José Dias Coelho (1923-1961)
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1.º TRIBUNAL MILITAR TERRITORIAL DE LISBOA
Aos
cinco dias do mês de Janeiro de mil novecentos e setenta e sete, nesta cidade
de Lisboa e sala de audiências do 1.º Tribunal Militar Territorial, se reuniu
este, constituído pelos Juízes Presidente, Clodomir Sá Viana de Alvarenga,
Coronel de Inf.ª na reserva, Auditor, Dr. Alfredo Rui Francisco do Carmo
Gonçalves Pereira, Vogal, Mário Vasco de Oliveira, Coronel de Inf.ª, achando-se
presente o Promotor de Justiça, Roberto da Silva Ferreira, Coronel de Inf.ª, o
Advogado da Assistente, Dr. Fernando Luso Soares e o Defensor do réu Dr. Carlos
Quental, comigo Carlos António Caetano de Barros, Ten. Milº de Inf.ª,
secretário, todos sem impedimento, para o fim de julgar António Domingues,
ex-agente de 1.ª classe de ex-PIDE/DGS.
Reaberta
a audiência, esteve presente o réu retro identificado.
À
pergunta do Presidente a que se refere o artº 45º do Dec. nº 19892 de 15 de
Junho de 1931, respondeu o réu nada ter a alegar mais em sua defesa.
Interrompida
a audiência pelo Presidente, os Juízes recolheram à sala das conferências para
deliberar .
Reaberta
a audiência e retomados todos os seus lugares. procedeu-se com o cumprimento
das formalidades legais, à leitura do acórdão decisório que condena o réu
António Domingues como autor material de um crime previsto e punido pelo artº
361º § único do Código Penal e de uma infracção prevista e punida pelo artº 2º
nº 1 da Lei nº 8/75 de 25 de Julho, nas penas respectivamente de três anos e
nove meses de prisão maior e de noventa dias de prisão.
Nos
termos do artº 4º nº 2 do Dec. Lei nº 825/76 de 16 de Novembro. declarou-se
perdoado ao réu a tota1idade desta última pena de noventa dias de prisão. a
qua1 fica assim extinta. ficando este perdão sujeito à condição resolutiva do
nº 3 do mesmo artº
De
harmonia com o artº 3º do Dec. Lei nº 729/75 de 22 de Dezembro declarou-se
ainda perdoado ao réu mais noventa dias de prisão maior, pelo que ele terá de
cumprir três anos e seis meses de prisão maior no total. sendo levada em conta
na totalidade a prisão preventiva sofrida.
Feita
e encerrada em audiência pública, Lisboa, data retro, assinando o Presidente, o
Auditor e o Vogal, comigo, secretário, que a subscrevi, levando o visto do
Promotor de Justiça.
1º TRIBUNAL
MILITAR TERRITORIAL DE LISBOA
Acordam
em conferência os juízes do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa:
O
Exmo. Promotor de Justiça junto deste Tribunal acusa o réu ANTÓNIO DOMINGUES,
casado, ex-agente de 1.ª classe da extinta Direcção-Gera1 de Segurança, de 44
anos de idade, filho de Manuel Domingues e de Belarmina Esteves, natural de
Gave, Melgaço, e ora preso no Forte de Caxias, de ter cometido um crime
previsto e punido pelo artº 349º do Código Penal, concorrendo as agravantes 11.ª
(espera), 19.ª (noite), 25.ª (especial obrigação) e 28.ª (arma) do artº 34º do
mesmo diploma, porquanto, no dia 19 de Dezembro de 1961, os então agentes da
PIDE ANTÓNIO DOMINGUES, MANUEL LAVADO e
PEDRO FERREIRA, identificados nos autos, foram encarregados pelo então chefe de
brigada da mesma Polícia JOSÉ GONÇALVES, de localizar e prender JOSÉ ANTÓNIO
DIAS COELHO, também identificado nos autos e militante do Partido Comunista
Português.
Para
tal efeito, deslocaram-se à zona da Rua dos Lusíadas, desta cidade de Lisboa,
onde se colocaram já de noite, cerca das 19 horas, a cerca de 100 metros uns
dos outros, aguardando a vinda do referido JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO.
