra época, admiradora de Sidónio Pais, saudosista de António de Oliveira Salazar, devota de Deus, do fado e das toiradas, horrorizada pelo mundo moderno, patente na descolonização das áfricas, na degradação dos costumes, na violência contra os taxistas, na destruição do «velho» Estoril e do amado Chiado. De permeio, a Senhora Dona Virgínia Theotónio Pereira vai narrando os seus encontros com figuras como Herbert von Karajan, António Lopes Ribeiro, Fernanda de Castro, Veiga Simão, Franco Nogueira.  
Mesmo como fonte histórica, Simples Memórias (1910-1990), saído em edição de autor em 1993, é um livro assaz curioso; sendo a narradora irmã de uma das principais figuras do Estado Novo, um dos supostos «delfins» de Oliveira Salazar, as suas memórias estão recheadas de episódios, petites histoires e até trechos de correspondência que são úteis e interessantes para os historiadores do salazarismo. Para os sociólogos, um tesouro sobre o quotidiano da alta burguesia em meados do século XX: a educação de uma menina prendada, a omnipresença do «pessoal doméstico», uma visão naïf e paternalista das outras classes sociais, em especial dos pobrezinhos e humildes conformados com o seu destino.
Nas entrelinhas, ou mesmo nas linhas, uma ingenuidade desarmante. A dado passo, falando da morte de John Lennon e das homenagens à sua memória, diz Virgínia: «porque é que não deixam o rapaz em paz onde quer que esteja ou lhe rezam pela sua alma?».
Simples Memórias (1910-1990), de Virgínia Theotónio Pereira. Quem o vir, deite-lhe a mão.
 
António Araújo
 
 
 
 
 

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