quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Baby Suicida - 2.

 
 
 
 

 
 
 
Estávamos ontem a falar de um tema importantíssimo: a capa do álbum Gilt, da banda Machines of Loving Grace.
Há quem diga que existem parecenças entre a imagem de Robert C. Wiles, The Most Beautiful Suicide, de 1947, e uma fotografia de Enrique Metinides. Há também quem diga que Katy Perry se inspirou na imagem de Wiles para a feitura do seu último álbum. Falámos disto ontem.
 

Machines of Loving Dance
Gilt
1995


 
 
Pois, no caso dos Machines of Loving Grace, a capa do álbum Gilt não se inspira: praticamente reproduz, ou no mínimo recria, a fotografia de Robert C. Wiles.
A fotografia de Wiles é esta:
 
 
Robert C. Wiles
Nova Iorque, 1 de Maio de 1947
 
 
 
          A história, narrada muito bem aqui, conta-se mais ou menos assim. Havia uma rapariga bonita, nascida em 20 de Setembro de 1923 em Berkeley, na Califórnia. Era a sexta dos sete filhos de Vincent e Helen McHale. Em 1930, a família McHale mudou-se para Washington, D.C., e, pouco depois, a mulher, Helen, saiu de casa. Divorciaram-se, o pai ficou com a custódia dos filhos e foram para Tuckahoe, no Estado de Nova Iorque. Foi aí que Evelyn («Ebby») estudou. Após terminar o liceu, juntou-se ao Women’s Army Corps, no Missouri. Mais tarde, viria para Nova Iorque, para casa do irmão e da cunhada, e arranjou emprego como guarda-livros de uma empresa. Conheceu, namorou e tornou-se noiva de Barry Rhodes, um antigo G.I. que estudava no Lafayette College, em Easton, na Pensilvânia. Tinham até casamento marcado, para Junho de 1947.
 
 
 

Evelyn McHale

 
 
 
 
Não se sabe bem o que se terá passado em 30 de Abril. Evelyn foi visitar o noivo à Pensilvânia, era o 24º anivrersário do rapaz, e, segundo este diria mais tarde, despediu-se com um beijo de felicidade, como qualquer rapariga que estivesse prestes a casar-se. Ou não. O certo é que Evelyn regressou a Nova Iorque a 1 de Maio, alugou um quarto no Governor Clinton Hotel e aí escreveu um bilhete suicidário.
 
O pai, Vincent McHale
 
O Governor Clinton Hotel
 
 
Depois, antes das 10 e 30 da manhã, comprou um bilhete para o miradouro situado no 86º andar do Empire State Building. Por volta das 10h40, John Morrisey, um polícia de giro que por ali andava, viu um lenço branco de senhora a esvoaçar lá de cima. Instantes depois, ouviu um barulho surdo e viu uma multidão a correr na Rua 34. Evelyn tinha saltado, caindo em cima de um automóvel das Nações Unidas, mais precisamente de uma limusina Cadillac ali estacionada.
Do outro lado da rua, um jovem estudante de fotografia, Robert C. Wiles, viu a multidão aglomerada em torno do Cadillac e tirou várias fotografias, cerca de quatro minutos depois do impacto fatal. Uma delas imortalizá-lo-ia. Aquela, ali em cima, que ocupou uma página inteira da edição de 12 de Maio de 1947 da Life Magazine. Acompanhada da legenda: «At the bottom of the Empire State Building the body of Evelyn McHale reposes calmly in grotesque bier, her falling body punched into the top of a car».        
 
 
 
 
 
 
 
         Reparem, de facto, na expressão serena da rapariga, que parece estar a dormir tranquilamente. Sem sangue, sem dor, uma placidez imensa. Faltam-lhe os sapatos, é certo, mas mantém a maquilhagem perfeita e as duas luvas. Uma das mãos segura um colar de pérolas. As feições de Evelyn, pelo menos assim vistas, parecem belas. A imagem transmite uma estranha sensação de glamour. O carro é um Cadillac, ainda que desfeito. Mas as curvas das sombras na fotografia quase dão a impressão de um leito, em que Evelyn adormeceu por um instante eterno, indiferente aos gritos da multidão em seu redor. A paleta de cinzentos, negros e brancos, associada ao granulado da imagem e à beleza de Evelyn, contribui para o impacto que esta fotografia teve. Tão grande que tornou o seu autor imortal – mas devorou-o. Explico-me: ao buscar mais imagens de Robert C. Wiles na Internet, só encontrei esta. A morte de Evelyn foi a suma sorte de um aspirante a fotógrafo, mas também a sua morte. É tal o poder desta imagem que, depois dela, Wiles nada mais fez que se visse (pelo menos, não encontrei).
         Entretanto, no cimo do Empire State, o detective Frank Murray encontrou o casaco de Evelyn, dobrado no parapeito do miradouro, e uma caixa de maquilhagem com várias fotografias de família. E também uma carteira de bolso preta, no interior da qual estava a nota derradeira:
“I don’t want anyone in or out of my family to see any part of me. Could you destroy my body by cremation? I beg of you and my family – don’t have any service for me or remembrance for me. My fiance asked me to marry him in June. I don’t think I would make a good wife for anybody. He is much better off without me. Tell my father, I have too many of my mother’s tendencies.”
A irmã identificou o cadáver e, cumprindo o seu último desejo, Evelyn foi cremada.
A fotografia, como se disse, apareceu como «Picture of the Week» na Life, cujo original pode ser visto aqui. Constaria também de várias edições da colecção The Best of Life.
 
