domingo, 24 de março de 2019

Lisbonne, ville ouverte.


 


 
 
 
Apresentação de Lisbonne, ville ouverte
 
 
 
Gostaria, antes de mais, de agradecer a Silvia Balea, do Instituto Franco-Portugais, e a Patrick Straumann o honroso convite para falar um pouco deste livro, Lisbonne, ville ouverte, e para o debater com o seu autor nesta Festa da Francofonia.
 
Permitam-me que agradeça também a Anne Lima e às Edições Chandeigne o extraordinário trabalho que, ao longo de décadas, têm feito na projecção em França das culturas da lusofonia e, em particular, da cultura portuguesa.
 
Faço-o não por orgulho nacionalista – talvez com algum regozijo patriótico, o que é diferente –, tanto mais que o propósito de difusão da lusofonia, como o trabalho da Chandeigne tem demonstrado de forma exemplar, não está subordinado a fins políticos de exaltação propagandística, mas antes à afirmação do diálogo universalista e à busca daquilo a que Miguel Torga chamou um «traço de união» entre as diversas culturas que integram o mundo lusófono.
 
Se dúvidas houvesse quanto ao que digo bastaria convocar a obra de Patrick Straumann, que antes de publicar este livro já havia editado – e editado na Chandeigne – um ensaio sobre o Aleijadinho, o leproso (seria lepra, a sua doença?) que nos confins de Minas Gerais lavrou na pedra e na madeira deslumbrantes imagens de piedade e fé; posteriormente, Patrick Straumann publicou também, e uma vez mais nas Edições Chandeigne, um relato de viagem ao Brasil, de 2014. Isto sem falar das suas incursões pela estética e pelo cinema, como aliás se comprova pelas páginas que dedica neste livro a Casablanca e à cinematografia da Lisboa dos refugiados da guerra, mas cabe-me falar do livro, não do seu autor, um autor que muitos definem como «camaleónico», uma homem de origem suíça que vive em Paris e que, também ele, procede a uma síntese – ou a um «traço de união», à maneira de Torga – de saberes diversos, a escrita e o cinema e o audiovisual, a cultura francesa e alemã, o apelo dos trópicos – mais concretamente, do Brasil.
 
Lisboa, agora trazida num livro com um título de inspiração rosseliniana, que porventura evoca Roma, cidade aberta, surge pois na sequência do interesse de Patrick Straumann pelo Brasil e pela sua «epopeia mestiça», sendo justamente em torno do diálogo interatlântico entre Portugal e o Brasil que Torga, como atrás disse, publicou em 1955 um livro intitulado Traço de União.
 

 
 
         A Lisboa que nos apresenta Patrick Straumann é a Lisboa de 1940, a capital dos refugiados e da Exposição do Mundo Português, a urbe onde se acumulavam milhares de foragidos do nazismo na espera ansiosa da partida para a América, também eles em demanda de um atlântico traço de união entre a Europa em chamas e a promessa do Novo Mundo.
 
         Mas a Lisboa de Patrick é também a Lisboa dos nossos dias, num livro que, longe de se afigurar como um guia turístico, faz uma cartografia sentimental de lugares de um passado que teima em não passar e de um presente que anuncia um futuro pouco risonho, pelo que implica de turistificação e gentrificação excessivas de uma cidade cuja identidade histórica é a cada dia mais periclitante e incerta.
 
         É sintomático que, nas suas deambulações afectivas por Lisboa, Patrick refira, com amargura nostálgica, a presença esmagadora, no coração do Chiado, de um grande armazém de uma marca sueca de roupa (que, por desprezo ou pudor, o autor nem sequer nomeia…) e fale da Pastelaria Suíça, no Rossio, que entretanto fechou as portas, creio que já depois de este livro ser publicado.
 