Tendo
este passado pela Rua dos Lusíadas cerca das 20 horas e tendo-se apercebido ali
da presença dos referidos agentes, começou a correr pela referida Rua dos
Lusíadas, derivando depois para a Rua da Creche no sentido do Largo do
Calvário.
Em
sua perseguição correram os agentes referidos.
Já
na Rua da Creche, sensivelmente em frente do nº 30 de polícia, foi o JOSÉ
ANTÓNIO DIAS COELHO agarrado pelo agente MANUEL LAVADO.
Entretanto,
chegou junto dele o réu que desfechou dois tiros de pistola marca «Star»
calibre 7,65 mm, examinada nos autos e que lhe estava distribuída, sobre o
referido JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO.
Um
dos tiros disparados veio a atingir o agente MANUEL LAVADO na manga da
gabardina, casaco e camisola do braço direito e quase ao nível do ombro, sem
contudo o atingir.
O
outro tiro atingiu a vítima JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO, na região esternal, provocando-lhe
as lesões descritas no relatório da autópsia, junto aos autos, as quais foram
causa necessária da sua morte.
O
projéctil perfurou o esterno, por onde entrou, dirigido de diante para trás e
um pouco da esquerda para a direita e perfurou ainda, no seu trajecto, a
cartilagem da 5.ª costela esquerda, o saco pericárdico, o coração, produzindo
hemopericárdio, hemotorax esquerdo, edema pulmonar, indo-se alojar sob a pleura
visceral donde foi retirado, :sendo a morte de JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO devida
a hemorragia consecutiva e perfuração traumática do coração (relatório da
autópsia de fls. 63 e seguintes).
O
réu disparou a referida arma com o cano encostado ou quase encostado à roupa da
vítima DIAS COELHO.
Na verdade, no forro da gabardina, na face anterior,
que a vítima vestia, encontraram-se partículas de pólvora resultantes do
disparo.
O
réu quis matar o JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO e tinha perfeito conhecimento do seu
acto. Como agente da P.I..D.E., o réu tinha a especial obrigação de não matar o
JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO.
No
processo apenso, o Exmo. Promotor de Justiça acusa o referido réu de ter
cometido um crime previsto e punido pelo art. 2º nº 1 da Lei 8/75 de 25 de
Julho, porquanto o réu ingressou no quadro técnico auxiliar de investigação da
ex-PIDE/DGS em 26 de Março de 1955, como agente auxiliar , tendo sido promovido
a agente de 2ª e 1ª classe respectivamente em 19 de Julho de 1956 e 24 de Junho
de 1963.
Logo após o seu ingresso, frequentou durante
três meses um curso elementar ministrado na Escola Técnica daquela ex-polícia, sendo
colocado de seguida na sede-Lisboa, onde estagiou nos vários serviços,
incluindo o de investigação, até ser colocado no posto do Caia-Elvas, em l
Outubro de 1955.
Em
Elvas permaneceu, em funções de controlo de fronteiras, até 1 de Janeiro de
1956, data do seu regresso à sede com colocação no Aeroporto de Lisboa onde
desempenhou, por um mês, actividades de fiscalização de passaportes.
Em
1 de Fevereiro do mesmo ano, foi colocado no posto marítimo de Alcântara, na
função de fiscalização de passaportes e vistos, onde esteve até regressar, em 1
de Março, novamente à sede, com colocação primeiro nos serviços reservados e
depois nos serviços de rua, onde desempenhou as funções de, respectivamente,
informação sobre admissão de candidatos ao funcionalismo público e vigilância a
membros do Partido Comunista Português.
Nestes
serviços de rua procedeu a várias prisões de elementos afectos àquele partido.
Foi
julgado incapaz para o serviço, por motivos de doença, em 17 de Janeiro de
1973.
Defende-se
o réu pela forma constante da sua contestação escrita junta ao processo, a qual
se dá por reproduzida para todos os efeitos legais:
Alega,
em síntese, que, na data indicada, o réu tropeçou e caiu, saltando-se lhe a
pistola que levava enfiada na cintura.
E
foi, ao recuperar a arma que ela se disparou acidentalmente e por uma só vez,
indo a respectiva bala atravessar a manga da gabardina do MANUEL LAVADO e
atingir a vítima.
Assim,
dado que o disparo foi fortuito, o réu não cometeu, em relação ao processo
principal, qualquer crime, não ter tido a intenção de matar ou ferir a vítima.
No
que toca ao processo apenso, o réu alega a inconstitucionalidade da Lei nº 8/75
e a amnistia respeitante à infracção respectiva e pede, no caso de decisão oposta,
uma condenação simbólica, para tanto invocando a atenuante dos artigos 7º e
6º-1ª do Dec.-Lei nº 349/76 de 13 de Maio.
Procedeu-se
a julgamento, com observância de todas as formalidades legais.
Invocou
o réu que a infracção prevista pelo artº 2º nº 1 da Lei nº 8/75 de 25 de Julho
e que lhe é imputada, estaria amnistiada por imperativo do artº 1º do
Decreto-Lei nº 173/74 de 26 de Abril, excepção que se tem de conhecer, antes de
mais.
O
artº 1º do citado Decreto-Lei nº 173/74 amnistiou os crimes políticos,
definindo como tais os previstos no artº 39º § único do Código do Processo
Penal ou seja «os cometidos com um fim exclusivamente político».
Excluem-se
os homicídios e ofensas corporais voluntárias, pelo que tal dispositivo nunca
podia abranger o crime de que o réu vem acusado no processo principal.
Mas,
poderá entender-se que pertencer à Direcção-Geral de Segurança ou às Policias
suas predecessoras constitui facto cometido com fim exclusivamente político?
Por
uma interpretação literal se podia desde logo dizer que os elementos da extinta
Direcção-Geral de Segurança, se porventura praticavam actividades
exclusivamente políticas o certo é que exerciam os seus cargos também para
auferirem os seus vencimentos e demais regalias de funcionários públicos, o que
não tem nada de político.
E
certo é também que a referida extinta Polícia, embora o fosse política e até
predominantemente política, pois lhe cabia a investigação, prevenção e
repressão de todas as actividades contrárias ao regime político então vigente,
tinha também outras funções como o controlo de fronteiras e de estrangeiros, a
delegação da Interpol e a instrução dos processos de emigração clandestina.
Por
outro lado, os seus elementos não exerciam funções de carácter político e é por
elas que estão incriminados na Lei nº 8/75.
Na
verdade, as actividades políticas ou de outra índole desenvolvidas pelos
elementos da extinta Direcção-Geral de Segurança, quando ilícitas, estão
previstas em outras leis, cabendo à nº 8/75 a punição dos funcionários pertencentes
à referida Polícia como tais, isto é, a mera titularidade de um cargo,
independentemente de que qualquer actividade tivesse sido ou não exercida.
Deste
modo, porque a extinta Direcção-Geral de Segurança não tinha funções
exclusivamente políticas e porque os seus elementos não exerciam cargos
políticos, as infracções previstas na referida Lei nº 8/75 não podem
considerar-se crimes políticos.
Improcede,
pois, a alega da excepção que, por isso, se indefere.
Não
há nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.
O
Tribunal é competente e nada obsta ao conhecimento de mérito.
Discutida
a causa, o Tribunal, por unanimidade, considerou provado o seguinte:
No
dia 19 de Dezembro de 1961, o réu e os seus colegas Manuel Lavado e Pedro Ferreira,
todos então agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, foram
encarregados pelo chefe da respectiva brigada José Gonçalves, de
loca1izareme prenderem um indivíduo,
JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO, então militante na clandestinidade do Partido Comunista
Português.
Para
tal efeito, o réu e os referidos seus colegas foram transportados de automóvel
à Rua dos Lusíadas desta cidade de Lisboa, onde, por volta das 19 horas, se
colocaram a cerca de 100 metros uns dos outros, aguardando a vinda do referido
indivíduo que calculavam passar por essa altura pela dita rua.
Esta
via desenvolve-se a descer no sentido mais ou menos Norte-Sul, sendo
atravessada perpendicularmente pelas ruas Leão de Oliveira e da Creche.
Os
mencionados agentes distribuíram-se de forma a que o Pedro Ferreira ficasse
para cima da Rua Leão de Oliveira, o réu à esquina da Rua da Creche e o Lavado
a meia distância entre os dois, todos no passeio do lado poente da rua dos
Lusíadas.
Cerca
das 20 horas, a vítima aproximou-se do local e entrou numa leitaria então
situada na Rua dos Lusíadas, um pouco a norte do local onde se encontrava o
Pedro Ferreira.
Este
avisou os seus colegas, reunindo-se todos no sítio onde se tinha colocado o
Manuel Lavado.
Logo
após, a vítima saiu da leitaria e desceu a Rua dos Lusíadas, pelo passeio do
lado poente.
Quando
a vítima se aproximou do réu e seus companheiros, o réu mandou o Pedro Ferreira
buscar o automóvel da P.I.D.E. que se encontrava a certa distância com o
respectivo motorista, tendo o Pedro Ferreira começado a subir a rua.
Entretanto,
o Dias Coe1ho, apercebendo-se da presença no local de agentes da P.I.D.E.,
gritou: «Pide, Pide», começando a correr pe1a referida Rua dos Lusíadas, no
sentido da Rua da Creche e, chegado ao cruzamento respectivo, derivou para esta
rua, no sentido do Largo do Calvário.
Em
sua perseguição, correram o réu e o Manuel Lavado.
Já
na Rua da Creche, um pouco abaixo do :prédio com o nº 30 de polícia e no
passeio do lado sul, foi o Dias Coelho agarrado por um braço pelo Manuel Lavado,
facto que levou aquele a voltar-se, ficando em posição oblíqua a este.
Simultaneamente,
chegou junto da vítima o réu que, em andamento, disparou sucessivamente dois
tiros com a pistola de marca «Star», calibre 7 ,65 mm, examinada a fls. 48, que
lhe estava distribuída e entretanto empunhara, em direcção ao JOSÉ, ANTÓNIO
DIAS COELHO.
O
primeiro destes tiros foi disparado a distância não exactamente determinada mas
superior a meio metro, tendo-se perdido o respectivo projéctil cuja trajectória
e localização posterior não foi possível serem apuradas.
O
segundo tiro foi disparado estando a arma muito próxima da roupa da vítima,
tendo o respectivo projéctil atingido o Dias Coelho na região esternal,
provocando-lhe as lesões descritas no relatório da autópsia de fls. 64 e
seguintes, as quais necessariamente lhe produziram a morte.
A
bala perfurou o esterno e, dirigindo-se de diante para trás e um pouco da
direita para a esquerda, perfurou ainda no seu trajecto a cartilagem da 5.ª
costela esquerda, o saco pericárdico e o coração, produzindo hemopericárdio,
hemotorax esquerdo e edema pulmonar, indo alojar-se sob a pleura visceral donde
foi retirada.
A
morte da vítima foi devida a hemorragia consecutiva e perfuração traumática do
coração.
Na
face anterior do forro da gabardina que a vítima então envergava encontraram-se
partículas de pólvora.
O
réu disparou voluntariamente os citados tiros com intenção de ferir o DIAS
COELHO e evitar assim que ele se escapasse, frustando-se a missão de que o réu
estava encarregado.
No
momento dos disparos era noite.
Como
agente da P.I.D.E., o réu tinha especial obrigação de não matar a vítima ou
qua1quer outra pessoa, nem de cometer qualquer acto ilícito.
Após
ter sido ferida, a vítima foi amparada pelo réu e pelo Lavado, sendo transportada
de seguida ao Hospital da CUF, de táxi.
Neste
hospital foram ministrados socorros ao DIAS COELHO que, no entanto, faleceu
cerca das 20 horas e 40 minutos do referido dia.
Nessa
noite, a vítima foi transportada para a morgue e ali registada como «pessoa
cuja identidade se desconhece».
O
réu confessou espontaneamente que tinha disparado o tiro que atingiu a vitima e
os demais factos até então ocorridos, embora negasse a voluntariedade do
disparo.
O
réu tinha bom comportamento anteriormente aos referidos factos (A circunstância
do exercício do cargo de agente da P.I.D.E. ser hoje punido, não significa, no
entender do Tribunal, por si só, perda de bom comportamento). O réu possui
vários louvores.
O
réu disparou sobre a vítima com o propósito de evitar que esta fugisse e assim
se frustasse a missão de que ele réu fora investido.
