terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Stolichnaya: esparsa ao desconcerto do mundo.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quando alguém se dispõe a escrever sobre roupa interior soviética, talvez deva interrogar-se sobre o que anda a fazer nesta vida. Sobretudo, porque já houve quem analisasse o assunto a fundo, e com muito mais propriedade e acerto. Desde logo, no maravilhoso blogue Real USSR. Lifting the Iron Curtain Mas a matéria mereceu mais, justificou até douta investigação académica. A doutora Olga Gurova trabalha este tema há uns anos valentes e sobre ele até já publicou um livro em casto cirílico. Segundo a aturada investigação da doutora Gurova, no domínio da roupa interior soviética existiram três períodos históricos, todos muito materialistas e, se a noite pintava, às vezes dialécticos. Assim, no sombrio tempo de Estaline predominavam as cores escuras – preto, azul-marinho, etc. –, com o argumento austero de que o escuro leva mais tempo a sujar e, logo, não tem de ser cambiado todas as manhãs (a trousse semanal afigura-se, portanto, como mais um dos crimes históricos do estalinismo, mesmo que não denunciado por Krutschev no XX Congresso do PCUS); depois, com a abertura de Nikita  e aquelas liberalidades todas, a paleta de cores interiores alargou-se, tornando-se a roupa íntima, e cito Gurova, uma forma de «expressão pessoal»; no período apertado dos anos 70 e 80, as imposições sanitárias contra a obesidade fizeram rarear os tamanhos XXL, dificultando a vida das matrioshkas mais avantajadas. Este é, em síntese, o contributo epistemológico da doutora Gurova para uma análise diacrónica da indumentária interior soviética, circa 1920-1989. Para Agosto deste ano, e em lugar do cirílico casto, está anunciado, desta feita numa língua mais depravada, o inglês, novo volume da autora. 
 

O livro da doutora Olga Gurova


Ginástica matinal em underwear estalinista
 
 
Em tempos, escrevi aqui no Malomil sobre a portentosa Vera Mukhina e os seus copos, objecto de uma apropriação selvática pela IKEA. Até o Harry Potter abusou da estatuária indefesa de Vera Mukhina, havendo mesmo imagens de pastiches capitalistas de O Operário e a Camponesa em versão Mickey e Minnie. O mundo está desgraçado.
 

O Operário e a Camponesa
 
 
No preciso dia em que estava a pensar escrever estas linhas, um anjo trouxe-me uma notícia surpreendente: a vodca faz mal à saúde.
 
 
 
Publicado na ultra-prestigiada revista médica Lancet, um estudo veio dizer, pasme-se, que os homens, com idades até aos 55 anos, que ingiram três ou mais garrafas de meio litro de vodca por semana terão um risco de morte prematura 35% superior aos que se ficarem pela água gaseificada (isto da água é só um suponhamos, ou seja, uma hipótese académica). Sir Richard Peto, o investigador da Universidade de Oxford que conduziu este inquérito a mais de 151.000 russos, concluiu que um homem das Rússias bebe, em média, 20 litros de vodca por ano, enquanto os britânicos se ficam por uns abstémios três litros/ano de bebidas fortes. Um quarto da população masculina da Rússia morre antes dos 55 anos, o que é um número incrível, se comparado com os 7% dos habitantes do Reino Unido e dos 1% dos Estados Unidos, país conhecido pelos seus hábitos alimentares muito saudáveis e frugais. 25% da população masculina a morrer tão cedo é matéria para preocupação. A Rússia tem uma esperança de vida masculina de 64 anos, sendo um dos 50 países do mundo onde essa esperança – a de vida masculina – é mais baixa.
Nas vésperas dos Jogos Olímpicos de Inverno, uma festa apoteótica para Vladimir Putin, não deveríamos falar destas tristezas. Folheamos jornais e revistas: na capa do L’Express, «Poutine Superstar»; no interior, fala-se das Olimpíadas de Sochi, nas cartas que ao mundo dá este antigo coronel do KGB, averbando pontos da Ucrânia à crise síria, do caso Snowden à libertação de Mikhaïl Khodorkovski e das Pussy Riot. O The Economist, também na capa: «The Triumph of Vladimir Putin». No Courier International, sempre do contra, lembra-se que as Olimpíadas de Inverno irão decorrer sob forte tensão, com os radicais islâmicos à espreita para fazer das suas, como fizeram em Volgogrado. Para Putin, estes são os «seus» jogos, e bastante olímpicos. Quanto, em 2007, o Comité Olímpico se reuniu na Guatemala, para decidir quem organizaria os Jogos, Putin foi até lá, encabeçou a candidatura russa com inflamados discursos em inglês e francês que decorou palavra a palavra. A festa é dele, não a estraguemos.   
Por isso, esqueçamos os números da mortalidade masculina nas estepes etilizadas da Mãe-Rússia. Façamos uma breve pausa para recordar outras estatísticas, mais lúbricas  e animadas. Quando, em 1968, estreou uma famosa comédia que tinha um vislumbre de malandrice – para mais, bastante apatetada –, protagonizado pela bomba de hidrogénio Svet­lana Svetlich­naja, ainda hoje uma pantera, essa película foi vista por mais de 76 milhões de pessoas, isto só na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Sim, leram bem: 76 milhões de soviéticos intervalaram na vodca para assistir a esta sem-vergonhaça:

 
 

  
 

Svet­lana Svetlich­naja,
na cena mais ousada de toda a história da cinematografia soviética
 
 

Svet­lana Svetlich­naja,
mais recentemente
 

 
 
Sendo a marotice carnal tão popular entre os povos terrestres, sobretudo nos que têm pouca esperança de vida, não se percebe o afã puritano de Vladimir Putin. Regressando à temática anterior sobre roupa interior, não se compreende, de facto, o motivo pelo qual foi confiscado, e à bruta, um quadro de Konstantin Altunin que retratava Putin e Medvedev em trajes menores,  femininos (aqui). Foi um sarilho danado, passado em Setembro do ano transacto, com polícia e tudo. Uma das pinturas mostrava Vitaly Milonov, o político grunho de São Petersburgo que fez aprovar a legislação anti-homossexual naquela terra, a qual foi depois convertida, pela mão de ferro de Putin, em lei vigente na Federação inteira. Milonov entrou na galeria acompanhado da polícia e trouxeram para a esquadra o quadro que o retratava pintado com um arco-íris em fundo. De caminho, apreenderam o quadro de Putin e Medvedev em trajes menores, mais outros dois: um, que satirizava o Patriarca Cirilo, de que já falámos aqui; outro, que tratava da deputada Yelena Mizulina, que na Duma tem sido uma das grandes aliadas do Kremlin na sua cruzada homofóbica. O pintor, claro, fugiu para França (aqui).
 

Putin e Medvedev,
pintados por Konstantin Altunin
 
Voltemos à vodca (ou vodka, o efeito é igual). Quando estive na Rússia, os dias começavam sempre com um pequeno-almoço com vodca e carnes frias. Cigarritos, muitos, de preferência ocidentais, melhor ainda se fossem dos vistosos Dunhill. Depois, nas conversas moscovitas, era inevitável vir à baila a história em que Estaline, por distracção, aprovara dois projectos arquitectónicos diferentes para o mesmo edifício. Como ninguém teve a ousadia de lhe dizer que se enganara, construíram o mesmo edifício seguindo planos distintos, e o resultado final foi, digamos, um pouco incoerente. A história parece não ser verdadeira, remetendo para o imenso anedotário soviético. O que aconteceu foi, tão-só, que o projecto inicial, de Olegr Stapran e Leonid Savelev, ao estilo construtivista, era avant-garde em excesso para o que se pretendia: um paquiderme esmagador que emanasse força e poder, mais do que dinamismo e criatividade. Além disso, haveria que ter atenção ao local, a dois passos da circunspecta Praça Vermelha (onde hoje, no disputadíssimo nº 1, está hoje um stand da Rolls-Royce). Portanto, edificou-se outro projecto, num trabalho rápido, que durou um ano, mas decidiu-se dar-lhe um acabamento mais clássico e convencional, talvez academizante em excesso, mas enfim. Curiosamente, o Hotel Moscovo, de São Petersburgo, construído em 1977, tem notórias semelhanças com o projecto que havia sido concebido para a capital da URSS. Pelo menos, parece-me, ao que vejo aqui
 

O projecto original, de Olegr Stapran e Leonid Savelev


A maquete da obra de Shchusev

 
Estamos no Hotel Moskva, cujo traço derradeiro se deve ao famoso Alexey Shchusev, sendo inagurado em 1935 como um dos mais luxuosos hotéis moscovitas. O que parece verdade, mas com várias dúvidas, é que, Shchusev submeteu à aprovação de Estaline um desenho com dois esboços de torres para o hotel e aquele terá assinado a folha a meio, equidistante, não tomando posição nem mais à esquerda nem mais à direita. Daí a fachada apresentar dois corpos laterais bastante distintos, mas ainda assim no mesmo estilo:
 
 

O Hotel Moskva, em duas perspectivas,
sendo claramente visíveis as diferenças (intencionais?) nos dois corpos laterais

 
Sendo Shchusev quem foi («apenas» o autor do Mausoléu de Lenine ou da sede da NKVD, na Lubyannka, entre outras obras desse calibre), intriga-me que Katerina Clark lhe dê tão pouco relevo. Apesar desta desatenção, e mais um ou outro pormenor, recomendo muito o seu livro, Moscow. The Fourth Rome. Stalinism, Cosmopolitanism and the Evolution of Soviet Culture, 1931-1941. Mas, insisto, se a inspiração de Roma soprou tão forte em Shchusev, como a autora reconhece (p. 97), porque deu ela tão pouco relevo ao eclético arquitecto? No livro inteiro fala-se de Shchusev  três vezes, não mais, o que é uma injustiça tremenda – e quem paga é a obra, que, nesse ponto, fica a perder para uma outra, de Karl Schlögel, Moscow 1937. É certo que o livro de Katerina Clark, na linha de outros trabalhos da autora, pretende apresentar uma perspectiva cultural mais vasta e abrangente, não limitada ao campo da arquitectura. Mas não pode referir, apenas en passant, que em 1937 Shchusev  foi ensarilhado num processo complicado e expulso da União dos Arquitectos, sendo autorizado a regressar ao serviço apenas para fazer para os acabamentos do Hotel Moskva.
 
 

Alexey Viktorovich Shchusev (1873-1949)
 

O arquitecto, retratado por Mikhail Nesterov
 
Para mais, ultrapassado aquele incidente sancionatório, o autor ganharia depois quatro prémios Estaline, um dos quais a título póstumo. Aliás, em Moscovo o Museu de Arquitectura Shchusev está pujante e recomenda-se. Dentro de dias, irá abrir uma exposição sobre Souto de Moura. Já agora, e sem carregar com mais citações, há um jovem que trabalha muito bem estas matérias e tem um site muito recomendável, The Charnel-House. Um bocadinho arrevesado na linguagem, mas ali há labor e pesquisa. Chama-se Ross Wolfe, diz que vai publicar um livro mas, entretanto, já abre mão de um longo texto, aqui.
 
 



Alexey Shchusev, Hotel em Sochi, 1928
 
 
Para se ter bem consciência da importância de Shchusev, refira-se que projectou em 1928 um hotel em Sochi, obra que, segundo se diz, foi uma das fontes inspiradoras do celebérrimo Paimio Sanatorium, de Alvar Aalto, classificado pela UNESCO. Sochi vai ser a anfitriã das Olimpíadas de Inverno. Começa agora. Uns irão ser faiscados pela propaganda official, outros verão os desportos de neve no pequeno écran. Mas se há coisa que recomendo – e esta recomendo mesmo – é conhecerem a verdadeira Sochi, tal como vem sendo estudada por Rob Hornstra e Arnold van Bruggen desde 2009. The Sochi Project até já deu livro. As fotografias do holandês Rob Hornstra  falam mais do que qualquer propaganda. Tem um livro espantoso, chamado The Secret History of Khava Gaisanova, o retrato vivo de uma mulher do Cáucaso setentrional cujo marido desaparece, como é frequente acontecer numa região fértil em raptos e homicídios. Em breve, vou falar de novo de Hornstra, sem dúvida. Por ora, veja-se esta preciosidade, Communism and Cowgirls, que deve ser folheada com vagar e atenção (também aqui).
Esta excursão mirabolante por tanta coisa variada destina-se apenas a dizer que o Hotel Moskva, projectado por Shchusev, é o edifício que aparece no rótulo das garrafas da vodca Stolichnaya (ou «Stoli»). Até há uns anos, julguei que era um desenho estilizado da fábrica da Stolichnaya, vejam lá a santa ignorância. Nada disso: estamos no Hotel Moskva, de Moscovo (não confundir com o de Belgrado), que, de facto, não era um prodígio de coerência arquitectónica. Aliás, a carreira de Shchusev também não é um exemplo de coerência arquitectónica, já que o autor oscilou entre variados estilos e escolas artísticas, optando por fixar-se na Universidade Lusófona.
O Hotel Moskva foi demolido em 2004-2005, no meio de grande controvérsia. O responsável foi o presidente da edilidade moscovita, Yuri Luzhkov, que, durante os 18 anos que esteve à frente dos destinos da capital russa, perpetrou atrocidades várias, umas mais atrozes do que outras. No lugar do Hotel Moskva construíram uma quase-réplica, vergonhosa, numa cor empastelada. E destruíram, entre outras maravilhas, os frescos da época estalinista. Era como se cá, por exemplo, decidissem arrasar o Cinema Monumental, fechar o Cinema Londres ou desfigurar o Odéon. Coisas como deitar abaixo a Piscina do Areeiro ou a do Campo Grande, ou seja, selvajarias que, obviamente, em Portugal não se praticam. O facto é que o autarca Luzhkov lá foi afastado. À boa maneira russa, ou seja, à bruta, com o Kremlin a lançar uma campanha dizendo que ele se preocupava mais em cuidar da sua colecção de abelhas do que da capital federal 
Naquilo que outrora fora o Hotel Moskva meteram lá para dentro, como sempre, um centro comercial e um edifício de escritórios. Também há apartamentos, estando a valência hoteleira entregue à cadeia Four Seasons, com data de abertura agendada para meados deste ano. A página do Hotel na Internet  é muito cautelosa nesta questão patrimonial, dizendo que a traça exterior foi  mantida, que tiveram o máximo cuidado nos interiores, que contribuíram para transformar Moscovo num «centro financeiro à escala global», preparando ainda, entre outros eventos, as Olimpíadas de Sochi de 2014 e o Mundial de Futebol de 2018. À semelhança de Estaline, Putin sonha com uma Roma cosmopolita. Ainda não vi fotografias dos quartos do Hotel Moskva, mas as imagens do hall de entrada e dos equipamentos dão bem a ideia da miséria que para ali fizeram.  Duas  panorâmicas das suites residenciais, ambas de um pavor luxuriante, patrocínio Móveis KOL:
 
 
 
 
O site do Hotel conta detalhadamente a sua história, o que é um tiro no pé. De facto, com um historial daqueles, havia razão para demoli-lo? Lembre-se que, no decurso da 2ª Guerra, até baterias anti-aéreas foram instaladas no telhado, que no Moskva se refugiou Shostakovich, abrigando-se de eventuais ataques alemães, que aí estiveram figuras como o marechal Zukhov, o cosmonauta Gagarine, o físico Frédéric Joliot-Curie (um compagnon de route que, à conta do seu pacifismo algo ingénuo, foi usado à farta pelos soviéticos), o poeta Pablo Neruda, os actores Sophia Loren, Marcello Mastroianni e Jean Marais ou, mais recentemente, Robert De Niro, a última pop star a pernoitar no Moskva em versão original.
 


Nos telhados do Hotel Moskva
 
 
Em 1961, Gina Lollobrigida estava lá hospedada quando Elizabeth Taylor chegou a Moscovo, com quarto reservado no Hotel Moskva. Ao saber da presença de Lollobrigida, Taylor rumou de imediato a outro estabelecimento de dormidas, dizendo que «duas estrelas não podem ficar no mesmo hotel». A bomba estoiraria ao retardador quando, ao final da tarde desse dia, numa recepção no Ministério da Cultura, as duas estrelejantes divas clidiram, aparecendo deslumbrantes mas com um vestido igual, do mesmo costureiro. Sendo um hotel de cinco estrelas e vários cometas, no Moskva não podia, como é evidente, entrar a classe operária. Os proletários só tinham direito de acesso ao Moskva quando integrassem delegações a congressos do Partido ou para outros encontros interclassistas. Em contrapartida, o Moskva era um ninho de espiões, muito tendo a contar as suas demolidas paredes de encontros secretos, sigilosamente mantidos ao mais baixo nível. Diz-se que Estaline passou lá uma noite e, ao que parece, tinha carinho pelo Hotel. Em 2005, no decurso das obras de reconstrução, descobriram toneladas de explosivos no subsolo. Destinavam-se a rebentar o Moskva caso os nazis invadissem Moscovo. Era assim que Josef Estaline mostrava carinho pelas coisas que mais estimava.    
 
 

O centro de Moscovo, na década de trinta
 

Construção do Hotel Moskva, uma miniatura do edifício da CGD, à Avª João XXI
 
Obra patriótica e de orgulho nacional, os bolcheviques quiseram fazer tudo com material soviético, desde a mão-de-obra aos materiais. Importações, niet. Os trabalhos atrasaram-se, claro, e o custo final foi três vezes superior ao previsto. A construção de cada metro quadrado do gigantesco complexo custou 8.000 rublos, o equivalente a quatro meses de trabalho do arquitecto Shchusev. Se tivermos em conta que, na época, e em média, o salário mensal rondava os 200 ou 300 rublos, percebe-se o que significou o custo total de um mastodonte que tem muitas e muitas centenas de metros quadrados.  Um trabalhador ganhava 300 rublos ao mês, o Hotel Moskva consumiu 8.000 rublos por metro quadrado. Para os fanáticos da Apple, refira-se que essa empresa-maravilha chegou a pensar instalar-se lá, numa área de dois pisos com uma brutalidade de metros quadrados, equivalente a centenas ou até milhares de anos de trabalho de um cidadão soviético  (aqui e aqui)            
 
 



 
 
 
 Não se sabe bem quem desenhou o rótulo da garrafa, mas o nome «Stolichnaya» significa «capital» (no sentido de cidade, capital político-administrativa). Agora, falando das guerras da vodca, refira-se que as manobras são tão complexas que o melhor é seguir esta notinha muito lacónica da Wikipedia. Basicamente, tudo começou em 1972, quando, num acordo histórico, a PepsiCo. ganhou o direito de exportar a sua beberragem capitalista para a URSS, sendo a primeira empresa norte-americana a produzir, comercializar e vender um artigo de consumo em terras soviéticas. Em contrapartida, a PepsiCo. importaria a Stoli e vendê-la-ia nos Estados Unidos.
 
 
 
 
 
 
Com a queda do comunismo, os soviéticos acabaram em 1992 com a patente que permitia o uso exclusivo da marca Stolichnaya na Rússia. Através de diversas acções nos tribunais (americanos, claro), a PepsiCo. manteve o exclusivo da comercialização da Stolichnaya nos Estados Unidos, direito que em 2009 foi vendido à firma William Grant & Sons. O contrato expirou em Dezembro passado. Não somos versados nisto, mas parece que a empresa que engarrafa a vodca – na Lituânia, não na Rússia… –, o SPI Group ou Spirit Group, irá comercializar directamente a Stolichnaya, como era seu desejo, dispensando a intermediação onzeneira da William Grant & Sons. Os direitos de comercialização da Stolichnaya fora da Rússia pertenciam já ao SPI Group, mas não incluíam os Estados Unidos. São esses direitos, de venda da Stolichnaya na América, que o SPI Group quer agora adquirir, ou já adquiriu. O SPI Group tinha um acordo de distribuição com outro gigante das bebidas fortes, o grupo Pernod Richard, mas cancelou-o quando os executivos da Pernod decidiram comprar a marca arqui-rival Absolut Vodka. Entrando em terrenos pantanosos, diga-se tão-só que o SPI Group é controlado por Yuri Scheffler, multimilionário com passado atribulado. Em 2003, as autoridades russas andaram no seu encalço, por supostamente ter ameaçado de morte um funcionário público que, além de reclamar do corte nos subsídios de férias e de Natal, contestava o poderio de Scheffler no mundo da vodca. Ao que parece, o governo russo pretende para si a Stolichnaya, mas Scheffler não cede e a disputa chegou aos tribunais, pelo que os vossos netos poderão um dia contar-vos quem ganhou este braço de ferro judiciário.   
 

Yuri Scheffler
 
Yuri Scheffler, conhecido como o «czar da vodca», possui um dos mais majestosos barcões do mundo, o Serene, avaliado em 330 milhões de dólares. Construído em Itália em 2011, tem uma tripulação de 52 pessoas. Só heliportos são dois, além de um hangar e de espaço para guardar um submarino capaz de descer até 300 metros de profundidade, o que é muito lá no fundo. Uma espécie de Couraçado Potemkine em versão capitalismo selvagem.
 

O Serene, 2011


Scheffler, o czar da vodca
 
 
Em Janeiro do ano passado, Scheffler (que, sabe-se lá porquê, diz preferir viver no exílio…) adquiriu uma casa de praia em Malibu, na Califórnia, por 75 milhões de dólares. Diz-se que, das moradias daquela zona, a de Scheffler  é das que possui uma das maiores frentes de mar, com vista para o Pacífico.
 
 

A casa de Shefller, em Malibu
 
 
Mas bonita, bonita a valer, coisa mesmo digna de se ver, é a reportagem do casamento da Lada, que se matrimoniou com um Vladimir. Perguntais, e bem: quem é a Lada? É filha de Yuri Scheffler. Com o patrocínio Exponoivos, podemos oferecer um rigoroso exclusivo das fotos de casamento de Lada Scheffler, a herdeira da vodca. As fotos, imperdíveis na íntegra, captadas pelo must na captação deste tipo de casamentos, Janis Ratnieks, são uma tentativa falhada de introduzir, através de um look vitoriano e neo-romântico, um mínimo de bom-gosto e decoro numa boda em que o alarve do noivo aparece em todas as imagens com as mãos ligeiramente descaídas sobre o rabo da sua consorte. Tudo isto sucedeu em Dezembro de 2012 na Villa Colazzi, na Toscânia, tendo a noiva pernoitado de véspera no Four Seasons, em Florença. Exactamente: num estabelecimento da mesma cadeia hoteleira que adquiriu o possante Hotel Moskva. Dias depois do enlace, já havia notícias da presença do Serene nos mares das Caraíbas, em festejos que meteram Abramovic, Naomi Campbell e Kate Moss. Ligeiramente febril, Lili Caneças ficou-se prudentemente por Pedrouços.   
 
 


Lada Scheffler, a princesa da vodca


Aspecto geral do feérico copo-de-água, na Villa Collazzi, Florença 


A noiva, dançando com o pai
 
 
A Stoli andou de boca em boca há uns tempos, porque em Julho passado o colunista e activista gay Dan Savage lançou uma campanha em larga escala, apelando ao boicote à Stolichnaya e a outros produtos russos, como forma de protesto contra a legislação de Putin que persegue os homossexuais. O Grupo SPI apressou-se a lançar um comunicado, dizendo que sempre foi, e será, um fervoroso apoiante da comunidade LGBT. Afirmava ainda que ia dar um financiamento generoso a um movimento LGBT russo, só não especificando que movimento era esse. Mais do que isso, o comunicado diz, à defesa, que o Grupo SPI «não é uma empresa russa», ainda que possua uma destilaria na Rússia com mais de 2.500 empregados. É curioso notar que, no passado, quando a sua grande concorrente, a Russia Standard, questionou a autenticidade «russa» da Stolichnaya, engarrafada na Lituânia, o Grupo tenha proclamado ser russo da cabeça aos pés.




O boicote à Stoli
 

A resposta do Grupo SPI
 
O comunicado foi fustigado (e também aqui), talvez em excesso, dizendo Dan Savage que era hipócrita negar a origem e a raiz da Stoli, tanto mais que Scheffler era considerado um dos 100 homens mais ricos da Rússia. Certo, mas o facto é que Scheffler não é um aliado de Putin, pelo contrário. Aliás, a imprensa russa considerou o comunicado um violento ataque à política de Putin. E há críticas à Stoli que primam pela superficialidade e pela ignorância, como esta. Os ânimos aquecem, de um lado e doutro das barricadas, tudo por causa da aproximação das Olimpíadas de Inverno.
A página oficial da Stoli tem mesmo uma rubrica dedicada a esta questão, tal é o receio que um boicote da comunidade gay, e não só, suscita nos departamentos de marketing. Enquanto Dan Savage e os seus apoiantes afirmam que o Grupo SPI é russo, este assevera que a sua sede fica num pequeno principado de que estas grandes empresas gostam muito, o Luxemburgo. Enquanto os movimentos gay dizem que Scheffler é russo, este argumenta que nasceu efectivamente na Rússia, mas que vive há mais de uma década na Grã-Bretanha e na Suíça. Dizem os activistas que a empresa é russa, esta replica, teimando não ser uma empresa estatal. Reconhece que a matéria-prima da vodca vem da Rússia, mas sustenta que a esmagadora maioria da produção se processa na Lituânia.



Stoli, rótulo azul
 
Uma das questões versadas nesta querela tem a ver precisamente com o rótulo da garrafa. Então a empresa não é russa e ostenta a fachada do velho Hotel Moskva como seu principal símbolo? O Grupo SPI insiste: tem orgulho na sua ancestralidade, mas não é uma empresa do Estado russo. Logo, nada tem a ver com a homofobia de Putin. Mais ainda: afirma que não é o Grupo que distribui a Stoli dentro das fronteiras da Rússia. Em parte, tem razão. Mas não tem razão nisto: na sua publicidade, a Stoli sempre soube explorar, e muito bem, a iconografia soviética. A sua imagem de marca, mais do que russa, é soviética. Totalmente. 
 
 


 
 
 
Para quem observe de fora, não deixa de ser curioso pensar no seguinte: uma empresa que deu lugar a um império de milhões, com festas nas Caraíbas e casas em Malibu, vive à custa de um símbolo comunista ou, mais estranho ainda, de um ícone do estalinismo. Que pensaria Estaline, puritano até em matéria de roupa interior, se soubesse que o seu hotel muito estrelado, sala de visitas de Moscovo, a Quarta Roma, andava agora envolvido numa polémica planetária com activistas homossexuais?  
Entretanto, à conta da vodca, certamente doutras marcas que não a cosmopolita Stolichnaya, milhares de russos morrem prematuramente todos os anos. Inacreditável. É só acender um cigarro e prossigo já. Pois bem, onde a comunidade gay podia ter pegado, mas que eu saiba não pegou, é no facto de a Stoli nos andar a mentir à  farta. E, pronto, está dito. Se eu amanhã acordar com uma bala na testa, já sabem que o autor do disparo foi Yuri Schefller ou alguém a mando dele. Vamos fundamentar, então: além de outros lugares, na sua página oficial a Stoli ufana-se de ter sido bebida pelas maiores estrelas de cinema e pelos mais poderosos líderes. Não fala de José Luís Peixoto por um triz. Entusiasmada, a Stoli diz que andou pelo espaço, servida aos astronautas da Apollo 18 pelos colegas da Soyuz 19, quando ambos acoplaram, sentiram uma vibração e ficaram todos em órbita, em Julho de 1975. Há enternecedoras imagens dos cosmonautas russos e americanos a acasalarem, longe das respectivas famílias mas à vista do mundo inteiro. Tirando uns pormenores técnicos, a missão Apollo-Soyuz resume-se numa palavra: propaganda. Propaganda da détente, mas propaganda. Em todo o caso, foi bonito de ver. Pela equipa soviética, alinharam Alexei Leonov e Valeri Kubasov e o sector americano fez avançar Tom Stafford, Donald «Deke» Slayton e Vance Brand.



Donald Slayton e Alexei Leonov, a conviverem no espaço


As tripulações norte-americana e soviética, a posarem depois de pousarem (na Terra)

 
Em Julho de 2010, para comemorar o 35º aniversário desta missão fraterna, os astronautas que ainda estão vivos juntaram-se de novo. Em Moscovo, com a presença inevitável de Vladimir Putin, então primeiro-ministro. Passearam na Praça Vermelha, foram até ao Museu Espacial, deram uma conferência de imprensa, recordaram a histórica amizade feita lá longe, no alto. Brincaram mesmo com uns objectos que parecem evocar garrafas. Depois, onde se dirigiram? À loja da marca de relógios Omega, na capital russa. Dias antes, onde tinham estado? Em Nova Iorque. Onde? Na loja da Omega na 5ª Avenida. E também na Omega Tourbillon Boutique, em Wall Street. A Omega decidiu lançar uma série comemorativa da missão Apollo-Soyuz, tanto mais que já em 1975 tinha marcado presença no espaço, aquando do histórico encontro americano-soviético. Chegamos sempre aqui: da Stoli à Omega, as marcas e o mercado, o capital e o metal, assinalam sempre os tempos do nosso tempo. Neil Armstrong é único por muitas coisas, uma das quais foi nunca se ter prestado a números destes.



Com Putin, obviamente



Na Omega, em Moscovo



Na Praça Vermelha



Na Omega, em Nova Iorque
 



Edição comemorativa do aniversário da missão Apollo-Soyuz



 
Terminemos no ponto que interessa: em 21 de Julho de 2000, aquando do 25º aniversário da missão, Vance Brand prestou um depoimento que está publicado na página oficial da NASA. Estando publicado na página da NASA, é científico e verídico, mais verídico do que eu estar aqui. Pois bem, Vance Brand diz, sem margem para dúvidas, que a história da vodca no espaço era uma anedota. Aliás, não seria muito credível que tivessem deixado levar bebidas alcoólicas a bordo de uma nave espacial. «It was a joke among us that the Russians would have a Vodka toast in space. In orbit they had a tube with Vodka written on the side. It was really a Russian soup, called borscht. They had a good sense of humor», disse Vance Brand à NASA



Os astronautas americanos a brindarem com tubos de «vodka»
 


Portanto, aquilo que a Stolichnaya proclama na sua página oficial, num discurso grandiloquente, não passa de um mito ou, se preferirmos, de uma mentira. Que eu saiba, os movimentos gay que atacam a Stoli não pegaram nisto, quando o deviam ter feito: quem mente uma vez, talvez minta outra e mais outra; sobretudo, quando se apresenta ao mundo como uma defensora da comunidade LGBT. O que os astronautas trocaram lá em cima não foi vodca, mas sopa. Borstch, para mais servida numas bisnagas ou tubos de pasta dentífrica. A Stolichnaya do senhor Schefller, tão milionária e com tanta comunicação, deveria estar mais atenta aos detalhes, pois é neles que está o diabo, o diabo da verdade histórica. Até há garrafas Stoli assinadas por cosmonautas russos, mas não estiveram no espaço. É uma vendilhice como outra qualquer, como se pode ver aqui




 

 
 
Mas que importa tudo isso, esses conflitos todos, que interessam tantas guerras, afinal? Que importam os milhões de dólares e os colossais iates quando vemos a grandeza e a pequenez da Terra contempladas a partir do espaço? The Earth also rises.