É certo que Lisboa conserva encantos pretéritos, como a luz que cai oblíqua sobre o Tejo ou a tapeçaria de telhados que se abre à vista do miradouro da Graça, e é certo que na contemporaneidade Lisboa soube gerar novos espaços de novos interesses, como a livraria Ler Devagar, em Alcântara, a que Patrick alude no final do livro.
 
Ainda assim, a tonalidade geral deste livro é nostálgica, portuguesmente saudosa, quase podendo dizer que Patrick Straumann partilha da ambivalência de sensações e impressões que também marcaram Saint Exupéry, quando descreveu Lisboa como um «paraíso triste».
 
         Tristeza que advém do facto de Lisboa ser uma cidade portuária, cais de sussurros e murmúrios, que partilha com todas as cidades que são ponto de partida e regresso aquilo que um espanhol, um espanhol que também escreveu sobre terras de Portugal, Miguel de Unamuno classificou como «o sentimento trágico da vida».
 
 

Se exceptuarmos a pista do aeródromo de Casablanca, poucas coisas são tão nostálgicas como um cais de embarque ou um navio de passageiros, não certamente dos turistas que agora afluem ruidosa e efusivamente ao Terminal de Cruzeiros de Lisboa, mas daqueles que, como a personagem de Erich Marie Remarque, viam nas vielas de Alfama uma metáfora dos caminhos da vida e de opções existenciais irreversíveis. 
 

         Na verdade, e esse sentimento atravessa cada uma das páginas deste livro, por trás dos Estoris soalheiros e glamorosos da propaganda, esconderam-se em 1940 milhares de angústias, de existências dilaceradas pela perda do que ficara para trás e pela incerteza do que seria o futuro. Vidas que tiveram de se recriar – ou, como agora se diz, reinventar –, muitas vezes a partir do zero, sem a mínima esperança de regresso a casa, sem meios materiais de subsistência. Vidas de intelectuais e burgueses, grandes, pequenos e médios burgueses, vidas de gente comum que quase tudo perdeu pelo caminho – alguns, como Walter Benjamin, não aguentaram sequer este frenesi de desespero e preferiram sacrificar a própria vida num derradeiro gesto de liberdade.
 
         Não se pense, porém, que este é um livro negro, um muro de lamentações de judeus errantes. Pelo contrário, a maioria das histórias de vida aqui relatadas tiveram um final feliz – sem dúvida, um final infinitamente mais feliz do que o daqueles que ficaram para trás, à mercê da barbárie, mortos nas câmaras de gás.
 

 
 
         Muitas vezes, a diferença entre salvar-se e fugir e entre ficar à mercê da barbárie esteve nas mãos de homens que, em segundos ou minutos, decidiram da vida de outros homens, de famílias inteiras. O livro fala de Aristides Sousa Mendes, obviamente, mas também de Varian Fry, hospedado no Hotel Metropole, no Rossio, a escassos metros do que é hoje um grande armazém de uma multinacional sueca de roupas…
 
         Objecto estranho e indefinível, misto de ensaio e deambulação de viagem, périplo sentimental pelo passado mas também por lugares do presente, poderemos configurar esta obra como um «relato», tentativa de tradução da palavra francesa récit que, ela sim, corresponde de uma forma mais precisa e certeira àquilo que são – ou que eu julgo serem – as intenções do nosso autor.  
 
Mais do que tentar saber o que é este livro talvez seja mais fácil percebermos o que ele não é:
 
não é um guia turístico dos pontos que marcaram a Lisboa dos refugiados e dos espiões nos anos 40;
 
não é um estudo histórico que vise proceder, de uma forma exaustiva e sistemática, ao levantamento de uma realidade pretérita que tem sido abordada com alguma frequência, mas sem a originalidade do ângulo de abordagem de Patrick Straumann;
 
não é um relato memorialístico da trajectória biográfica de Tadeus Reichstein, avô materno do autor.
 