O
réu ingressou no quadro técnico auxiliar de investigação da então Polícia
Internacional e de Defesa do Estado, em 26 de Março de 1955, como agente
auxiliar, findo o seu serviço militar. tendo sido promovido a agente de 2.ª e
de 1.ª classe, respectivamente em 19 de Julho de 1956 e 24 de Junho de 1963.
O
réu, logo após o seu ingresso na P.I.D.E., .frequentou durante três meses um
curso elementar ministrado na respectiva escola técnica, servindo após
sucessivamente na sede em Lisboa, como estagiário dos diversos serviços, nos
postos do Caia em Elvas, do Aeroporto de .Lisboa e do Posto marítimo de
Alcântara, em funções de controlo de passaportes e novamente na sede de Lisboa,
primeiro nos Serviços de Informação e após numa «brigada de rua» para
vigilância de elementos do Partido Comunista 'Português, dos quais alguns foram
presos com a colaboração do réu.
Este
foi submetido a vários tratamentos do foro psiquiátrico, vindo a ser aposentado
em 17 de Janeiro de 1973, após ser julgado incapaz por uma junta médica. O réu
confessou espontaneamente estes factos.
Contra
o réu não foi apresentada qualquer queixa pela prática de actos ou omissões que
integrem torturas físicas ou psicológicas contra presos ou rigor excessivo
contra esses.
O
réu é de modesta situação económica e social.
Não
se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que o réu tivesse querido
matar a vítima ou que ao disparar os tiros, tivesse desejado ou previsto tal
morte que ocorreu independentemente da sua intenção.
Também
se não provou que qualquer dos projécteis disparados pelo réu tivesse
atravessado a manga da gabardina ou outra peça da roupa envergada pelo Manuel
Lavado, que o réu e os seus colegas tivessem a missão de identificar a vítima
ou que a sinalética deste lhes fosse fornecida, que o réu e os seus
companheiros ignorassem ou conhecessem a identidade da pessoa a prender, que a
vítima tivesse utilizado um candeeiro para fintar os seus perseguidores, que o
Manuel Lavado se tivesse projectado contra uma parede e magoado uma das mãos,
que o réu tivesse agarrado a vítima durante a perseguição, que o Lavado
estivesse meio curvado quando segurou a vítima ou tivesse puxado esta para si,
que o réu tivesse tropeçado, desequilibrado, cambaleado ou caído ou ainda que
se tivesse ferido na palma da mão, que a arma do réu tivesse saltado por
virtude da queda deste, que o réu tivesse procurado recuperar a mesma arma ou
que esta se tivesse disparado acidentalmente, que tivesse havido um só disparo
a cerca de 3 a 5 metros de distância, que o réu chegou junto da vítima no
momento em que este já. estava ferido, que o Domingues tivesse procurado um
táxi ou que a vítima tivesse sido identificada na P.I.D.E. após a sua morte.
Igualmente
não se fez prova bastante de que o réu se encontrava em situação aflitiva
quando entrou para a P.I.D.E., sem recursos monetários e sem possibilidade de
conseguir outra colocação, de que o réu tinha ou não qualquer ideologia
política nesse momento, de que a doença do réu tivesse surgido em consequência
dos factos relativos ao processo principal, de que o Domingues tivesse
trabalhado em actividade privada depois de aposentado, de que a sua mulher foi
presa ou de que ele réu teve abalos nervosos após a sua prisão.
Finalmente
não se apurou o montante de pensão .de aposentação arbitrada ao :réu.
Apreciados
os factos alegados pelas partes e consignados os que se provaram entre eles e
bem assim os resultantes da discussão da causa, cumpre agora ao Tribunal
aplicar aos factos provados as normas legais correspondentes.
É
evidente, em face dos mesmos factos, que se não provou ter o réu cometido o
crime previsto e punido pelo artº 349º do Código Penal, de que vinha acusado no
processo principal, pois igualmente se não provou que ele tivesse agido com
intenção de matar a vítima, elemento essencial do referido crime.
Também
se não provou que o réu tivesse previsto, desejado ou aceite a morte da vítima,
pelo que nem sequer se pode ponderar a hipótese de dolo eventual que a doutrina
e a jurisprudência têm quase pacificamente aceite e igualado, para efeitos de
enquadramento 1egal, ao dolo directo.
