Eugène Ionesco (1909-1994)
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EUGÈNE IONESCO, A GUARDA DE FERRO E A
RINOCERITE
(com
trechos duma entrevista de Ionesco em Portugal)
“History
(…) is a nigthmare from which I am trying to awake”
James
Joyce, Ulysses (1922).
1.“A alma balcânica”
Ionesco, um amigo íntimo de Mircea Eliade nos tempos
convulsos da Guarda de Ferro,[1] mas
bem distante pelo seu cepticismo crítico em relação às suas formas de fascínio
pela violência político-mística e pelo anti-semitismo delirante – até porque a
sua mãe era judia [2] –, lembraria os frenéticos
camisas verdes balcânicos de maneira
lúcida no seu livro de fragmento de memórias Présent passé Passént présent:
“Uma «cultura» balcânica original e
autêntica não pode ser verdadeiramente europeia. A alma balcânica não é
europeia nem asiática. Isso nada tem a ver com o humanismo ocidental. (…). Os
balcânicos declaram-se cristãos, mas eles não o são, quase não são. Podem ter
uma espécie de fé, uma fé não psicológica, uma fé como uma decisão tomada. Eles
não têm sobretudo a caridade. A fé para eles pode não ser considerada como uma
fé, de tal modo é diferente da fé afectiva, psicológica intelectual dos
católicos e dos protestantes. Os popes são materialistas positivos, ateus no
sentido ocidental; eles são bandidos, sátrapas, manhosos com as suas barbas
negras. Sem piedade, telúricos: verdadeiros «trácios». O soberano
moldavo-valáquio mais admirado, o mais popular, chamava-se Vlad, cognominado de
Empalador, porquanto o empalamento era a sua única maneira de matar, que
reservava aos ladrões, aos seus rivais, aos soldados turcos que ocupavam o seu
país e contra os quais se tinham revoltado, aos desertores, aos mercadores, aos
caídos em desgraça e assim sucessivamente. O fenómeno Guarda de Ferro não é
qualquer coisa de passageiro, é profundamente balcânico, é verdadeiramente a
expressão da dureza da alma balcânica no seu refinamento.” [3]
Este admirável texto de Ionesco
no seu Présent passé Passé présent é uma síntese de intra-história que nos
ajuda a compreender a barbaridade animalesca dos legionários da Guarda de Ferro
de Codreanu, que matavam com uma selvajaria mística, como nos massacres
de 21 a 23
de Janeiro de 1941 em Bucareste, logo em seguida ao afastamento deste grupo
político por Antonescu – já Eliade se achava em Londres –, em que chacinaram judeus e
foram pendurar os seus cadáveres nos açougues da cidade.
Albrecht Dürer, Rinoceronte, 1515
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2. A rinocerite
Noutra passagem do mesmo
livro[4],
Ionesco, ainda a propósito da Guarda de Ferro, pergunta como seria possível
falar com um lobo, com um rinoceronte: “Como fazer-lhes admitir os meus valores, o
mundo interior que eu transporto. De facto, como o derradeiro homem nessa ilha
monstruosa, já não represento nada, a não ser uma anomalia, um monstro. Sim,
eles parecem-me ser rinocerontes.” (p. 164), Está aqui o tema ionesquiano da rinocerite, que o levaria a escrever a
peça O Rinoceronte (1959),
extraordinária parábola de como se chega à desumanização colectiva das
sociedades pelo fascismo (ou pelo estalinismo soviético).[5] Em
suma, para Ionesco esta peça não se confinava ao exame do nazismo mas a todos
os totalitarismos contemporâneos de direita ou de esquerda, europeus ou
sul-americanos, a todas as histerias colectivas do “homem novo” e dos ideólogos que obedeceriam ao
“instinto de rebanho” como o Bérenger desta peça. Noutra passagem do Présent passé…, Ionesco escreve: “Agosto de 1940. Os polícias são
rinocerontes. Os magistrados são rinocerontes. Tu és o único homem diante dos
rinocerontes. (…). E tu mesmo perguntas: é verdade que o dera conduzido por
homens?” (op. cit, p.,114) E associa
o rinocerontismo ao “homem novo”, que pode significar: “tudo pelo Estado, tudo
pela Nação, tudo pela Raça. Isso parece-me monstruoso, evidentemente. (…). Como
ser pelo Estado, que não passa duma máquina para administrar? Não é um homem,
não é Deus, não é um anjo, não é mesmo uma ideia, um mito. É uma abstracção ou
antes uma máquina jurídica, mas para os rinocerontes, o Estado tornou-se um
Deus! (…), Não se quis Deus, porque Deus vos aliena e eis que se fez do Estado
um Deus com o fim de sermos nós alienados.” (p.115); e logo acrescenta, comentando
este texto de 1940: “Nesse momento, eu falava da mentalidade fascista e dos
Guardas de Ferro e dos seus colectivismos. Hoje isto aplicar-se-ia aos
marxismos e às sociedades marxistas.” (p.116,
datado de 1967).