É, se quisermos, um ensaio literário – e, em comparação com outras aproximações ao tema, como as muito populares de Neill Lochery, o que surpreende e deslumbra é a qualidade da escrita desta obra, marcada por uma grande depuração formal, pelo culto clássico do mot juste, pelo equilíbrio e pela contenção. Se quisermos, por uma tremenda suavidade do olhar, que em momento algum resvala no voyeurismo do sofrimento ou na exploração da desgraça, como sucede em tantos relatos da 2ª Guerra.
 

 
 
O livro tem, além disso, e permitam-me este aparte, uma extraordinária e perturbadora actualidade, ao evocar dois temas que nele se cruzam e que têm prolongamentos nos nossos dias, a questão dos refugiados e a ameaça dos totalitarismos. É certo que entre os refugiados que atravessavam os Pirinéus, muitos deles figuras cimeiras da cultura europeia da época, e os refugiados que hoje percorrem o Mediterrâneo, a semelhança parece ser apenas superficial. Que há de comum entre Hannah Arendt e um sírio que naufraga ao largo de Itália? Convoquei o nome de Arendt – de resto, também abordado no livro, para mais com base na sua grande biógrafa Elisabeth Young-Bruhel – desde logo porque, e talvez Patrick Straumann não saiba esta novidade «turística», bastante recente, foi feito um memorial à autora de A Condição Humana na Rua da Sociedade Farmacêutica no local onde residiu em Lisboa. A placa evocativa – e, ao contrário de Paris, Lisboa é muito parca nas placas evocativas daquilo a que Pierro Nora chamou os seus lugares de memória – foi descerrada há pouco, no passado dia 10 de Dezembro, por ocasião do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A ocasião, simbólica, assinalou justamente não apenas a passagem de Arendt por Lisboa – que, devemos reconhecê-lo, não teve impacto significativo na sua biografia – mas sobretudo o universalismo do seu pensamento, um pensamento em que a questão da identidade – e da identidade judaica, em particular – e em que o debate do conceito de apatridia assumem um lugar central. Pois em muitos casos referidos neste livro de Patrick Straumann a perda de cidadania – ou, se quisermos, a passagem ao estatuto de apátrida – foi uma consequência natural e necessária da opção pela fuga, muitas vezes em permanente errância. Uma errância que faz levar algumas das figuras deste livro, como se fossem personagens de ficção à la Corto Maltese, a viajarem entre o Chile, a Rússia e a Austrália – é o caso do extraordinário percurso de Paul Reichstein, tio-avô do autor, ao que pude perceber.
 
Compreende-se, assim, o «traço de união» entre Hannah Arendt e os refugiados do nosso tempo, também eles dilacerados por questões de identidade – e de sobrevivência –, também eles à mercê da condição de apátridas, se não de jure pelo menos de facto. Permitam-me um outro aparte, em jeito de curiosidade, extraído da biografia de Hannah Arendt escrito por Elisabeth Young-Bruhel, que serviu à escrita deste livro, como disse. Refere Young-Bruhel que dos acontecimentos que mais marcaram Arendt no final da vida – morreria em 1975 – foi a revolução dos cravos de Abril de 1974, que a filósofa acompanhou entusiasticamente, da mesma forma como outrora acompanhara a revolução húngara de 1956 e colocara grandes esperanças na «democracia de conselhos» prometida em Budapeste. Por alturas de 1974-1975, Lisboa e Portugal seriam também invadidos por uma vaga de estrangeiros, numa ciclicidade que sempre assola o país: os refugiados de 1940, os jornalistas e «turistas revolucionários» de 1974-1975 (movimento que foi estudado por um grande historiador lusodescendente, Victor Pereira) e, finalmente, a vaga contemporânea, feita à base de voos low cost e vistos gold.
 
