Simplesmente
– e independentemente do peso que tiveram numa sentença,
isto é, mesmo que sejam meros obiter
dicta, considerações marginais e laterais que em nada influenciam o
conteúdo e o sentido final e uma decisão –, há frases que não têm «contexto» que as salve nem
argumento que as redima. Tiradas ou não do contexto, exprimem um modo de pensar
que nos deve fazer pensar. Nada de generalizações apressadas, nada de julgar
que todos os juízes são assim ou mesmo que os juízes que escreveram aquilo são assim no todo das suas vidas.
Uma frase infeliz, por muito infeliz que seja, não retrata uma personalidade. O
que importa, pois, e com a máxima serenidade, é meditar, meditar um pouco,
sobre como é possível escrever coisas destas:
«Instada
sobre porque nunca foi ao hospital na sequência dos maus-tratos, disse que
tinha vergonha de o fazer, o que não é muito plausível para quem consegue
prostituir-se» (Tribunal da Relação do Porto, 2014)
«Uma
mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal,
fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral» (Tribunal da Relação do Porto,
2017)
«A
senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair
de casa» (Tribunal de Viseu, 2018)
«O
facto de a ofendida, antes de abandonar o lugar onde ficou livre o arguido, ter
anotado a matrícula do automóvel daquele, pela presença de espírito que revela,
é pouco compatível com um grande abalo psicológico» (Tribunal da Relação do
Porto, 2007)
«Conversa
pornográfica é troca de palavras com a criança ou com terceiro diante da
criança de modo a excitar sexualmente a vítima. Não está incluído o monólogo»
(Tribunal da Relação de Coimbra, 2018)
Não vale a pena dar mais exemplos,
entre tantos que a revista Visão
apresenta (alguns discutíveis e que aconselham uma leitura integral das
sentenças). Perante coisas destas, bastante recentes, mesmo parecendo medievais, seria importante, e até imperioso,
que alguém – o Centro de Estudos Judiciários, o Ministério da Justiça?, o Conselho
Superior de Magistratura? – fizesse um levantamento exaustivo e sistemático do modo
como estas questões são tratadas nos tribunais. Violência doméstica, crimes sexuais, maus-tratos, por aí fora. Uma análise rigorosa, sem
preconceitos de um sentido ou de outro, sobre el sexo de sus señorias, título de um livro algo leve e jocoso
que, há alguns anos, recenseou o modo como os
tribunais espanhóis abordam a sexualidade. Ou Antologia del disparate judicial, de Quico Tomás y Valiente, um retrato também
jocoso, em jeito de brincadeira, que, como é óbvio, não se propõe como modelo para o estudo que
deve ser feito, serena e desapaixonadamente. Um estudo sobre uma realidade nada
leve e jocosa, pois o tempo não está para brincadeiras e não, não adianta mais
esgrimir o argumento de que isto é «pressão mediática» ou uma crispação
artificial de uma ínfima parcela da opinião pública e das redes sociais, atreitas a crispações. É mais do que isso, não
adianta negar. Até para salvaguarda do prestígio do poder judicial, que
não pode nem deve ignorar mais este assunto, é tempo de agir. Antes que seja
tarde.
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