Ainda noutra passagem do
mesmo livro Présent passé…, Ionesco
recolhe alguns apontamentos seus sobre o período de 1940 e acrescenta-lhes
reflexões dos anos 60. Eis o essencial desse texto: “Assisti a mutações. Vi
pessoas transformarem-se. É como se eu tivesse surpreendido o processo mesmo da
metamorfose, como se tivesse assistido ali. Eu sentia-os primeiro tornarem-se
cada vez mais estrangeiros, senti como germinava neles uma outra alma, um outro
espírito. Perdiam a sua personalidade, substituída por outra. Tornavam-se
outros. (…) estávamos ali, juntos, nós que tentávamos resistir aos outros, àqueles que nos
cercavam. Era duma resistência mental que se tratava. (…). Éramos jovens na
época e como resistir intelectualmente a tantos especialistas fanatizados: sociólogos,
filósofos da cultura, biólogos que fundavam «cientificamente» um racismo,
literatos, jornalistas. Há de facto uma biologia marxista, houve de facto
filósofos entre os maiores que cederam ao absoluto do Estado ou ao delírio
colectivo. Que podíamos nós fazer (…) e tentar pensar, entre nós, e responder a
todas as rádios que uivavam, a todos os discursos, a todas as imagens, a todos
os livros que nos assaltavam. (…). Éramos cada vez menos numerosos e eu sabia
como é que aquilo se passava: eu dava-lhes quatro a seis semanas para
sucumbirem definitivamente, para ceder à tentação, à tentação da força, para
encontrarem desculpas para o seu medo. Para deixarem cair os braços, não terem
mais de combater, admitirem interiormente todas as razões dos outros e
tornarem-se eles mesmos como os outros, com um grande alívio. Eles tornavam-se
possessos.
Estou espantado de ver
até que ponto isto se parece com a minha peça O Rinoceronte. É mesmo isto a génese dessa peça. Só recentemente é
que, retomando páginas antigas do meu diário, vi que o que eu chamava rinoceronte,
e que tinha esquecido completamente, e que só por um curioso acaso me parecia
retomar o nome desses adversários ou desses fanáticos imbecilizados. Esse
fanatismo delirante existe ainda nos nossos dias e são os comunistas e são os Guardas
Vermelhos e assim sucessivamente… Já não são mais os nazis. (...). É como se eu
tivesse assistido a transformações. Vi gente metamorfosear-se. Constatei, segui
o processo da mutação, vai como é que irmãos e amigos se tornavam
progressivamente estrangeiros. Senti naturalmente germinar neles uma nova alma:
como que uma nova personalidade substituía s sua personalidade.” (pp.168-172).