O segundo tópico que confere desarmante actualidade a este livro é, como disse, o pano de fundo em que decorre a trama, caracterizado pelo domínio da Europa continental por uma ideologia xenófoba e totalitária, responsável por milhões de mortes. É curioso que a ideia da escrita deste livro tenha surgido ao autor quando viu uma exposição do fotógrafo Roman Vishniac em Paris, em 2015, pois foi então que Patrick soube que Vishniac tomara a rota de Lisboa para fugir ao nazismo. E é curioso pois, anos antes, eu vi a mesma exposição no Museu Judaico de Varsóvia, o Museu Polin, e também a mim – por uma espantosa coincidência – me espantou saber que Vishniac viera a Lisboa em tempos de cólera. Num momento em que novos tempos de cólera se adensam nos céus da Europa, em que pulsões extremistas e xenófobas se alimentam daquilo a que Pierre Vidal-Naquet chamou o «assassinato da memória», o livro de Patrick Straumann assume um compromisso com a história, exerce de forma exemplar o «dever de memória» a que aludia Primo Levi e, por isso, é, ou deve ser, uma lição para o nosso tempo. Ou, se quisermos, para aquilo que Hannah Arendt chamou «os tempos sombrios», que foram passado mas regressam no presente.
 


Um presente em que muitos redescobrem a obra de Stefan Zweig, outro nome citado no livro, pelo destino trágico que o levou a refugiar-se no Brasil (e também porque os seus livros, muito traduzidos em Portugal, estavam nas montras das livrarias da Baixa e do Chiado, nos anos 40). Fixado no Brasil, no entanto, a memória de O Mundo de Ontem, da Viena ilustrada que foi incapaz de suster o avanço do nazismo, essa memória, dizia, persegui-lo-ia e acabaria por ditar o seu suicídio – e o de sua mulher, Lotte – em Petrópolis, em 1942. Como se o poder das trevas do nacional-socialismo não lhe desse sossego mesmo do lado de lá do Atlântico, no Brasil, a que chamou país de futuro, a pátria do Aleijadinho de Minas Gerais. Na escolha pelo suicídio, Zweig irmana-se a Walter Benjamin, sendo singular que as obras destes dois nomes tenham hoje uma enorme projecção e sejam alvo de uma redescoberta muito intensa; em Benjamin, naturalmente, pela densidade e originalidade do seu pensamento, tantas vezes fragmentário e expresso em apontamentos fugazes, em pura flânerie intelectual. Em Zweig não tanto pela qualidade literária das suas biografias – e creio que hoje poucos lêem os seus retratos de José Fouché e de Maria Antonieta – mas pela espantosa actualidade de O Mundo de Ontem, a narrativa crepuscular da marcha do fascismo e do modo como este, aos poucos, foi minando os alicerces da civilização burguesa do coração da Europa.
 
Desengane-se, porém, quem julgar que este livro se limita a retomar as pisadas de obras passadas e a citar os nomes recorrentemente invocados quando se fala de Lisboa, 1940. Do ponto de vista historiográfico, a passagem de refugiados por Lisboa está bastante estudada, ainda que por vezes numa perspectiva que se deixa ofuscar pelos «grandes nomes» e pelas celebridades e deixa na penumbra a legião imensa de milhares de cidadãos anónimos que atravessaram a capital portuguesa quando esta, paradoxalmente ou talvez não, festeja o centenário da fundação do país e, pouco depois, da tomada de Lisboa aos mouros. Não falo sequer em obras já um pouco antigas, como Exilados Régios no Estoril, uma recolha, quase em jeito de revista cor-de-rosa, feita em 1955 por Júlio Sauerwein, da vivência das cabeças coroadas que se fixaram na Costa do Sol. É que, mesmo em obras recentes, quer da autoria de Neill Lochery (Lisboa, A guerra nas sombras da cidade da luz, 1939-1945, de 2012, e também Lisboa. A cidade vista de fora, 1933-1974, de 2013), quer da pena de outros autores, o que parece dominar as atenções são os grandes nomes, como se o estuário do Tejo fosse um desfile de celebridades ou uma passerelle de famosos. Além dos livros de Neill Lochery, poderão citar-se Passagem para Lisboa, de Ronald Weber, de 2012, ou, num registo um pouco diferente, O Paraíso Triste, Dia a dia de Lisboa na II Grande Guerra, de Maria João Martins, de 1994. O filão da «Lisboa anos 40» tem sido também explorado – e digo-o sem intuitos pejorativos – em algumas obras de ficção, de valor desigual, de que poderia citar Estoril. Um romance de guerra, de Dejan Tiago Stankovic, de 2016, e o inenarrável Enquanto Salazar Dormia, de Domingos Amaral, além do mais recente, recentíssimo, O Cais das Incertezas, de José Alberto Salgado.

 

 
 
É natural que isso aconteça, como é natural que, até por razões turísticas ou, digamos assim, comerciais e promocionais, a revisitação oficial dessa memória se concentre nas celebridades ou nas façanhas de espiões como Dusko Popov, o célebre agente «Triciclo», como podemos ver se nos deslocarmos ao Espaço Memória dos Exílios, no Estoril, que Patrick Straumann refere no seu livro, e a outro espaço museológico próximo daí, que não sei se o nosso autor conhece, inaugurado há pouco, na Casa Sommer, em Cascais, onde também surgem os inevitáveis nomes de Popov ou de Ian Fleming, e do 007 de Casino Royale. Este ano – e desculpem outro aparte – comemora-se o aniversário de uma película de James Bond, «Ao Serviço de sua Majestade» rodada em 1969 e a memória de Ian Fleming, que esteve em Lisboa nos anos 40 – mais precisamente, chegou a Lisboa em Maio de 1941 – irá ser evocada, sendo curioso lembrar que alguns empregados do Hotel Palácio do Estoril, que entraram como figurantes ou actores secundários no filme de 1969, permanecem no activo, ao fim de tantas décadas…
 
O livro de Patrick Straumann, apesar de citar pontualmente os nomes mais famosos, de Man Ray a Leslie Howard, passando por Hannah Arendt, Saint-Exupéry, Marc Chagall, Jean Renoir, etc, o livro, dizia, apesar de citar pontualmente esses nomes não os converte no fulcro da narrativa, e o modo como eles se apresentam diante do leitor é feito com grande subtileza e sagesse, sem preocupações ostentatórias de erudição e sem pretender fazer uma listagem exaustiva em jeito de Almanach Gotha de refugiados célebres – que, curiosamente, enquanto estiveram em Lisboa pouco ou nada escreveram ou falaram dessa experiência, já que estavam ocupados por anseios mais imediatos, como angariar meios de sustento, obter um visto ou arranjar uma passagem num navio rumo à América.
 
Nesse sentido, o livro aproxima-se de obras que, de uma forma mais circunspecta e apurada, abordam esta realidade sem ceder, digamos assim, aos seus aspectos «feéricos». Uma das obras citadas por Patrick Straumann, Sob Céus Estranhos, de 2002, é um exemplo de contenção formal, quer do ponto de vista narrativo, quer visual ou formal. O mesmo se poderá dizer, ainda que se tratem de obras históricas, não de ensaios fotográficos, dos livros de Margarida Magalhães Ramalho, os quais, mesmo quando se aproximam de um registo de divulgação, não perdem o sentido das proporções e o rigor, de que é exemplo Vilar Formoso – Fronteira da Paz, editado em 2014 pela Câmara Municipal de Almeida, e Lisboa, Uma Cidade em Tempo de Guerra, de 2005, um roteiro que, pela sua riqueza iconográfica, nos dá ensejo de falar de outra obra com fotografias desse tempo, Lisboa nos Anos 40. Longe da Guerra, também de 2005, e da autoria da prolífica olissipógrafa Marina Tavares Dias. Se me permitem, e sem querer converter esta apresentação num roteiro bibliográfico, uma obra sobre o mesmo período que merece ser citada, seja pelo aparato iconográfico, seja pela originalidade do ângulo de abordagem, é Aterrem em Portugal. Aviadores e aviões beligerantes em Portugal na II Guerra Mundial, de 2008, de Carlos Guerreiro, o qual é responsável por um interessante blogue com o mesmo nome.
 
