Só nas primeiras impressões, A
Grande Onda terá vendido mais de cinco mil cópias.
Para este sucesso comercial terá contribuído o preço da xilogravura,
equivalente a duas taças de massa que eram, e são, o prato vulgar do Japão, mas
também outro facto singelo: ao contrário de nós, os japoneses lêem da direita para a esquerda.
Daí que a colocação da grande vaga no lado esquerdo da gravura, prestes a
rebentar sobre a margem direita, confira à imagem uma dinâmica e um efeito
muito próprios, que iam plenamente ao encontro, se quisermos, da forma japonesa de ler o mundo. Compare-se, por exemplo, o original de Hokusai e um mural criado em 1988 pelo artista Domonic Swords na empena de um prédio em Camberwell, no sul de Londres (aqui).
Como também se salienta no documentário da BBC The Private Life of a Masterpiece – The Great Wave, de 2004, A Grande Onda apresenta uma imagem
estática, «congelando» o tempo num milésimo de segundo, aquele em que a gigante
parede de água está prestes a desabar sobre os barqueiros da costa do Monte Fuji.
A obra foi produzida num tempo que desconhecia a fotografia. Imagine-se o que seria, para um japonês da época, contemplar aquelas ondas revoltas, capturadas num instante decisivo e único, exactamente como o fazem os fotógrafos. E, se a compararmos com o delicado e suave imobilismo das gravuras japonesas da altura, da corrente dos «mundos flutuantes» (ukiyo-re) dos séculos XVII-XIX, apercebemo-nos facilmente de que A Grande Onda, com a invocação do movimento tenebroso dos mares, trazia consigo algo de novo para os japoneses. Estamos longe, muito longe, da placidez idílica dos «mundos flutuantes» e da paisagem que Lafcadio Hearn (1850-1904) descreveria em O Japão. Uma antologia de escritos sobre o país (Edições Cotovia, 2005):
«Visão azul de fundura perdida em altitude − mar e céu dissolvidos por uma luminosa bruma. O dia é Primavera, e a hora, de alvorada. Apenas céu e mar − uma imensidão azul-celeste. À frente, as ondas cativam uma luz prateada, e fiadas de espuma redemoinham qualquer coisa, excepto a cor: um pálido e ameno azul de água que se alonga e dilui num azul de ar. Horizonte, não há: só uma distância dilatada no espaço – uma infinita concavidade que se abre à frente dos nossos olhos, e se arqueia prodigiosamente por cima de nós – e a cor que se intensifica com a altura.»
Curiosamente, só há muito pouco tempo, por volta de 2005, foi fixado no
Japão um nome convencional para aquela que, sendo provavelmente a obra de arte
mais conhecida do país, pouco tem da pureza da alma nipónica e da sua
identidade ancestral.
Esta dupla atracção exótica, de Oriente para Ocidente e vice-versa,
resulta da hibridez e da ambiguidade de A
Grande Onda e é uma das chaves dos seus infindáveis segredos.
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