Símbolo da Guarda de Ferro
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3.O pai de Ionesco ou
“o espírito da ortodoxia”
Neste mesmo livro Présent passé…, Ionesco fala da
trajectória política e profissional dum advogado que parece ser exactamente o
seu pai (pp.184-187): por exemplo, depois de ter sido de um dado partido, adere
à Guarda de Ferro. “Delírio colectivo, entusiastas adesões em massa. Codreanu ,
como Mao, como Hitler, é o tirano bem-amado, o matador adorado, o profeta ou o
Messias enviado por Deus por fazer justiça. Mas sobretudo para matar e para
flagelar os seus inimigos. (…). Depois vem a guerra: a Guarda de Ferro no
poder, a Guarda de Ferro afastada do governo, um general, inimigo das Guardas
de Ferro, mas igualmente inimigo dos russos, fez-se aliado da Alemanha
hitleriana, torna-se comandante chefe dos exércitos romenos e presidente do
conselho: o advogado está convencido da justeza da atitude de Antonescu,
condena os anarquistas criminosos da Guarda de Fero e inscreve-se, no sentido
da História, ao lado do general Antonescu. A Alemanha perde a guerra, os
romenos também, os russos ocupam o país, o partido comunista está no poder. A
ordem socialista instala-se (…). Já não há advogados. Os comunistas
expulsam-nos da ordem dos advogados, todos menos cinco, entre os quais o
advogado, que cai sobre as suas patas, exactamente no sentido da História. E
contudo, o homem não era verdadeiramente um oportunista. Ele tinha simplesmente
(…) o «espírito da ortodoxia», ele acreditava no poder. Era um hegeliano
instintivo: a verdade, para ele, era o Estado, a verdade só podia ser a do
diário do governo (…) a verdade era a história, pois pode haver outra verdade a
não ser a da história ou da força presente? Ele era dócil, acreditava
sinceramente e é por essa razão que todos os partidos não lhe censuravam nunca
ter sido membro de outros partidos.” (pp. 185-186).
4. Ionesco em Portugal
E antes de examinarmos de
perto o resultado da vivência pessoal e histórica desta rinocerite que contaminava almas e infectava sociedades inteiras,
recordemos agora uma conversa que tivemos com o dramaturgo romeno – durante a
qual lhe falámos duma peça sua que tínhamos acabado de ler, e que nos
impressionara como poderosa parábola político-ideológica −, há mais de meio século atrás, tínhamos nós
dezanove anos. Em 1959, tendo vindo Ionesco a Portugal para assistir a
representações das suas peças no cine-teatro Carlos Manuel, em Sintra, entrevistei-o
para a revista ilustrada O Mundo
(12-IX-1959). [6] O que se segue recolhe a
apresentação da entrevista e as passagens mais relevantes, em larga medida
dedicadas ao tema d’O Rinoceronte.
“Seteais. Numa pequena
sala tranquila, Ionesco recebe-nos. É um homem de uma extraordinária
amabilidade. Fala numa voz um pouco velada, doce e suave. Poucos gestos. Face
serena, quase melancólica.
− Foi influenciado pelo
surrealismo?
−Não estou certo, mas
creio que sim. Trata-se de um fenómeno artístico e cultural muito importante de
que todos beneficiaram: os que fazem pintura ou teatro ou poesia não podem
fugir a essa influência.
− Em O Rinoceronte quer-nos parecer que abandonou uma técnica de
esvaziamento verbal; marcará esta obra uma nova fase?
− Não sei. Há nesta peça,
como nas outras, temas antigos. Mas se nas outras se estudava a proliferação da
matéria, aqui trata-se antes da proliferação de um monstro: os humanos
desumanizam-se. Mas encontramos uma crítica da linguagem no Iº acto. O Lógico é ridicularizado, não porque
raciocine ilogicamente mas porque o faz fora
do real. Apresenta-se uma crítica do formalismo verbalista. O tema básico é
o advento de uma catástrofe – o aparecimento de um rinoceronte. As pessoas não
tomam consciência do facto, preocupando-se antes com pormenores secundários (se
o monstro é asiático ou africano, por exemplo). O insólito não aparece como
tal. As pessoas pretendem que tudo continue quotidiano.
− A sua obra conduz a uma
contestação do mundo e do homem ou antes a uma afirmação da solidão?
− Uma afirmação da
solidão? Mas o que entender por solidão?
Não há solitários no mundo de hoje. Os colectivismos são um grande perigo
porque repudiam a solidão. A verdadeira comunidade é a solidão de cada um. Só
estando comigo mesmo posso ser universal. Um mundo exclusivamente social, como
o de hoje, tem falta de profundidade. Paradoxalmente poderíamos afirmar: a
verdadeira solidão é a colectividade e a verdadeira comunidade está na solidão.
− Acha justa a designação
de «Teatro do Absurdo» para as suas obras?
− Não sei se haverá aí
uma negação da esperança. Ao denunciar o Absurdo, contesto não o mundo mas a
«absurdidade». Como poderia eu denunciá-lo se não tivesse em mim o paradigma do
Não-Absurdo?...
− Sofreu alguma
influência determinante da literatura romena?
− De modo algum.
− Acredita na existência
de uma crise teatral europeia?