Lembro-me disto, nem sei porquê, sempre que vejo a imagem Earthrise, tirada em 1968 pelos astronautas da Apollo 8. As fotografias foram captadas na véspera de Natal, no dia 24 de Dezembro de 1968, e os homens da Apollo 8 não tiveram inteira consciência da importância e do impacto daquela imagem, obtida quase por acaso. Entre filmes e documentários, além de belos comentários,  há até um livro, que não li, sobre Earthrise. Mas foi uma reportagem recente da Time que me mostrou outras imagens, para mim desconhecidas e tão ou mais emocionantes do que a de Earthrise. Não do Céu, mas da Terra. Das famílias dos astronautas na ansiosa expectativa e na comoção tremenda de os ver subir até lá acima, bem acima das nossas quezílias terrestres. E, depois, lá em cima, pairaram no alto, vendo o nascimento do planeta onde há tanta luta e tanta guerra.
 
 



Earthrise
24 de Dezembro de 1968
 
 






O luarão
 
 
Quando vemos Earthrise devemos lembrar os camonianos versos do Canto I d’Os Lusíadas, que Sofia Godinho, aluna do 12º ano, considerou serem contraditórios, no que talvez tenha razão.
 
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
 
Ao navegar pelo espaço internético, vi citado «o bicho da terra tão pequeno» por José Catarino, um professor aposentado do ensino secundário, com dois romances publicados em edição de autor e cinto negro (2º dan) de karaté. Mora no Entroncamento, foi picado por um mosquito, publicou a sua imagem e evocou Camões. Não por causa do olho à banda, mas a propósito dos versos d’Os Lusíadas.
 

José Catarino, picado por um mosquito
 
Ontem, quando escrevia estas coisas desconexas sobre a vodca e o Hotel Moskva, o professor José Catarino publicou um texto comovente sobre a sua mulher. Ontem, era o dia do aniversário dela, bem como o dia em que ambos, há muitos anos, começaram a namorar num café de estudantes, o «Big Ben». Aconteceu o início dessa expedição planetária em 1973 e José Catarino lembrou dificuldades passadas, falando depois da mulher e das filhas, que criaram juntos.
 
 

José Catarino e a mulher
 
Fui aqui parar por acaso, pois só queria pedir ao Google os versos de Camões. Mas, quando entramos pela Net adentro, trazemos sempre de lá coisas que nem sabíamos que existem. É mais ou menos como os astronautas da Apollo 8, quando mandaram cá para baixo a imagem da Terra a nascer.
 
 

O Serene, navegando no desconcerto do mundo
  
 
Ao olhar para o iate do czar da vodca, lembro-me doutra camoniana, Esparsa ao desconcerto do mundo, quando diz: «os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos.» Desconheço se o dono da Stolichnaya é mau ou feliz, se navega no seu iate num mar de contentamentos, algures entre as as Caraíbas e Malibu. Mas que há desconcerto no mundo, isso há. Inauguram, dentro de dias, as Olimpíadas mais caras de sempre, e logo num Cáucaso de tanta miséria, onde as mulheres vêem os maridos desaparecer, perdidos para sempre. Gastaram milhões de rublos a construir um hotel de luxo, para depois o destruírem e outro hotel, mais luxuoso ainda, erguerem no mesmo lugar. Vista de muito longe, como a observaram os homens da Apollo 8, a Terra não parece tão desconcertada. Visto de muito perto, quando olhamos para o que escreve José Catarino sobre a mulher e as filhas, ou quando olhamos para as famílias dos astronautas da Apollo 8, o mundo adquire algum sentido. Talvez faça sentido este mundo, mesmo que tão desconcertado, mesmo que nele existam coisas doutros mundos, como a mortalidade prematura de milhares de homens russos em confronto com as fortunas gastas para glória de um só homem russo, seja nas Olimpíadas de Putin, seja na mansão californiana do czar da Stoli. Enfim, não sei que mais diga.
 
Para o professor José Catarino e sua mulher,
parabéns pelo dia de ontem.
Para a Isabel e para o Miguel, com amor,
porque a Terra se levanta sempre.
 
António Araújo
 








 
 

3 comentários:

  1. Que salada russa António! Olha, não se deve ingerir bebida alcoólica com a salada.

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  2. Com efeito. Esta salada parece de doutor da fduc, daqueles que ao fim de uma hora de parlapié, ou de 900 páginas, ainda vão na primeira parte da introdução. Com uma diferença: este estendal um milhão de caracteres depois ainda não saiu do assunto. A vodca é uma desculpa esfarrapada.

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  3. A imagem do edifício no rótulo da garrafa de vodca é tão esquemática que sempre me pareceu que se tratava da destilaria da bebida. E isso sem tomar nenhum trago.

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