           Devido à fotografia muita coisa se fez. Há uma página no Facebook, claro (https://www.facebook.com/EvelynFrancisMcHale), com alguma informação familiar, e até um blogue com dados bastante duvidosos (como é que sabem que Evelyn inspirou fundo antes de saltar?). O Flickr, evidentemente, exibe recriações da morte de Evelyn, todas dispensáveis, como esta:
 
 

 
A fotografia de Wiles seria colorida artificialmente, com um resultado final aceitável:
 

 
 Em 1963, Andy Warhol apropriou-se da imagem e fez dela a serigrafia Suicide (Fallen Body), integrada na sua série Morte e Desastres, que vai de 1962 a 1967.
 
 
Andy Warhol
Suicide (Fallen Body)
1963
 
 
 
A torrente de recriações da imagem nunca mais parou, e seria fastidioso estar a maçar-vos com elas. Atrai muitos cultores do macabro, do sobrenatural dark, gente assim, até no Brasil. Outros, como este marreco, ficam boquiabertos e começam a tecer considerações dispensáveis. Outros ainda fazem chalaça, mas não com Evelyn. Curiosamente, num site da esquerda revolucionária e anarquista chega a questionar-se se o namorado não seria austero e autoritário…
Além do vídeo que acima mostramos, místico e apalermado, temos também este, bastante afoleirado:
 
 
Ou ainda este, em registo fantasmagórico:
 
 
 
Namring Charles fez a letra de uma música, com o título «Where Are You Going Evelyn McHale?», mas não encontrei rastos sonoros, só mesmo o poema:
 

 
 
Os Red Sun Rising, sejam lá eles quem forem, têm uma música chamada Beautiful Suicide, mas é tanta a gritareira quem nem percebi se tinha a ver com este caso. Pelo nome «Beautiful Suicide» responde muita coisa no YouTube, no género anime negríssimo, que nada tem a ver com a moça morta. O mesmo não se dirá da música que os Parenthetical Girls compuseram em 2010, e que se chama «Evelyn McHale».  
 
 
         Nas letras, há um ensaio interessante de Max Page, publicado no NY Times em 2006, mais centrado no edifício do que no destino trágico da sleeping beauty . Temos também um conto brevíssimo – e de bradar aos céus – de Jason Sout, publicado em 2008.
         As artes plásticas continuam a entusiasmar-se com a imagem de Wiles. Em 2012, por exemplo, fizeram uma desgraça como esta, com os dizeres «Always love someone»
 

 
         Como se não bastasse, em Dezembro do ano passado foi publicado este trabalho a pastel, de Guy Denning:
 
 
Guy Denning
"the most beautiful suicide (Evelyn McHale)"
2013
 
 

 
         O artista inglês Christopher Trowbridge assinou esta tela. Apreciemo-la, porque já foi vendida:
 

 
         Doutro quilate, gostemos ou não, é a instalação de Matthew Day Jackson intitulada «Nude and Descended». Também do ano passado, coloca um cadáver ou esqueleto no tejadilho de um Lincoln Continental.
 
 
Matthew Day Jackson
Nude and Descended
2013
 
 
         Igualmente doutro quilate, gostemos ou não, é esta colagem californiana, mescla de Marylin e Evelyn:
 
 
 
 
 
         Do domínio puramente especulativo, raiando o mau gosto, é pedir 10 dólares por uma t-shirt com a fotografia deWiles:
 

    
       Mais delicado e respeitoso, ainda que desastroso na legenda «You had never looked so happy», é um desenho que encontrei aqui, numa coisa que não percebi bem o que era, mas é alemã.
 