− Sim e não. Se se fala
demais em crise, ela poderá chegar.
Há sempre crise de obras, de autores e sobretudo de encenadores. Fala-se,
noutro sentido, de uma crise: Gabriel
Marcel, filósofo confuso, contesta-a. Mas tem de haver crise. Ela é permanente.
O Homem é o único animal doente. Deixaria de haver crise do teatro quando
deixasse de haver crise do Homem.
Seria o sono, a morte.
− Que pensa do teatro de
Beckett?
− Gosto muito de Beckett.
(…)
− Em certos meios
expressou-se o receio de que o novo regime francês [7] poderia
prejudicar a livre expressão artística; o que pensa?
− Não o creio de modo
algum. Temos Malraux no poder, e portanto estamos salvos. Seria muito mais
perigoso se tivéssemos Sartre como ministro da Cultura. Seriamos obrigados a
ser engagés no sentido dele…[8]
− Exige realismo na
interpretação das suas peças?
− Não. O realismo é uma
não-verdade, uma estilização do real. Poderíamos mesmo falar no irrealismo do
realismo. O que exijo é verdade – a
expressão livre de cada um dos actores.”
Denis de Rougemont, 1947
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5. Denis de Rougemont e
a rinocerite hitleriana
Voltando à génese da peça
O Rinoceronte, recordemos que, no
prefácio à sua edição norte-americana [9],
Ionesco sublinhava que a ideia de escrever esta parábola da rinocerite lhe
viera da leitura do Journal d’une Époque:
1926-1946, do escritor suíço Denis de Rougemont (Neufchâtel, 1906 –
Genebra, 1985), o qual, em 1938, assistira em Nuremberga a uma manifestação
nazi que muito o impressionara. Rougemont estava no meio de uma multidão
compacta que esperava a chegada de Hitler e as pessoas davam sinais de grande
impaciência até que, por fim, no final duma avenida, surgiu Hitler e o seu
séquito, o que despertou uma progressiva espécie de delírio daquela multidão
que aclamava em êxtase o seu ídolo. Esta histeria espalhava-se à medida quem
Hitler avançava como uma maré, pelo que o narrador se sentiu espantado diante deste
fenómeno de posse colectiva da turbamulta. Quando o Führer chegou perto, as pessoas que estavam ao lado do suíço entraram
em delírio eléctrico, ao mesmo tempo que o visitante se sentia invadir por essa
raiva contagiosa colectiva, até que se deu conta de que ele mesmo estava prestes
a sucumbir a ela, até que, do mais profundo do seu ser, resistiu à tempestade
colectiva e não se deixou subjugar pelo fenómeno envolvente. Rougemont contava
que tinha sentido então um grande mal-estar no meio daquela turba histérica, ao
mesmo tempo que ia resistindo a esse impulso de contaminação, hesitando quanto
ao que devia fazer. Por fim, os seus cabelos eriçaram-se literalmente e o
ensaísta e militar helvécio compreendeu o que significava a expressão “horror
sagrado”. Nesse momento não era o seu pensamento que resistia ao delírio nazi,
antes era todo o seu ser e toda a sua “personalidade” que se revoltava contra o
contágio colectivo: foi este, conclui Ionesco, o ponto de partida da sua peça
sobre o delírio que desumaniza as pessoas, transformando-as em monstros, em
rinocerontes.
6. Exame sucinto da
parábola do rinoceronte
Peça em três actos e
quatro quadros, O Rinoceronte
estreou-se em 6-XI-1959, num palco na Alemanha, no Schauspielhaus de Düsseldorf,
sendo editada nesse mesmo ano, em Paris, pela Gallimard. Em 22-I-1960 era
levada ao palco francês, o Odeón Théâtre de Paris, na encenação de Jean-Louis
Barrault, com cenários de Jacques Noël. O cinema só se interessaria por esta peça
num filme dirigido por Tom O’Horgan, Rhinoceros
(1974), com um excelente elenco em que se desatacavam Zero Mostel, Gene
Wilder e Karen Black. Houve ainda uma adaptação ao cinema de animação, numa
curta-metragem de Jan Lenica, Die Nashörner,
feita com papéis recortados.
Como se viu acima nos
textos do próprio autor desta peça, ela tem a ver com um enquadramento
histórico e com uma psicologia de massas manipuladas pelo fanatismo, pelo
facciosismo e com o fascínio pelos extremismos de actuação violenta durante a
ascensão e triunfo do nazismo alemão e dos totalitarismo de índole racista –
clima a que não seria estranho, antes de mais, na Roménia, a Legião de Arcanjo
São Miguel (1927), depois denominada Guarda de Ferro (1931), de Codreanu, com o
seu enquadramento militarista e agressivo de militantes fardados, com camisa
verde sobre a qual se destacava uma cruz branca. A peça divide-se em três actos
e tem cerca de 20 personagens, entre as quais avulta gente comum, da meia média
burguesia, do comércio, uma doméstica, um merceeiro, um professor de lógica, o
dono dum café, um polícia e várias outras figuras menores como empregados duma
firma, a loira dactilógrafa Daisy, apaixonada por Bérenger. No acto I surge um
paquiderme em liberdade que provoca inicialmente cepticismo e até descrença, pois
Jean garante que aquele rinoceronte que esmagou um gato não deve existir, sendo
geral a atitude de repulsa diante de práticas violentas e animais que a todos
chocam. No acto II começa o fenómeno da rinocerite, ou seja, da progressiva transformação
de cada um e de todos em rinocerontes, havendo quem, como Botard, negue que as
estórias que se contam sejam possíveis, ou que o fenómeno seja uma maquinação
infame com propósitos ignóbeis, o que não impede que mesmo os cépticos se
sintam fascinados pelo horror que vai infectando todos naquela terra.
A presença dos rinocerontes
começa a ser preocupante, pelo que os bombeiros são depressa ultrapassados
pelos casos de apelo para salvar as personagens que querem escapar aos paquidermes.
Até Jean, apesar de preocupado com a ordem pública e pela presença dos
rinocerontes na cidade e pelos constantes bramidos destes animais, acaba por se
transformar num deles em sua casa, o que dá início à progressiva e invencível
metamorfose dos humanos naqueles animais. A metamorfose de Jean é presenciada
por Bérenger que o vai ver porque o colega está acamado com uma indisposição. A
bossa que cresce na sua testa irá transformar-se em corno de rinoceronte, ao
mesmo tempo que a sua pele endurece e o seu espírito começa a exprimir
sentimentos de raiva à espécie humana, além de que proíbe que o colega telefone
a um médico, afirmando que, no fundo, se as pessoas desejam transformar-se em
paquidermes, não se lhes deve impedir de o fazerem, até porque “no fundo, os
rinocerontes são criaturas como nós” (p.126) e que a moral pode muito bem ser
substituída pela “natureza” (p.127), começando a soltar bramidos e garantindo
que o humanismo está “ultrapassado”(p.128). e interrogando-se: “porque não ser
um rinoceronte?” (p.129). Ao mesmo tempo, o seu corno cresce a olhos vistos e o
novo animal garante que há-de esmagar o seu colega (p.130) – e um vizinho seu,
já velho, se metamorfoseia também em animal cornudo, ao mesmo tempo que a
cidade começa a ser invadida pelos animais. Bérenger, finalmente, consegue
fugir da casa de Jean aos gritos de “Rinocerontes! Rinocerontes!”(p.133).
No acto III e último, passado
agora no quarto de Bérenger, este recebe a visita do colega Dudard, o qual, como
todos os demais se tornara também rinoceronte, proclamando que é “preciso
seguir os camaradas para o melhor e para o pior” (p.176). Até Daisy, que o vem
visitar, também já está infectada pela epidemia de rinocerite, acabando por
partir, abandonando Bérenger, apesar de o amar. Assim, Bérenger será o único que
se recusa transformar-se em paquiderme, apostado em combater a infecção geral
que avassala toda a cidade. Tendo partido Daisy para se juntar aos
rinocerontes, Bérenger decide continuar a ser humano: “Eu continuo a ser o que
sou. Sou um ser humano. Um ser humano.” (p.196). E exclama: “Ai de mim, nunca
serei rinoceronte, nunca, nunca! Não posso mudar. (…). Sou o último homem, sê-lo-ei
até ao fim! Não capitulo!” (p.199). E com estas palavras termina a peça.
