segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Mapplethorpe em Serralves: uma oportunidade mais ou menos perdida.

 
 
 





Depois de um mês bastante atípico, durante o qual um caudaloso rio de tinta encheu por completo as páginas culturais dos jornais portugueses, dirigi-me por fim, carregado de curiosidade, ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves para ver a exposição “Robert Mapplethorpe: Pictures” comissariada por João Ribas. Uma vez que a quase totalidade dos litros desse rio de tinta se destinou a analisar o conflito entre a administração da Fundação e a direcção artística do Museu, vou tentar concentrar-me no “pormenor” que tem merecido menos atenção: a exposição em si. E a esse respeito, infelizmente, é difícil elogiar.
Já tive a oportunidade de escrever, há cerca de dois anos, sobre a admiração que sinto por Serralves (*). E realcei, nesse texto, que nem os eventos menos conseguidos do historial da instituição punham em causa esse sentimento. Acontece que, nesta última visita, o “inconseguimento”, para usar a famosa expressão da antiga Presidente da Assembleia da República, assumiu, aos meus olhos, uma forma original. Não esteve relacionado, como das outras vezes, com uma opinião negativa sobre o artista ou sobre as obras expostas. Estranhamente, julgo ter sido exactamente o inverso: foi a qualidade (talvez mesmo perfeição) do trabalho de Mapplethorpe e a excelência e variedade do acervo reunido no Porto que me deixou com a sensação de estar perante uma oportunidade perdida.
Ao contrário das “capitais culturais do mundo”, como Londres, Paris ou Nova Iorque, as cidades portuguesas, incluindo Lisboa, estão normalmente ausentes dos circuitos das grandes mostras de arte. É verdade que esta não é a primeira vez que os trabalhos de Mapplethorpe são apresentados no nosso país, mas é a primeira vez (e talvez a última) que somos presenteados com uma retrospectiva desta importância e dimensão, com mais de 150 obras do autor. No panorama cultural nacional, um momento assim é mais conjuntural do que estrutural, representa a excepção e não a regra, decorrendo daí a necessidade de o aproveitar em pleno. O que, na minha opinião, não aconteceu.
Já em vida, durante as exposições, Mapplethorpe se queixava da concentração quase exclusiva do público nas fotografias relacionadas com sexo, mesmo quando dois terços das imagens apresentadas eram respeitáveis retratos e inocentes naturezas-mortas. É uma espécie de maldição, e talvez seja o motivo que origina aquela que considero a falha capital de Serralves: a quase completa ausência de informação, nas salas do Museu, sobre o que está pendurado nas paredes. Porventura convencidos de que os visitantes se deslocariam à Marechal Gomes da Costa apenas com a curiosidade de ver pilas, não se aproveitou devidamente a obra de Robert Mapplethorpe numa das suas facetas mais interessantes: a de testemunho e lição sobre uma época extraordinária. É que, contrariamente ao que pensa muita gente, o artista nova-iorquino não se limitou a explorar a anatomia íntima dos seres humanos e as práticas pouco ortodoxas do bas-fond da cidade; ele movimentou-se no espaço vital da contracultura dos anos 60 e 70, entre o Hotel Chelsea e o clube Max's Kansas City, e retratou, de uma forma única, muitos dos seus ícones. E, a não ser que a mostra portuense se destine apenas a conhecedores, salta à evidência a falta de contextualização, sendo que nem a umas singelas legendas com o nome do retratado o visitante tem direito.
Vamos partir do princípio que a maioria das pessoas identifica e sabe alguma coisa sobre Arnold Schwarzenegger, Richard Gere e Iggy Pop. Ou que até consegue distinguir nas paredes de Serralves as actrizes Susan Sarandon e Isabella Rossellini. Mas qual será a percentagem de visitantes que irá reconhecer o compositor Philip Glass, o encenador Robert Wilson, a cantora e actriz Marianne Faithfull ou a artista plástica Louise Bourgeois? E não é só uma questão de identificação mas também de contexto: Andy Warhol era a grande referência de Mapplethorpe e a figura tutelar, na companhia da sua “corte”, da cena nova-iorquina em que ele se movimentava; a cantora-poeta Patti Smith foi a cúmplice de uma vida numa relação tão poética e livre como invulgar e inocente; o escritor beat William Burroughs era um dos “Professores” de Patti na “Universidade” (palavras dela) que nasceu no Hotel Chelsea; e Sam Wagstaff, um importante curador e colecionador, financiou a carreira do fotógrafo enquanto cimentava o estatuto de seu mentor e principal amante. Todos estão em Serralves e todos mereciam pequenos textos informativos que interpretassem as relações existentes e o ambiente em que se desenvolveram, que explicassem a orquestração, o enquadramento e a composição das fotografias, e que ensinassem (sim, que ensinassem) algo ao comprador do bilhete de entrada. Independentemente da opinião que possamos ter sobre os seus excessos, aquela foi, sem qualquer dúvida, uma época culturalmente relevante e marcante.
 

 
Robert Mapplethorpe optou por fotografar William Burroughs com uma arma na mão. Foi uma boa decisão do artista, mas não é em Serralves que vai encontrar a explicação para ele a ter tomado
 
 
Por interesse e curiosidade, mal saí de Serralves fui procurar material para estudar. Agora, quando tiver tempo e vontade de gastar mais 10 euros, irei ver pela segunda vez a exposição “Robert Mapplethorpe: Pictures”. Moro a uma dúzia de quilómetros do Museu e tenho por isso a oportunidade de rectificar facilmente a má impressão inicial; muitos outros, portugueses e estrangeiros, não o conseguirão fazer. Visto estarmos perante uma mostra que começou a ser preparada, de acordo com as notícias, em Janeiro de 2017, não se compreende o aparente amadorismo. As recentes revelações sobre a tensão prolongada entre João Ribas e a administração, a serem verdadeiras, podem ser uma parte da explicação. Todavia, tendo em conta que o curador participou na inauguração e até fez a primeira visita guiada antes de se demitir, dificilmente poderá escapar a uma substancial parte da responsabilidade.
  

 
 
A primeira vez que vi, julgo que no Museu Ludwig de Colónia, um ready-made de Marcel Duchamp, uma das referências de Mapplethorpe, ri-me. Tratava-se da “Roue de Bicyclette”, uma peça em que uma vulgar roda de bicicleta se encontra montada num vulgar banco de madeira. No entanto, ao lado do artefacto, uma pequena placa com uma dúzia de linhas explicava o que estava diante dos meus olhos no contexto da “revolução duchampiana”. Essa resumida informação de suporte disponibilizada pela instituição alemã levou a que, actualmente, quando na presença de um ready-made, me ria na mesma, só que de uma forma menos ignorante. E transformar um riso tolo num riso instruído é uma boa missão para um museu de arte moderna ou contemporânea. Pena que não se consiga fazer apenas pendurando fotografias nas paredes.    
 
 
(*) texto originalmente publicado no jornal Público e disponível, com fotografias, em http://malomil.blogspot.com/2016/10/serralves-mon-amour.html
 
 
Sérgio Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
 

3 comentários:

  1. Concordo totalmente, aliás no meu caso em que tenho muita falta de "educação artística", na maior parte das vezes aprecio mais o contexto e a interpretação do artista do que a própria obra em si!

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  2. Eu o museu que até hoje mais gostei de visitar foi o Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz, em Berlim, precisamente porque tinha tudo magnificamente explicadinho. Visitar aquilo era uma verdadeira aula de história da arte.

    Por outro lado, eu diria que, na maior parte das exposições na maior parte dos (bons) museus, é como na de Mapplethorpe: nada está explicado. Eu diria (posso estar enganado) que o comum é isso: as obras são apresentadas, é dada a data e o título, e mais nada.

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  3. Nesta exposição nem sequer existem legendas com o título e a data! Há um folheto com um mapa e o visitante tem de fazer uma "caça ao tesouro" para tentar descobrir qualquer coisa.

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