Naturalmente, o livro de Carlos Guerreiro não se cinge a Lisboa, e pode até dizer-se que Lisboa não é, pela natureza do tema, o palco daquela obra. Nem de outras que, num âmbito mais regional, têm estudado a presença de estrangeiros em pontos circunscritos do território, como a Ericeira ou as Caldas da Rainha, ou a realidades também ela localizadas, como a vinda das crianças austríacas para Portugal pouco depois da guerra, sob a égide da Cáritas, objecto de investigações académicas e jornalísticas mas também já de livros, com destaque para Um Laço de Amizade entre Portugal e a Áustria, publicado pela Assírio & Alvim em 2005.
 
Seja-me permitido, a este propósito, falar de um livro porventura menos conhecido, uma obra encantadora, editada pelo Núcleo Cultural da Horta, dos Açores, da autoria do historiador e professor universitário Carlos Riley. Não tem directamente a ver com a obra que hoje nos ocupa mas é interessante e, como disse, delicioso: no Natal de 1939, devido ao mau tempo que se fazia sentir, trinta passageiros de dois hidroaviões da PAN AM amararam na Horta e aí ficaram retidos. Para passar o tempo – e creio que nenhum dos passageiros era um refugiado de guerra, ainda que a guerra estivesse presente no espírito de todos –, os passageiros decidiram publicar um pequeno jornal em inglês, de fabrico artesanal, e a que chamaram precisamente «The Horta Swell».
 
E, num brevíssimo apontamento, pois sei que estou a abusar da vossa paciência, permitam-me que refira dois outros livros: um, a mero benefício de inventário, saiu recentemente e cito-o pois talvez Patrick Straumann não conheça da sua existência – chama-se Lisboa Nazi, do jornalista Sérgio Luis de Carvalho e, mesmo que se não aprecie o estilo em que está escrito, fornece uma panorâmica interessante dos «lugares hitlerianos» desta cidade, entre os quais, por uma ironia da História, o célebre Hotel Vitória, na Avenida da Liberdade, hoje pertença do Partido Comunista Português…
 
Outro livro – e peço desculpa a Patrick Straumann por, a propósito da sua obra, vir falar em tantas outras – é, digamos, um projecto pessoal com vários anos. Num blogue que edito, chamado Malomil, tenho publicado vários relatos de Portugal em meados do século XX, como o de Mary McCarthy (por sinal, a grande amiga e confidente de Hannah Arendt!), e também trechos de uma obra interessantíssima, de que falo até em jeito de apelo às Edições Chandeigne e a Anne Lima: trata-se de um livro com um nome singular, Não Criei Musgo, de John Gibbons, um inglês que pelos anos 1930 foi viver para os confins de Trás-os-Montes e que, posso garantir, é infinitamente superior a um livro mais recente e muito mais aclamado, As Altas Montanhas de Portugal, de Yann Martel. Pois bem, este livro, na altura premiado em Portugal (o autor era um admirador confesso de Salazar), foi reeditado há vários anos, em 1984, pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães e desde aí nunca mais foi publicado. Tenho feito vários apelos aos editores portugueses – é um livro inteligente, de uma humanidade profunda, com observações de refinado humor britânico e, confesso, não percebo por que não o reeditam. Não podia perder esta oportunidade para falar dele e fazer um apelo a que uma editora francesa tenha mais clarividência do que os seus congéneres lusitanos…
 