Porém,
é igualmente nítido que, tendo o réu disparado voluntariamente um tiro em
direcção ao Dias Coelho, com intenção de o ferir, sendo tal tiro causa
necessária da sua morte, tal facto constitui ofensa corporal que produz a morte
ou homicídio preter-intencionral integrando o crime previsto e punido pelo artº
361º § único do Código Penal, para o qual se faz a necessária convolação.
Esta
convolação é legítima, nos termos do artº 53º do Decreto nº 19892 de 15 de
Junho de 1931, por os elementos constitutivos do crime previsto pelo citado
artigo 361º § único, serem integrados por factos constantes do libelo
acusatório e que agora se provaram.
Na
verdade, refere o libelo e provou-se que o réu desfechou um tiro sobre a
vítima, que esta foi atingida pelo respectivo projéctil e que este lhe provocou
lesões que foram causa necessária da sua morte.
Ora,
desfechar um tiro de pistola sobre um indivíduo, atingindo-o, é manifestamente
uma ofensa corporal voluntária.
É
certo que o libelo não refere expressamente que o réu disparou voluntariamente,
mas esta voluntariedade, que aliás se provou, contém-se implícita na expressão:
«desfechou dois tiros... sobre o referido JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO».
De
outro modo, não poderia o libelo atribuir ao réu o crime de homicídio
voluntário, o que ninguém pôs em dúvida, já que, para além da intenção de
matar, é exigível igualmente a acção voluntária que cause a morte.
Aliás,
os elementos constitutivos dos crimes previstos pelos artºs 349º e 361º § único
do Código Penal são os mesmos, salvo quanto à intenção de matar que naquele
existe e neste falta.
Conclui-se
assim que, em relação ao processo principal, o réu cometeu um crime previsto e
punido pelo artº 361º § único do Código Penal.
Contra
o réu militam as circunstâncias agravantes 19.ª (noite), 25.ª (especial
obrigação) e 28.ª (arma) do artº 34º do mesmo Código, não existindo a alegada
agravante da espera pois até à chegada da vítima, o réu não formulou o
propósito de sobre ele disparar.
A
favor do réu provaram-se as atenuantes do bom comportamento anterior, da
confissão parcial dos factos, de possuir vários louvores e de ter agido com o
propósito de evitar ver frustrada a missão de que estava encarregado,
circunstâncias respectivamente 1.ª e 23.ª, esta por três vezes, do artº 39º do
mencionado Código.
Ponderadas
as agravantes e as atenuantes, naquelas se considerando a agravação ordenada
pelo referido artº 361º § único e a acumulação de actos ilícitos, atendendo a
que o réu agiu com dolo pouco intenso e que tem personalidade normal, entende o
Tribunal que a pena correspondente a este crime se deve graduar um pouco abaixo
da metade da sua duração máxima.
O
réu cometeu ainda, no que toca ao processo apenso e em face dos factos
provados, a infracção prevista e punida pelo artº 2, do nº 1 da Lei nº 8/75 de
25 de Julho.
Invocou
a defesa a inconstitucionalidade desta Lei, a declarar pelo Tribunal, o que
implicaria a recusa da sua aplicação, nos termos do artº 280º nº 2 da
Constituição e consequentemente, por falta de lei incriminadora aplicável, a
absolvição do réu por este delito.
Ao
Tribunal compete, de harmonia com o artº 207º da Constituição, apreciar este
problema, isto é, de verificar se a referida infringe ou não o disposto na
Constituição ou os princípios nela consignados.
Mas
só a isto se limita a acção do Tribunal, não lhe cabendo, por ser órgão de
soberania independente, ponderar as razões políticas ou de outra índole que
tenham originado a aprovação das normas cuja constitucionalidade se discute ou
sequer se elas estão ou não conformes com outros textos que moral ou
politicamente obriguem o legislador.
Os
Tribunais não apreciam o direito a constituir mas somente o direito positivo e
aplicam-no sempre dentro da hierarquia de normas, pois só assim se respeitam os
direitos de segurança dos indivíduos e a legalidade democrática que aos
Tribunais cumpre acatar e fazer obedecer.
A
circunstância, que é evidente, de a Lei nº 8/75 violar fronta1mente o princípio
da não retroactividade da lei penal, princípio hoje integrado no direito de
todas as Nações civilizadas e constante da «Declaração Universa1 dos Direitos
do Homem» e da «Convenção Europeia dos Direitos do Homem», textos a que
Portugal aderiu, não impõe necessariamente que o Tribunal recuse a aplicação da
mesma Lei, pois só o poderá fazer se ela for contrária a uma disposição legal
hierarquicamente superior, isto é, a uma norma constitucional.
Há
assim de apreciar apenas se ex tunc,
na data da sua publicação ou ex tunc,
neste momento, a Lei n.° 8/75 é ou não conforme com o ordenamento
constitucional.
Ao
atribuir ao Conselho de Estado poderes constituintes, a Lei Constitucional nº
3/74 de 14 de Maio que estabeleceu o regime constitucional provisório emergente
da Revolução do 25 de Abril de 1974, não impôs qualquer limitação material a
tais poderes.
Estes
foram transmitidos, igualmente sem limitação, ao Conselho da Revolução pela Lei
nº 5/75 de 14 de Março.
E
foi, utilizando tais poderes, que este Conselho aprovou a Lei Constitucional
n.° 8/75 sob análise.
Aprovada
pelo órgão constitucional competente, na forma competente e sem existir
limitação material ao poder constituinte, a lei em causa podia revogar, como
revogou, em relação aos aspectos nela directamente focados, todo o direito
anterior nele se incluindo o constante da Constituição de 1933 então ainda
parcialmente em vigor, do programa do Movimento das Forças Armadas e do Código
Penal.
Ex tunc, a Lei nº 8/75
nada tem, pois, de inconstitucional.
Porém,
com a entrada em vigor da Constituição actual, é evidente que a Lei nº 8/75
caducaria e ficaria revogada tacitamente não fora o artº 309º da Constituição
manter expressamente em vigor aquela Lei.
De
facto, o citado artº 309º, norma transitória da Constituição vigente, determina
no seu nº 1 que «mantém-se em vigor a Lei nº 8/75 de 25 de Junho...».
Dado,
porém, que o teor desta Lei é oposto ao preceituado em outros dispositivos
constitucionais como os artigos 13º, nº 1, 16º nº 2, 18º nº3 e 29º n.ºs 3 e 4
da Constituição, os defensores da inconstitucionalidade da mesma Lei argumentam
dever o referido artº 309º ceder ao disposto naqueles outros art.ºs, justamente
por se tratar de uma norma transitória, isto é de menor categoria, em vez de
suceder o inverso.
Salvo
o devido respeito, porém, não se adere a esta opinião.
Na
verdade, as normas transitórias são normalmente excepções ao regime jurídico
estatuído pela lei correspondente, estabelecendo para um tempo ou circunstância
determinado um sistema diferente do regulado nela. São, pois, normas
excepcionais que, como é sabido, prevalecem sobre as gerais
Observe-se,
por exemplo, que, por força do artº 294º da Constituição, norma igualmente
transitória, o regime de órgãos de soberania estabelecido pela Constituição não
se aplicou até à posse do novo Presidente da República, vigorando até então o
regime jurídico anterior. Desta forma, por um simples artigo das normas
transitórias paralisou-se quase toda a parte III da Constituição. E ninguém
protestou ou achou errado.
Verifica-se,
portanto, que as normas transitórias prevalecem sobre as gerais, no que toca às
matérias nelas previstas.
Importa
finalmente proceder à interpretação do teor do citado art.° 309. Na verdade,
este dispositivo poderia dizer que se mantinha a Lei nº 8/75 mas apenas como
lei ordinária e apenas na parte não oposta aos restantes preceitos da
Constituição.
Ter-se-ia
assim uma interpretação restritiva daquela norma, o que é legítimo quando os
princípios gerais de interpretação levam a concluir que o legislador, majus dixit quan voluit.
Ora,
quer a interpretação literal do mencionado art.° 309º quer a do seu espírito
conduzem, salvo melhor opinião, a solução diferente.
Na
verdade, pela letra da norma não se restringe quer o conteúdo quer a força da
lei que se mandou continuar a vigorar.
Pelo
elemento histórico, a leitura da discussão havida na Assembleia Constituinte, a
propósito deste art.° 309º, indica-nos que foi claro o propósito do legislador
constitucional de manter íntegra e como constitucional a Lei nº 8/75.
A
análise dos lugares paralelos para a interpretação sistemática mostra
nitidamente que a lei em causa foi mantida como constitucional, já que, como
ordinária estaria assegurada pelo disposto nº 292º nº 2 da Constituição.
E,
finalmente, o elemento lógico, o mais importante, prova que à Lei nº 8/75, foi
mantida intocável e como constitucional, pois de outro modo seria inútil o dito
art. 309º que só tem razão de ser para impor, como norma excepcional que é,
preceito contrário à parte geral do texto constitucional. Conclui-se assim, que
a Lei nº 8/75 se encontra em pleno vigor, é constitucional ex nunc e os Tribunais devem aplicá-la.
Este
é, aliás o entendimento do V. Supremo Tribunal Militar expresso no seu douto
acórdão de 25 de Novembro de 1976, proferido no processo nº 11/76 oriundo do 2º
Tribunal Militar Territorial de Lisboa.
O
réu cometeu, pois, a infracção prevista e punida pelo artº 2º nº 1 da referida
Lei nº 8/75 de 25 de Julho.
Em
referência a ela, não militam agravantes contra o réu, mas verifica-se a
existência da circunstância 34.ª (acumulação de crimes) do artº 34º do Código
Penal, por virtude da existência de dois delitos.
A
favor do réu provaram-se as atenuantes do bom comportamento anterior, da
espontânea confissão do crime e de não ter sido contra e]e apresentada queixa
por actos ou omissões de tortura, circunstâncias respectivamente 1.ª e 9.ª do
artº 39º do Código Pena] e 1.ª do artº 6º do Dec.-Lei nº 349/76 de 13 de Maio.
Estas
atenuantes, nomeadamente a última, pelo seu especial valor, justificam e impõem
a atenuação extraordinária da pena a aplicar por esta infracção.
Pelo
exposto, o Tribuna1, por unanimidade, julga as acusações procedentes e
provadas, sendo a do processo principal nos termos expostos de convolação, pelo
que, ponderado o disposto no artº 84º do Código Penal e fazendo uso, quanto à
infracção do processo apenso, da faculdade extraordinária concedida pelos artº8
7º da Lei nº 8/75 de 25 de Julho e 5º e 7º nº 1 do Dec.-Lei nº 349í76 de 13 de Maio,
condena o réu ANTÓNIO DOMINGUES, como autor material de um crime previsto e
punido pelo artº 361º § único do Código Penal e de uma infracção prevista e
punida pelo artº 2º nº 1 da Lei nº 8/75 de 25 de Julho, nas penas
respectivamente de três (3) anos e nove (9) meses de prisão maior e de noventa
(90) dias de prisão.
Nos
termos do artº 4º nº 2 do Dec. Lei n.º 825/76 de 16 de Novembro, declara-se
perdoado ao réu a totalidade desta última pena de noventa dias de prisão, a
qual fica assim extinta, não havendo lugar à sua acumulação jurídica com a
outra pena por ser inútil, em face do imperativo do artº 102º § 2º parte final,
do Código Penal.
Este
perdão que não é aplicável à pena pelo crime do processo principal, dado o
disposto no artº 6º alínea e) do citado Decreto-Lei n.º 825/76, fica sujeito à
condição resolutiva imposta pelo artº 4º nº 3 do mesmo diploma.
De
harmonia com o artº 3º do Dec.-Lei nº 729/75 de 22 de Dezembro, declara-se
ainda perdoado ao réu mais noventa (90) dias de prisão maior.
Ele
terá assim de cumprir três (3) anos e seis (6) meses de prisão maior no total,
sendo levado em conta na totalidade a prisão preventiva sofrida.
Remeta
boletins ao registo criminal.
O
réu recolhe sob prisão.
Lisboa,
5 de Janeiro de 1977.
* In Carlos
Quental, A Morte de Dias Coelho. A defesa
que a Ordem me confiou, Lisboa, Editorial Resistência, 1978, pp. 113-123.
"O réu quis matar o JOSÉ ANTÓNIO DIAS COELHO e tinha perfeito conhecimento do seu acto." os juízes que julgaram este e outros casos deviam, também eles, ser julgados, por cumplíces de tais crimes.
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