sábado, 22 de março de 2014

As aventuras de Alice no coração das trevas.

 
 
 
 
Alice Seeley Harris, no Congo

 
 

A Wikipedia, que é um mundo, não tem sequer uma entrada sobre ela. Apenas dedica umas linhas, poucas, ao marido, John Hobbis Harris (1874-1940).  Em 6 de Maio de 1898, John Harris, filho de um canalizador que mais tarde se tornou empreiteiro, casou com Alice Seeley. John Harris era missionário baptista e, juntamente com Alice, partiu para o Estado Livre do Congo. Aí, o casal testemunhou as atrocidades que vinham sendo cometidas contra a população nativa, sob a égide do rei Leopoldo II. Enquanto Harris denunciava os crimes pelo poder da palavra, Alice fotografava corpos mutilados. As suas imagens, horríveis e brutais, são, muito provavelmente as primeiras que se fizeram numa campanha a favor dos direitos humanos. Alice Seeley foi pioneira, como mulher, como fotógrafa, como foto-repórter humanitária.
 
Alice, junto à «Árvore de Livingstone»
 
 
         Em O Fantasma do Rei Leopoldo, o crudelíssimo livro de Adam Hochschild sobre o Congo Belga, existem inúmeras referências à acção deste casal de missionários. Disse atrás que John falava e Alice fotografava. Não é bem verdade: ambos falaram, muitas e muitas vezes. Nos dois primeiros anos em que colaboraram com a Congo Reform Association, fizeram mais de 600 discursos. Numa dessas ocasiões, uma mulher comoveu-se a tal ponto que entregou as suas jóias a Alice, para que fossem vendidas em benefício do movimento. Num comício realizado na Suíça, os presentes ficaram estupefactos de horror quando Alice apresentou as suas fotografias de crianças mutiladas. As imagens  de Alice falavam mais do que todos os seus discursos. Mostravam negros congoleses agrilhoados ou, pior ainda, com os membros amputados. Porquê, para quê? A borracha era produzida no Congo a 1,35 francos o quilo e vendida na Europa a 10 francos. O processo de produção era horripilante: os trabalhadores deixavam que as árvores cobrissem o seu corpo de borracha, a qual era arrancada à pele quando secava, algo tão doloroso como arrancar o couro cabeludo. Para manter a ordem e alcançar as quotas de produção, foi criada a Force Publique. Os milicianos tinham de mostrar as mãos ou os pés cortados das suas vítimas, pois só assim seriam pagos: doutro modo, julgar-se-ia que tinham gasto as munições, dispendiosos, para outros fins, como a caça. Era necessária uma prova material da barbárie. O serviço era pago à vista. Há também notícia de habitantes de aldeias que mutilavam os seus vizinhos para receberem o prémio da Companhia. 
 
 
 
 
 
 
Fotografias de Alice Harris
 
 
 
 
 
 
         A Congo Reform Association teve o apoio de escritores famosos: Anatole France, Arthur Conan Doyle, autor de The Crime of the Congo (texto integral aqui), Joseph Conrad, com Heart of Darkness, e Mark Twain, que escreveu a sátira política King Leopold’s Soliloquy.
         Se lermos a sátira de Twain, na sua edição original, veremos que muitas imagens são baseadas nas fotografias de Alice, cujo nome não é citado. A mais impressionante de todas mostra um pai a olhar para os restos mortais da sua filha, supostamente morta e devorada. A fotografia foi tirada em Baringa, em 15 de Maio de 1904. O pai chamava-se Nsala, era do distrito de Wala, e contempla o que restava da sua filha, chacinada pela milícia da sinistra ABIR, a Anglo-Belgian Indian Rubber Company. Diz-se que a milícia da ABIR matou a mulher, a filha e o filho de Nsala. 
 