O tema dos estrangeiros em Portugal – e aqui regresso, em termos mais amplos, ao livro de Patrick Straumann – é um clássico da bibliofilia nacional, com obras mais antigas, dos séculos XVIII e sobretudo XIX, a serem avidamente procuradas por colecionadores e bibliófilos. Portugal não foi o único país, nem sequer o principal, a ser percorrido pelos viajantes da época, longe disso. Em qualquer boa livraria de Nápoles encontramos colectâneas de escritos sobre a região, de Charles Dickens a Henry James, passando por Axel Munthe ou Goethe, entre tantos outros. Em qualquer livraria de Granada encontramos dezenas de edições dos célebres Contos do Alhambra, de Washington Irving. O Grand Tour dos ingleses trouxe à Europa do Sul centenas de viajantes e literatos desejosos de se evadirem das eternas brumas das Ilhas Britânicas. No caso de Portugal, é recorrente falar-se de Byron ou de Beckford, mas ninguém presta atenção ao facto de nomes tão fulgurantes como Spender, Christopher Isherwood e o poeta W. H. Auden terem passado uma temporada em Sintra, e terem escrito sobre isso, num livro que, pasme-se, foi publicado há pouco em Espanha mas nunca viu a luz do dia em Portugal…     
 


 
 
Se todos os países recolhem as impressões de viagem dos visitantes estrangeiros, entre nós esse interesse pelo De Fora para Dentro (título de uma antologia de escritos de estrangeiros sobre Portugal) tem, por vezes, um sentido próprio, que se relaciona com uma pulsão obsessiva que os portugueses têm com a sua autognose, em permanente inquietude, de laivos sebastiânicos ou psicanalíticos, decorrente da passagem da época áurea dos Descobrimentos e com o «declinismo» que se lhe seguiu, e que os intelectuais de Oitocentos procuraram escrutinar à saciedade – lembre-se Antero e as suas Causas da decadência dos povos peninsulares –, numa interrogação dilacerante que ainda hoje nos mantém aprisionados nos meandros daquilo a que Eduardo Lourenço, outro autor editado pela Chandeigne, chamou o labirinto da saudade.
 
País pequeno, país periférico, esta ânsia algo provinciana de conhecer a opinião dos outros sobre nós mesmos desperta, naturalmente, curiosidade por livros como este de que hoje falamos. Ainda assim, e é importante reconhecê-lo, os testemunhos dos estrangeiros que por cá passaram durante a guerra não só não são abundantes como primam pelo laconismo sobre o que era o Portugal da altura, como já atrás disse. Ilustres ou desconhecidos, os que por cá passavam encontravam-se em trânsito, tanto mais que o Portugal de Salazar, apesar de neutral, não lhes dava garantias totais de segurança. Era grande o risco de, mesmo contra vontade, Portugal entrar na órbita do Eixo, seja por via de uma invasão directa da Alemanha ou da Itália, seja oatravés da Espanha de Franco (lembre-se que chegaram a existir planos para isso, como se deve lembrar o papel que Serrano Suñer, o cunhadíssimo de Franco, teve na época). Apenas a América oferecia a tranquilidade possível, como se fosse necessário colocar um oceano de permeio entre a Europa em chamas e uma terra promissora. Não admira, pois, que, apesar de observações em cartas ou em diários, os estrangeiros que passaram pela «cidade aberta» não tenham deixado testemunhos de grande vulto ou sequer impressões sobre Lisboa que fossem muito para além daquilo que concentrava obsessivamente as suas atenções, isto é, a própria condição de foragido, a situação das suas famílias, a iminência ou o adiamento do transporte, os estrangeiros que se aglomeravam nos cafés ou às portas dos serviços consulares, quando não mesmo junto de serviços mais ou menos informais de apoio aos refugiados, como o estabelecido pela comunidade israelita. A este propósito, ou despropósito, seja-me permitida a memória pessoal de um documento que vi na Torre do Tombo – mas confesso que já não o sei localizar – e que, por muito estranho que nos possa parecer, uma organização judaica dos Estados Unidos, creio mesmo que a principal organização judaica da América, escrevia a agradecer a Salazar a venda de latas de sardinha e outros víveres para auxílio dos judeus na Europa. Confesso que já não me lembro com nitidez do teor do documento mas o que na altura me pareceu interessante, para não dizer assombroso, é o facto de Salazar – e não necessariamente apenas Salazar, creio que muitos governantes fizeram e fazem isso – não ter deixado perder as oportunidades de negócio em que qualquer guerra é fértil, e que, como vemos, não se limitou à venda de volfrâmio…Isto para além do papel de organizações de apoio aos refugiados, sendo muito curioso verificar que também Tadeus Reichstein tentou, em Outubro de 1942, e em conjunto com um alemão de nome Richard Wagner, fundar uma organização desse género, que forneceu dinheiro e víveres aos presos nos campos de Vichy.
 
