Como
todas as «memórias perdidas» de que aqui, de vez em vez, se tem falado estas Memórias de Adrião não valem pela sua
qualidade literária; não é esse, de resto, o propósito do livro nem desta
rubrica do Malomil. Crónicas de um
Aventureiro do Século XX, de Adrião Homem de Sá, foi publicado em Maio de
2006 pela Miosótis – Edição e Distribuição, Lda., Avª Almirante Reis, nº 131 –
6º Dto. No prefácio, o actor Nuno Homem de Sá – filho do autor Adrião Homem de
Sá – diz que o livro do pai fala das «aventuras dos jovens de uma certa classe
média».
Falar em «classe média», salvo o devido
respeito, parece um déclassement algo
forçado, sobretudo se tivermos presente que, logo nas primeiras páginas, Adrião
diz que sua mãe era «descendente de família nobre e abastada da Beira Litoral e
neta do Visconde de Valdoeiro» e que seu pai era «descendente de família nobre
e abastada, uma das mais antigas de Portugal». Mesmo se descontarmos alguma
jactância nobiliárquica, não há dúvida de que o jovem Adrião estava longe de
ser um produto típico da classe média urbana; em termos de classe, de
rendimentos do agregado familiar, talvez fosse da classe média (seja lá isso o
que for); no que se refere ao status,
esse intangível conceito weberiano, enquadrava-se muito mais num grupo de
meninos-família de posses flutuantes, quase sempre minguantes, mas ainda assim
cientes do seu estatuto de rapazes estroinas e bem-nascidos.
Adrião bem nasceu em Lisboa, em 1931. E
teve uma infância feliz nas Avenidas Novas da capital, entrecortada por férias
estivais em São Martinho do Porto e na Figueira da Foz. Estudou no Colégio
Vasco da Gama, mais tarde no Colégio Português de Educação Feminina, enquanto o
seu irmão frequentava o Colégio D. Filipa de Vilhena. Caiu de cabeça no Liceu
Camões, altura da vida em que fumou o seu primeiro cigarro e fez a sua primeira
visita a um bordel. Dos estudos pouco conta, pois pouco contaram para o seu
percurso vital. Com o entrar dos anos, Adrião foi ganhando corpo e porte, ambos
atléticos. Ginasticado em Carcavelos, rapaz de mar, deu-se a mil e uma
actividades físicas, seguindo o modelo de sportsman
polivalente e amador, típico da sua época e do seu meio social. Seria forcado,
e cábula inveterado. Levou um 6 a Matemática, no Liceu Camões – que, por causa
disso, teve de abandonar, crê-se que sem mágoa de espécie alguma. Matriculou-se
então no Colégio Académico, aos Anjos, enquanto descobria as artes do salto e
da prancha numas férias no Hotel do Luso, recém-inaugurado. Às tantas, de
tantas, Adrião virou boémio. O livro percorre, em cadência alucinada, uma
sucessão de proezas amorosas e sexuais, contadas com basta gabarolice por este
antigo aluno do Instituto Nacional de Educação Física. Também muito clássica, a
referência às mulheres estrangeiras e o estereótipo, verdadeiro ou mitológico,
de que seriam mais desinibidas – ou «fáceis», no jargão de Adrião – do que as
suas congéneres lusitanas que, de capelina, iluminavam a Bénard e a Marques, ao
Chiado, ou a Versailles, nas Avenidas Novas. Entre patuscadas e estroinices
mil, foi atropelado pela paixão dos carros, não sendo ao acaso que muitos dos
amigos de borga de Adrião tenham acabado, como ele, na distinta profissão de
vendedores de automóveis. Para isso tinham figura e lábia, impressionando os
potenciais compradores e compradoras em stands
de novos/usados onde pontificavam estes meninos-bem, todos do Sporting, claro, que
iam envelhecendo galãs, com três ou quatro casamentos às costas – mas sem nunca
perderem a pose, de artistas.
Não há nada de especialmente relevante
nesta vida, que se viveu apenas. Farras, patuscadas, loucuras mais ou menos
inocentes, um mergulho de cabeça na Lisboa boémia, dos cabarets e dos ardinas,
dos filmes de Fu Man Chu vistos em cinemas ruidosos, dos tascos abertos até de
madrugada. O Parque Mayer, de actrizes e coristas, a Feira Popular mais os seus
tirinhos, as sanduíches da Tendinha do Rossio ou do Zé do Quiosque, as entradas
à má fila nas recepções das embaixadas, uma ou outra noite terminada na
esquadra. O bife do Monte Carlo, noitadas no Maxim’s e no Ritz club, o trivial
da boémia. E, suprema pândega, as idas ao estrangeiro, à Espanha vizinha, noitadas
no famoso cabaré Pasapoga, Gran Vía, Madrid. «Sempre na pista do feminino»,
assim se intitula um dos capítulos, que assim resume a juventude de Adrião
Homem de Sá, Naturista militante, praticante de caça submarina, fez tropa em
Cavalaria, Torres Novas, estudou para piloto em São Jacinto, bon vivant, jogador no Casino, lavador
de janelas e mâitre de restaurante em
Londres. Esteve na Exposição de Bruxelas, em 1958, correu a Europa de uma ponta
à outra, acabando por assentar em Lisboa, empregando-se na firma Guérin, onde
começou a lavar carros e terminou em postos de maior responsabilidade, como
gerente da oficina da VW, por exemplo. Casou-se, separou-se, recasou-se, teve
filhos, diz-se feliz. No meio da borga, uma existência normal, em larga medida
previsível, mesmo quando Adrião se gaba, sem excesso de pormenores escabrosos,
das hospedeiras da TWA que seduziu ou das mil e uma aventuras amorosas que teve,
desde Copenhaga, Dinamarca, ao Hotel Tivoli, Lisboa, passando por Marbella ou
Torremolinos. Politicamente, e como também seria de esperar, arrasa o 25 de
Abril, a que chama «logro». Não sei se ainda é vivo. Mas que viveu, viveu.
António
Araújo
"Todos do Sporting, claro" - este "claro" contraria o precioso ditto de um excelso benficoiso que dizia o seu clube ser "fino e popular". "Fino" é que é do género.
ResponderEliminar