Ao acabar de ler hoje,
24 de Março, no blogue Malomil, o magnífico texto de apresentação
de Lisbonne, ville ouverte de Patrick Straumann, na Festa
da Francofonia, realizada no Instituto Franco-Portugais, ocorreu-me ir
buscar, de “entre as brumas da memória”, uma história análoga às várias
evocadas por António Araújo nesse texto.
Chamava-se Felix Freudmann.
Era judeu, de Antuérpia, e foi meu colega e meu amigo especial na Universidade
de Connecticut. Professor de literatura francesa, era especialista no teatro
francês da época de ouro, isto é, da época de Corneille, de Racine e de
Molière. Quando eu fui contratado pela Universidade de Connecticut, em 1969,
para ensinar Espanhol e Português, já ele era catedrático, com tenure,
ou contrato vitalício. Ao saber que eu era oriundo de Portugal, fez-se
imediatamente meu amigo e como que me apadrinhou. E porquê? Porque em 1940
Salazar lhe tinha salvado a vida, a ele e a toda a sua família. Que em Portugal
tinham sido tratados com todos os requintes da melhor hospitalidade, alojados
em hotéis de cinco estrelas, durante o tempo que mediou entre a chegada de
França e a partida para os Estados Unidos. Isso fez-mo saber logo por ocasião
do nosso primeiro encontro. Fez-se tão meu amigo – e vice-versa –, que, além de
nos convidarmos a casa mutuamente, com as respectivas esposas, me vi convidado
a participar no Bar Mitzvah de um dos filhos na sinagoga do campus
universitário, assim como eu me senti honrado ao convidá-lo, juntamente com
mais três casais, a assistir a uma sessão de fados protagonizada por Amália
Rodrigues, a rainha portuguesa do Fado, no salão de actos da paróquia
portuguesa de Waterbury, Connecticut. E quando nos dias 21 e 22 de Abril de
1972 realizei na Universidade de Connecticut o Primeiro Simpósio Internacional
para comemorar os quatrocentos anos da publicação de Os Lusíadas, o
Doutor Freudmann fez questão de hospedar em sua casa um dos ilustres
participantes desse Simpósio, Frederick Garcia, professor de Português na
Academia Militar de West Point.
Chegou, porém, o dia em
que, no decorrer de uma festa do departamento, dei comigo a falar mal de
Salazar, passatempo em que não era noviço. A determinado momento, o Doutor
Freudmann chama-me à parte, e diz-me, com a maior seriedade, que não pode
permitir que alguém se atreva a falar mal de Salazar na sua presença. Que
Salazar lhe tinha salvado a vida a ele e a toda a sua família. Que lhe devia
eterna gratidão. Que Salazar tinha nele e em toda a sua família os melhores
amigos e os melhores admiradores. Que com a idade de 22 anos vivia em Antuérpia
e trabalhava com a família no comércio de diamantes. Eclode a Segunda Guerra
Mundial e em 1940 as tropas nazis marcham em direcção à Europa ocidental,
avançam para a ocupação da Bélgica e da França, e ele a família vêem-se
obrigados a abandonar a pátria e a procurar asilo político. E é assim que um
dia, viajando de carro, através da França, chega a Bordéus e aí consegue um
visto, através do Cônsul de Portugal, Aristides de Sousa Mendes, para poder
refugiar-se em Portugal. E é isso o que acontece. Que o resto já o sabia eu.
Com a maior
naturalidade, apressei-me a dizer ao meu colega e amigo que louvava e admirava
a sua nobre virtude da gratidão para com quem lhe salvara a vida; mas, com todo
o respeito e com toda a firmeza, fiz saber ao meu colega e amigo que eu, que
nada devia a Salazar, e que, portanto, como homem livre que era, e a viver num
país livre, tinha todo o direito de criticar Salazar e o seu regime autoritário
e prejudicial para Portugal. Ao que o meu amigo retorquiu que, por amor à nossa
amizade, nunca mais falasse mal de Salazar na sua presença.
Veio o 25 de Abril e,
com ele, o nefando regime do PREC, contra o qual senti a necessidade e a
obrigação de falar mal. Ora é em pleno regime do PREC que o Senador Federal Ted
Kennedy faz uma visita oficial a Portugal, sob os auspícios do Partido
Socialista. Não sei se por acaso se de propósito, o Senador Kennedy vem à
Universidade de Connecticut fazer uma daquelas conferências institucionalizadas
e chorudamente remuneradas que as grandes universidades americanas têm,
anualmente. Já se advinha o tema: a Revolução Portuguesa e o Triunfo da
Democracia.
Provavelmente por razões
protocolares ou por saber que a minha visão triunfalista da Revolução dos
Cravos se tinha metamorfoseado em visão pessimista, em virtude dos atropelos
aos direitos fundamentais do homem, dos saneamentos selvagens, dos prisioneiros
políticos e da descolonização não exemplar, o professor do Departamento de
Ciência Política, encarregado da organização dessa solene conferência, optou
por não me incluir entre os convidados à recepção e ao banquete em honra do
Senador Ted Kennedy, isto apesar de eu, desde a primeira hora, ter dado
entrevistas à imprensa, à rádio e à televisão sobre a revolução de Abril e de
ter trazido, meses antes, o Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Veiga
Simão, à Universidade de Connecticut para fazer uma conferência sobre a
Descolonização Portuguesa.
Fui assistir à
conferência de Ted Kennedy, a título individual, e, no final, aproximei-me,
subrepticiamente, de um dos seus assessores, Edward Markey, hoje senador
federal por Massachusetts, para lhe entregar uma longa carta em que estavam
devidamente documentadas as práticas dos crimes políticos referidos acima,
tanto mais que na conferência Ted Kennedy proclamara solenemente, urbi
et orbi, que Almeida Santos, a eminência parda do Partido Socialista, lhe
tinha afiançado que não havia prisioneiros políticos em Portugal, enquanto
saboreavam bons petiscos e boas bebidas numa típica casa de fados lisboeta.
Julgando, sem qualquer
fundamento, que eu estava envolvido no convite feito ao Sen. Ted Kennedy para
conferenciar na UCONN e tinha sido convidado a participar na recepção e no
banquete, no dia a seguir a essa conferência o meu colega Felix Freudmann
entra-me pelo escritório dentro, senta-se à secretária em frente de mim e
profere estas palavras:
- Tony, quero que saibas
que não te perdoo a desfeita que me fizeste, ao não me convidares a assistir à
recepção e ao banquete em honra do Senador Ted Kennedy. Tanto mais que eu
queria dizer-lhe que ele, Senador Kennedy, não tinha direito de criticar
Salazar, o homem que me salvara a vida a mim e a toda a minha família e a
tantos outros judeus ferozmente perseguidos pelo regime nazi.
Todas as tentativas
feitas por mim para explicar devidamente como se passaram as coisas foram em
vão. O meu colega não me deu azo para abrir a boca e dizer da minha justiça.
De maneira que o meu
colega e amigo Felix Freudmann rematou o assunto com estas palavras:
- A partir de hoje a
nossa amizade acabou. Nunca mais tentes falar comigo, que eu nunca mais te
falarei.
Como fiquei e quanto
sofri deixo-o à imaginação dos leitores.
Manchester, 24 de Março
de 2019
António Cirurgião
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