Talvez
não seja de muito bom gosto contar esta história. Mas, como se diz numa
extraordinária obra da literatura portuguesa, O Diabinho da Mão Furada, «estão os gostos hoje de tão mau gosto
que se inclinam mais ao que dana do que ao que aproveita.»
A
história vem contada num livro de que não se falou muito, Vou-me embora. Cartas de suicidas, terrível antologia organizada
por Udo Grashoff e publicada entre nós em 2006, com tradução de Maria Manuel
Tinoco e chancela Quetzal.
Não posso continuar a
viver assim.
Não há remédio. Nunca
mais me hei-de recompor.
A morte é a única saída.
Já não posso ver nenhum
homem, fico perturbada, agoniada.
Ninguém me deve lamentar,
porque afinal eu é que sou a culpada de todo o problema.
Só tenho pena dos meus
pais. Não mereciam que a filha seguisse este caminho. Gosto muito dos meus
pais.
Talvez seja possível que
eles não venham a saber de nada.
Talvez seja possível
dizerem-lhe que eu tive um acidente mortal de automóvel ou qualquer coisa
assim. Gostava que não soubessem de maneira nenhuma que me matei. A minha mãe
não aguentaria, tem os nervos muito fracos.
Estas
palavras foram escritas por Júlia C., estudante de química, 22 anos, pouco
antes de se atirar de um décimo primeiro andar de um edifício. 2 de Junho de
1974, República Democrática Alemã.
Dois
dias antes, ela e uma amiga fizeram uma festa no lar de estudantes com dois
colegas soviéticos, também alunos universitários. No final da noite, Júlia C.
foi violada por um deles.
Naquela
época, como se diz no livro organizado por Udo Grashoff, «a violação de uma alemã
por um estudante soviético era, na RDA, mais do que uma tragédia privada; era
uma tragédia política. A menor das críticas ao país “Grande Irmão”, a União
Soviética, era uma “calúnia”». Por isso, sobre Júlia C. foram exercidas
inúmeras pressões para que não denunciasse o violador. As organizações que
supostamente a deviam apoiar, desde os serviços sociais às autoridades
universitárias, tudo fizeram para que ficasse calada.
No
dia 2 de Junho – o dia do suicídio – os dois estudantes voltaram para a Rússia.
Foi praticamente no mesmo minuto em que entravam no comboio, de regresso a
casa, que Júlia C. se lançou do alto de um edifício. Nesse mesmo dia, a polícia
agendara uma reconstituição da cena do crime. Talvez fosse isso o que mais perturbasse
Júlia C.
Júlia
C. dissera à sua amiga que ter de reviver os momentos da violação era, para
ela, «o pior de tudo».
O grande país irmão tinha de ser imaculado. As vítimas de Andrei Chikatilo que digam se foram mortas por um assasino em série. Supostamente esses assassinos só existiam nos países capitalistas. Depois de ler a carta fiquei sem palavras.
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