 Se abundam os nomes das celebridades, escasseiam os seus testemunhos. Lisboa era, como disse Man Ray, uma «casa de loucos pejada de refugiados» e não havia tempo nem disposição mental para admirar os mistérios de uma cidade que este livro de Patrick Straumann nos desvenda em cada página. Seria necessária tranquilidade para poder dizer, como o dirá Kingsley Amis anos depois, «Gosto disto aqui». O amor de Patrick por Lisboa é incontestado e comovente, mas nos tempos de cólera não havia possibilidade desse amor ver a luz, a luz radiosa que se abate sobre as colinas e o Tejo. Na verdade, e como nota este livro, mesmo os ficcionistas não incorporaram nas suas obras esta experiência traumática, salvo raras excepções, como a de Alfred Döblin. Daí a importância de diários, relatos de vida, reconstruções de trajectórias biográficas. São interessantíssimos – e importantíssimos, pois escapam à tendência para nos cingirmos aos nomes dos famosos – trabalhos como o que José Caré Júnior deu à estampa sobre os refugiados estrangeiros na Ericeira na 2ª Guerra Mundial. Ou, para a Grande Guerra, mais rica de relatos portugueses dada a participação do país no conflito de 1914-1918, memórias como as dos alemães que foram «concentrados» em Angra do Heroísmo, com realce para Max Corsépius, cuja vida foi evocada num livro de Yolanda Corsépius intitulado Nas Rotas de um Bisavô, de 2005. Como é muito importante a narrativa que Patrick Straumann faz – e, note-se com base em documentos por vezes descobertos há pouco, há cerca de seis ou sete anos – do percurso do seu avô materno, algo que, para mais, se inscreve numa linha de recuperação de memórias familiares e histórias de vida que para muitos pode parecer um exercício narcísico de «micro-História» mas que é, não tenhamos dúvidas, um esforço essencial para iluminar o passado com gente de carne e osso, com as suas inquietações e lágrimas, com noites brancas de incerteza e angústia.   
 
Não vou, naturalmente, estragar a surpresa de todos os que irão ler este livro, e espero que muitos o façam, mas sempre adiantarei que o percurso da família Reichstein, e em particular o de Tadeus, que nos anos 40 se insntala no Hotel Universal do Rossio, rumo à América, é absolutamente singular (e, já agora, o do editor Franz Blei e da sua biblioteca, referidos no final do livro), como singulares são todas as histórias de viagem e destino, para empregar o título de um livro de Döblin.
 


 
 
Viagem e destino bem poderia ser o título deste livro, mas o autor, cedendo à sua paixão cinéfila, optou por Rosselini…
 
Permitam-me que, a terminar, cite a resposta que um dia Agustina Bessa-Luís deu à pergunta sobre se, culturalmente, Portugal era um país europeu, uma resposta que tem muito a ver com este livro. Disse Agustina:
 
Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo, é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
Aqui fica o livro de Patrick Straumann. Agora todos temos à nossa disposição uma cidade aberta, Lisboa, e por isso temos de agradecer-lhe esta viagem, esta jornada, por uma cidade e por um passado que deve passar – mas que devemos sempre lembrar.
 
Muito obrigado.

 

António Araújo
 








 
 
 
 
 

 

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