 

Ou esta outra, igualmente a carvão, cuja nacionalidade desconheço:
 

 
 
Loucura total é existir uma necrópole fotográfica de carros no estilo Ponton, onde incluem este como uma reminiscência da queda de Evelyn McHale:
 

 
 
De tudo o que se tem produzido em torno e acerca de The Most Beautiful Suicide (nem sei quem deu este título à imagem) merece realçar Drawing Restraint 17 – Evelyn McHale, da autoria de Matthew Barney (aqui, por ex.).
 


Matthew Barney
Drawning Restraint 17 - Evelyn McHale
2011

 
 
  Pelo mundo da moda e publicidade, houve uma campanha de Neiman Marcus que colocou Drew Barrymore em cima de um automóvel, aparecendo logo quem dissesse que se tratava de uma alusão encriptada à imagem de Evelyn McHale. Parece exagero: se de todas as vezes que uma rapariga se deita num automóvel houvesse uma alusão ao suicídio de 1947, não haveria Salão Auto que resistisse, naquela alarvidade clássica e machista de colocarem mulheres seminuas ao lado ou por cima de veículos ligeiros.   



 
Terminemos com coisas sérias. Além do Codex 99, que reúne a melhor informação sobre o caso, o blogue de Anthony Luke, como sempre, dá notícias rigorosas e precisas. Corrige, por exemplo, a notícia do NY Times de 2 de Maio de 1947, que dava 20 anos de idade a Evelyn, quando, na verdade, tinha 23 anos.
 
The New York Times
2 de Maio de 1947
 
 
Outro blogue sério, o Iconic Photos, coloca a hipótese de o caso e a imagem serem referidos no filme Stranger Than Fiction, de 2006. Permito-me discordar, já que o diálogo desse filme fala de uma rapariga suicida, cujo corpo jazia envolto em sangue – o que não sucede aqui. Discordo ainda mais da alusão às telas de Tamara de Lempicka. O autor do Iconic Photos diz que a imagem lhe faz lembrar os quadros de Lempicka, que captou em cores vivas o glamour dos anos 30. Haverá semelhança na aparência de Evelyn, mas é epidérmica. A beleza, se assim se pode dizer, da fotografia de Wiles está na atmosfera suavemente cinzenta, na serenidade da suicida. Não é questão de desdenhar Lempicka, mas não parece existir qualquer semelhança na substância real das coisas.
Estamos quase a acabar o nosso périplo pela beleza trágica da imagem de Robert C. Wiles. Em 2011, a Christie’s leiloou Drawing Restraint 17– Evelyn McHale, da autoria de Matthew Barney, a que atrás fizemos referência. O artista doou a obra para ser vendida em leilão, creio que foi licitada por 7.000 libras, que reverteram a favor da Women for Women International. Não vou discutir se a peça valia o dinheiro e – que fique claro – nada disto tem a ver com a venda dos quadros de Miró. O trabalho de Matthew Barney é do melhor que se tem feito em torno da morte de Evelyn McHale. O resto são quase tudo recriações pop. Em todo o caso, Barney tem projectos cujo interesse e qualidade merecem as maiores reservas, como Drawing Restraint.
Sendo a abordagem mais erudita  – como no caso de Barney – ou mais popular – como em quase todos os outros casos –, procurei fazer um levantamento, aliás não exaustivo mas bastante ilustrativo, do que tem sido feito em torno do suicídio de Evelyn McHale. O propósito, uma vez mais, consistiu em mostrar a infinidade de pastiches, apropriações e recriações que a actual cultura de massas propicia e favorece Não se trata, sublinhe-se, de um atentado à memória de Evelyn, pois aí teríamos de incluir também, nessa linha despeitadora da sua pessoa, a fotografia de Robert Wiles.
VVVVVAo lançar-se, aos 23 anos, do alto do Empire State Building, Evelyn McHale não desejou uma morte privada, ainda que tivesse deixado escrito que queria ser cremada. Desejou também que nenhum membro da sua família visse o seu corpo – desejo que não pôde ser atendido porque a irmã teve de reconhecer o cadáver, e porque a imagem de Wiles encheu uma página inteira da Life Magazine. Mas, seguramente, Evelyn McHale, quando se matou aos 23 de idade, nunca imaginaria o impacto que o seu gesto teve. Não adivinhava que, por perto, estava um estudante de fotografia. Se não se tivesse matado, não teria hoje a fama que tem. Se tivesse casado e assentado, proliferando filhos e netos, jamais inspiraria a campanha promocional de um disco de Katy Perry. Nada disto ocorreria se Evelyn McHale, num dia 1º de Maio, não se tivesse lançado dos céus abaixo. Se fez bem, se fez mal, isso foi lá com ela e seus demónios íntimos. Em boa verdade, the rest is silence.
 
 
António Araújo
 
 
 
 

1 comentário: