terça-feira, 11 de março de 2014

Crónica Feminina.

 
 
 
Celeste Martins Caeiro
 
 
A jornalista Ana Sofia Fonseca encontrou uma forma originalíssima de evocar o 25 de Abril. Em Capitãs de Abril recolhe o testemunho das mulheres, esposas e companheiras de alguns dos protagonistas principais da revolução. Uma delas foge à regra, pois não era casada com um capitão. Celeste Martins Caeiro, a mulher dos cravos. A história é conhecida, existem outras versões, mas nunca a vi contada com tamanho luxo de detalhes, incluindo fotografias de Celeste mesmo criança e quando jovem. Celeste era filha de Teodora de Viana Martins Caeiro, que nasceu em Espanha e, ainda menina pequena, veio morar para a Amareleja, no Alentejo. Jovem, Teodora rumou a Lisboa, cidade onde teve três filhos, um dos quais Celeste. Todos os filhos de Teodora foram confiados a instituições de caridade. Com apenas 18 meses de idade, Celeste foi internada na Creche do Alto do Pina, na Rua Barão de Sabrosa, dirigida pela Santa Casa da Misericórdia. De quando em vez, a mãe ia visitá-la. Aos 14 anos, transferiram-na para o Asilo 28 de Maio, também conhecido por «Lazareto», em Porto Brandão, ou seja, na outra margem do Tejo. Dali, regressou a Lisboa, ao Colégio de Santa Clara, da Casa Pia, no largo onde ainda fazem a Feira da Ladra, terças e sábados. Saiu de lá aos 20 anos, com estudos de pré-enfermagem que lhe davam equivalência ao segundo ano do liceu. Começou a trabalhar numa fábrica de camisas na Avenida Almirante Reis e, mais tarde, empregou-se na tabacaria do Café Patinhas, na Rua da Prata. Aí conheceu um homem, cliente habitual do estabelecimento. Sem casar, foram viver ambos para o Bairro América, junto aos carris de Santa Apolónia. Celeste teve uma filha desse homem, que bebia e lhe batia. Aguentou, para que a criança não nascesse e fosse registada como filha de «pai incógnito». Depois, separou-se dele. Lendo as páginas de classificados do Diário de Notícias, tomou emprego no bengaleiro da boîte Marygold, na Rua do Sol ao Rato, que à época diziam ser poiso de homossexuais e drogas. Por causa de tudo isso, por ser mãe solteira e ter um emprego malvisto, o senhorio despejou-a da casa onde vivia. Uma pessoa amiga disse-lhe para falar com o escritor Sttau Monteiro, e este arranjou-lhe um advogado que conseguiu adiar por uns tempos a ordem de despejo. Mudou de emprego entretanto. Foi trabalhar para a Rua Braamcamp, para o self-service do «Franjinhas», edifício traçado por um arquitecto, Nuno Teotónio Pereira, que naqueles tempos estava preso em Caxias, por razões de oposição ao regime. No dia 25 de Abril de 1974, o self-service do «Franjinhas» fazia um ano de existência. O gerente comprara cravos no Mercado da Ribeira para oferecer às clientes, num gesto de cortesia comercial. A revolução deu outro destino às flores. O restaurante não iria abrir as portas nesse dia e os cravos, à falta de melhor, foram distribuídos pelos empregados. Celeste desceu a Avenida com uma braçada de cravos, uns brancos e outros vermelhos. Ia a caminho de casa, na Rua do Sacramento, nº 14. Vivia aí com a mãe, Teodora, e com a filha. Ao chegar ao Rossio, perto da Tabacaria Caravela, viu muitos soldados e alguns tanques de guerra. Perguntou a um soldado o que andavam para ali a fazer, com carros de combate em plena Praça de Dom Pedro V. Explicando que estava em curso uma revolução política, o soldado perguntou a Celeste se lhe oferecia um cigarro, que o queria fumar. Celeste não tinha cigarros, só tinha os cravos, dando um ao jovem militar. Este colocou-o na ponta da sua espingarda, no que foi seguido por outros camaradas, revoltosos como ele. Depois, distribuídas todas as flores, Celeste sobe a correr as escadas do 14 da Rua do Sacramento, avisando a mãe de que havia uma revolução na rua ou, melhor, em Lisboa inteira. Teodora vai à varanda ver as movimentações, mas não ousa descer de casa, ao contrário de Celeste, que percorre curiosa o Chiado, a essa hora já todo alevantado. Regressando ao lar, não reclama para si a autoria da ideia dos cravos: era mais prudente aguardar pelo evoluir da situação. Serão as colegas do self-service que a dão a conhecer ao mundo, que a descobre, primeiro que tudo, nas páginas da Crónica Feminina. Deu depois entrevistas várias, tornou-se famosa. E passou a ter sempre cravos na varanda do seu quarto, no 14 da Rua do Sacramento. Anos depois, o incêndio no Chiado deixou-a sem nada, excepto a bata que trazia vestida na hora da fuga. Vive actualmente perto da Rua de São José, mas passa largas temporadas fora de Lisboa, na casa da filha. Tem 79 anos de idade e isto ocorreu, portanto, há quase 40 anos.    
 

 

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