Depois de um mês bastante atípico, durante o
qual um caudaloso rio de tinta encheu por completo as páginas culturais dos
jornais portugueses, dirigi-me por fim, carregado de curiosidade, ao Museu de
Arte Contemporânea de Serralves para ver a exposição “Robert Mapplethorpe: Pictures”
comissariada por João Ribas. Uma vez que a quase totalidade dos litros desse
rio de tinta se destinou a analisar o conflito entre a administração da
Fundação e a direcção artística do Museu, vou tentar concentrar-me no
“pormenor” que tem merecido menos atenção: a exposição em si. E a esse
respeito, infelizmente, é difícil elogiar.
Já tive a oportunidade de escrever, há cerca de
dois anos, sobre a admiração que sinto por Serralves (*). E realcei, nesse
texto, que nem os eventos menos conseguidos do historial da instituição punham
em causa esse sentimento. Acontece que, nesta última visita, o “inconseguimento”,
para usar a famosa expressão da antiga Presidente da Assembleia da República,
assumiu, aos meus olhos, uma forma original. Não esteve relacionado, como das
outras vezes, com uma opinião negativa sobre o artista ou sobre as obras
expostas. Estranhamente, julgo ter sido exactamente o inverso: foi a qualidade
(talvez mesmo perfeição) do trabalho de Mapplethorpe e a excelência e variedade
do acervo reunido no Porto que me deixou com a sensação de estar perante uma
oportunidade perdida.
Ao contrário das “capitais culturais do mundo”,
como Londres, Paris ou Nova Iorque, as cidades portuguesas, incluindo Lisboa,
estão normalmente ausentes dos circuitos das grandes mostras de arte. É verdade
que esta não é a primeira vez que os trabalhos de Mapplethorpe são apresentados
no nosso país, mas é a primeira vez (e talvez a última) que somos presenteados
com uma retrospectiva desta importância e dimensão, com mais de 150 obras do
autor. No panorama cultural nacional, um momento assim é mais conjuntural do
que estrutural, representa a excepção e não a regra, decorrendo daí a
necessidade de o aproveitar em pleno. O que, na minha opinião, não aconteceu.
Já em vida, durante as exposições, Mapplethorpe
se queixava da concentração quase exclusiva do público nas fotografias
relacionadas com sexo, mesmo quando dois terços das imagens apresentadas eram
respeitáveis retratos e inocentes naturezas-mortas. É uma espécie de maldição,
e talvez seja o motivo que origina aquela que considero a falha capital de
Serralves: a quase completa ausência de informação, nas salas do Museu, sobre o
que está pendurado nas paredes. Porventura convencidos de que os visitantes se deslocariam
à Marechal Gomes da Costa apenas com a curiosidade de ver pilas, não se
aproveitou devidamente a obra de Robert Mapplethorpe numa das suas facetas mais
interessantes: a de testemunho e lição sobre uma época extraordinária. É que,
contrariamente ao que pensa muita gente, o artista nova-iorquino não se limitou
a explorar a anatomia íntima dos seres humanos e as práticas pouco ortodoxas do
bas-fond da cidade; ele movimentou-se
no espaço vital da contracultura dos anos 60 e 70, entre o Hotel Chelsea e o clube
Max's Kansas City, e retratou, de uma forma única, muitos dos seus ícones. E, a
não ser que a mostra portuense se destine apenas a conhecedores, salta à
evidência a falta de contextualização, sendo que nem a umas singelas legendas
com o nome do retratado o visitante tem direito.
Vamos partir do princípio que a maioria das
pessoas identifica e sabe alguma coisa sobre Arnold Schwarzenegger, Richard
Gere e Iggy Pop. Ou que até consegue distinguir nas paredes de Serralves as
actrizes Susan Sarandon e Isabella Rossellini. Mas qual será a percentagem de
visitantes que irá reconhecer o compositor Philip Glass, o encenador Robert
Wilson, a cantora e actriz Marianne Faithfull ou a artista plástica Louise
Bourgeois? E não é só uma questão de identificação mas também de contexto: Andy
Warhol era a grande referência de Mapplethorpe e a figura tutelar, na companhia
da sua “corte”, da cena nova-iorquina em que ele se movimentava; a cantora-poeta
Patti Smith foi a cúmplice de uma vida numa relação tão poética e livre como
invulgar e inocente; o escritor beat William
Burroughs era um dos “Professores” de Patti na “Universidade” (palavras dela) que
nasceu no Hotel Chelsea; e Sam Wagstaff, um importante curador e colecionador,
financiou a carreira do fotógrafo enquanto cimentava o estatuto de seu mentor e
principal amante. Todos estão em Serralves e todos mereciam pequenos textos
informativos que interpretassem as relações existentes e o ambiente em que se
desenvolveram, que explicassem a orquestração, o enquadramento e a composição das
fotografias, e que ensinassem (sim, que ensinassem) algo ao comprador do bilhete
de entrada. Independentemente da opinião que possamos ter sobre os seus
excessos, aquela foi, sem qualquer dúvida, uma época culturalmente relevante e
marcante.
Por interesse e curiosidade, mal saí de
Serralves fui procurar material para estudar. Agora, quando tiver tempo e
vontade de gastar mais 10 euros, irei ver pela segunda vez a exposição “Robert
Mapplethorpe: Pictures”. Moro a uma dúzia de quilómetros do Museu e tenho por
isso a oportunidade de rectificar facilmente a má impressão inicial; muitos
outros, portugueses e estrangeiros, não o conseguirão fazer. Visto estarmos
perante uma mostra que começou a ser preparada, de acordo com as notícias, em
Janeiro de 2017, não se compreende o aparente amadorismo. As recentes revelações
sobre a tensão prolongada entre João Ribas e a administração, a serem
verdadeiras, podem ser uma parte da explicação. Todavia, tendo em conta que o
curador participou na inauguração e até fez a primeira visita guiada antes de
se demitir, dificilmente poderá escapar a uma substancial parte da
responsabilidade.
(*) texto originalmente publicado no jornal
Público e disponível, com fotografias, em http://malomil.blogspot.com/2016/10/serralves-mon-amour.html
Sérgio Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
Concordo totalmente, aliás no meu caso em que tenho muita falta de "educação artística", na maior parte das vezes aprecio mais o contexto e a interpretação do artista do que a própria obra em si!
ResponderEliminarEu o museu que até hoje mais gostei de visitar foi o Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz, em Berlim, precisamente porque tinha tudo magnificamente explicadinho. Visitar aquilo era uma verdadeira aula de história da arte.
ResponderEliminarPor outro lado, eu diria que, na maior parte das exposições na maior parte dos (bons) museus, é como na de Mapplethorpe: nada está explicado. Eu diria (posso estar enganado) que o comum é isso: as obras são apresentadas, é dada a data e o título, e mais nada.
Nesta exposição nem sequer existem legendas com o título e a data! Há um folheto com um mapa e o visitante tem de fazer uma "caça ao tesouro" para tentar descobrir qualquer coisa.
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