Fotografia de Alice Seeley Harris, 1904
 
Ilustração do livro de Mark Twain
 
 
Ao contrário do que afirma a Wikipedia, a fotografia não tem como fonte o livro de Twain; o livro de Twain contém uma ilustração que, essa sim, se baseia na fotografia de Alice Seeley. Aliás, a legenda diz apenas que o desenho foi feito a partir de uma fotografia captada «por missionários». O livro de Twain mostra ainda um conjunto de imagens de crianças mutiladas, dizendo apenas «From Photographs, Congo State». Mesmo nos nossos dias, quando se evoca a imagem, fala-se da «dor impenetrável» de Nsala, mas não se cita a autora da fotografia.
         Num manuscrito autobiográfico de John Harris, inédito, que Hochschild cita, o missionário conta a origem daquela fotografia: «Quando terminávamos o pequeno-almoço, um pai africano subiu a correr os degraus da varanda da nossa casa de taipa e depositou no chão a mão e o pé da sua filhinha, que não teria mais de 5 anos». Desconheço como Harris concluiu que a menina teria cinco anos, como não sei o que se passou a seguir. Parece estranho que alguém suba a correr os degraus de uma casa, deposite a mão e o pé de uma filha no chão e depois fique ali, pensativo e contemplativo, a observar os despojos do sangue do seu sangue. O rosto aparenta resignação e serenidade, mas seria ousadia extrema adivinhar que pensamentos atravessavam nesse instante o espírito daquele pai. Tranquilo, talvez, mas não entregue ao seu destino. Pelo menos, fez algo: tomou a decisão de ir mostrar a mão e o pé da sua filha ao casal Harris. Possivelmente porque já conhecesse o que Alice e John faziam para que crimes daqueles não se repetissem.
         Exterminem todas as bestas, é o título doutro livro dilacerante sobre o Congo, da autoria de Sven Lindqvist. Não se sabe quantas vidas terão sido poupadas ao extermínio devido à acção de homens e mulheres como John Harris e Alice Seeley. John seria eleito deputado, anos depois. E até feito cavaleiro. Lady Alice, estranhamente, está esquecida. Ela, a autora de fotografias como estas. Recentemente, em Janeiro deste ano, saiu uma biografia de Alice, da autoria de Judy Pollard Smith, livro que não li mas que me parece ser obra de divulgação, vocacionada para um público juvenil. Há dias, noticiou-se uma exposição de um artista plástico congolês, Sammy Baloji, que se inspira assumidamente nas fotografias da missionária inglesa. O arquivo fotográfico de Alice Seeley só há pouco foi exibido ao público. Durante 110 anos, ninguém o viu ou se interessou em mostrá-lo. Encerrou há poucos dias aquela exposição: Congo Dialogues, patente em Rivington Place, em Londres, que colocava a par os trabalhos de Alice Seeley Harris e de Sammy Baloji. A exposição esteve também em Liverpool e temos até um depoimento-vídeo da bisneta de Alice, mas pouco mais.
         De Alice pouco sei. Nasceu em 1870, em Malmesbury, no Reino Unido. Foi para o Congo com o marido, de quem teve quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Combateu as atrocidades no Congo de Bíblia e de máquina de fotografar em punho. Foi militante activa da Anti-Slavery International até morrer em 1970, aos cem anos de idade. Espanto-me que tão pouco se saiba ou fale de Alice Seeley Harris, quando a sua história tinha todos os ingredientes para ser celebérrima. Porventura, as suas fotografias são, ainda hoje, demasiado chocantes, mesmo para um mundo tão habituado a imagens de choque e pavor. Ao falarem em comícios, palestras ou encontros na Europa e nos Estados Unidos, os membros da Congo Reform Association projectavam as imagens de Alice. «Palestra Com Projecções Sobre As Atrocidades Do Congo», diziam os anúncios, acrescentado: «60 excelentes diapositivos com fotografias feitas por Mrs. Harris, vinda de Baringa, no Estado Livre do Congo. Prelecção descritiva, revista pelo Rev. J. H. Harris e pelo Sr. E. D. Morel». Os diapositivos de Alice Jarris, a preto e branco e com 7,5 centímetros de lado, projectados a «lanterna mágica», terão feito tanto ou mais pelo fim das atrocidades no Congo do que os escritos de Arthur Conan Doyle, Joseph Conrad ou Mark Twain. Quando Hochschild fez a investigação que deu lugar a O Fantasma do Rei Leopoldo, livro de 1998, as fotografias de Alice, que actualmente se vendem aqui, continuavam depositadas em duas poeirentas caixas de madeira guardadas numa prateleira do rés-do-chão de uma pequena casa de renda barata do Sul de Londres, a sede da Anti-Slavery International, que John e a mulher mantiveram em funcionamento depois de terem cessado os horrores no Congo. Activa desde 1839, a Anti-Slavery International é a organização humanitária mais antiga do mundo. Mundo que é um lugar estranho: a imagem de Nsala a contemplar a mão e o pé da sua filha morta foi captada em 1904 mas permanece actual. Somos incapazes de a ver sem pensarmos na sua estranha contemporaneidade.
        O João Gama relembrou-me a fotografia de Nsala há poucos dias, quando eu já tinha esquecido que a vira no livro de Hochschild. O Miguel Metello de Seixas ofereceu-me, pouco depois, um livro sobre as imagens dos missionários em África, tema ao qual gostaria de regressar em breve, a propósito de Tintin au Congo e das suas polémicas. Hoje fica este texto, que é para a Filipa Vicente, com amizade, do
 
 
António Araújo
 
 
 
 
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Extraordinario trabalho.Obrigado por ele.Pena não ter maior divulgação.
    Atrevo-me a acrescentar algumas notas.Ha um livro :O Sonho do Celta(M V Llosa) e outro(melhor) de W G Sebald em que o tema é tratado e acredito que seriam recomendados a quem se interessar por este atigo e não os conheçam.
    Fiquei a pensar em como as palavras por si nada dizem:Estado Livre do Congo e depois Republica Democratica do Congo.Teria graça se não fosse trágico.Outro pormenor:Havia uma rapariga entre as vítimas com Óculos ou é artefatual?Fiquei a imaginar como os teria obtido, enfim ,daria mais uma historia provavelmente.Creio que o capitalda companhia que explorava a borracha era misto:Belga e Ingles.Não?

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    1. Obrigadíssimo pelo seu comentário. Sobre a Abir, pode consultar:
      http://en.wikipedia.org/wiki/Abir_Congo_Company
      Cordialmente, muito grato
      António Araújo

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