Fugindo da tentação de
fazer uma peça de qualquer índole historiográfica – até porque nada seria tão avesso ao seu teatro
como a dramaturgia didáctico-política de um Brecht –, antes optando pela
parábola dramática que situa o problema humano e colectivo num âmbito simbólico
e metafísico de fábula, aqui em torno duma epidemia psíquica geral que perverte
e avassala pessoas, convertendo-as em animais, Ionesco, ainda que, como vimos
acima, confessasse que a ideia original da peça derivasse da leitura dum relato
pessoal contado pelo democrata suíço Denis de Rougemont, além da vivência
pessoal do fenómeno romeno da Guarda
de Ferro – a que sucumbiram dois dos seus amigos mais íntimos, Eliade e Cioran –,
fez a sua peça O Rinoceronte recorrendo
a processos de comicidade e absurdo que eram tão próprios do seu teatro, um
conto moral sobre a condição humana, o fenómeno social de uma comunidade que,
diante duma contagiosa anomalia perversa que passa da racionalidade, da incredulidade
e até do racionalismo mais formalista e burlesco – como o do Lógico (v.g., pp. 25, 37ss, 65) – ou os que trabalham ao serviço dos demais – como
todo um regimento de bombeiros, que depois de tentarem impedir os rinocerontes
de fazerem estragos na cidade, acabam por ser contagiados pela rinocerite (p. 174),
pelo que um regimento inteiro adere e se espalha pelas ruas, tocando tambores, ou
ainda, como diz a delicada Daisy, “é
preciso seguir o seu tempo” (p.168) –, caindo na animalidade, no inumano e na
selvajaria, ficando apenas um homem incólume a esta adesão em massa ao contágio
envolvente. Esta fábula de Ionesco, ainda que directamente inspirada como
problema metafísico e de psicologia humana pelo inquietante espectáculo, nos anos
30/40 do séc. XX romeno, pelo fenómeno do fascínio político exercido pelos camisas
verdes assassinos da Guarda de Ferro de Codreanu – como, mais tarde, pelos diversos
regimes comunistas como no caso dos Guardas Vermelhos chineses –, pretendia sobretudo
ser uma meditação sobre a resistência obstinada de uma nova Antígona, agora
chamada Bérenger, que não capitulava diante do despotismo dos governantes da
Polis ou diante duma epidemia nefasta a que os seus compatriotas se iam
entregando, ou seja, demitindo-se de serem humanos, simplesmente humanos.
Monte Estoril, Março de 2014
NB: Este texto é um capítulo do nosso estudo
«Mircea Eliade no
purgatório português».
João Medina
[1] A Guarda de Ferro (Garda de Fier) era uma organização fascista romena, violentamente
anti-semita e anti-maçónica, criada em 1930 por Corneliu Zelea Codreanu (Hutsi,
Moldávia, 1899-1938, cujo verdadeiro nome era Cornelius Zelinski, de origem
polaca), sob a forma inicial de Legião do Arcanjo São Miguel (Legiunea Arhanghelui Mihaei, 1927), de
base cristã mística e racial, que recorreu a processos de actuação terrorista,
como a morte violenta de líderes políticos adversos, sendo dissolvida pelo governo em 1933 a
partir do assassinato do primeiro-ministro Ion Gheorghe Duca (29-XII-1933, em
Sinia), o que levaria ao julgamento de Cadreanu e de outros responsáveis desse
partido como o general Cantacuzino e
Nichifor Crainic; mais tarde refundada com o nome de Totul Pentru Tara (Tudo pela Pátria), seria
suprimida pelo golpe de Estado (Fevereiro de 1938) promovido pelo rei Carol II,
criando a Frente de Renascença Nacional (Frontul
Renasterii Nationale, Dezembro de 1938),
sendo Codreanu detido e depois, sob o falso pretexto duma tentativa de fuga, abatido pela
polícia. Em 1940 o general Ion Antonescu derrubava este regime, o rei abdicava
a favor do seu filho Miguel (6-IX-1940), a Guarda de Ferro, agora liderada por
Horia Sima, participava nesse chamado Estado Nacional Legionário, situação que
se alterou de modo dramático em Janeiro de 1941, por ocasião dum golpe da
Guarda de Ferro, que as tropas alemãs presentes não apoiaram, levando ao esmagamento
deste grupo, responsável pelo sangrento pogrom
ocorrido em Bucareste (21/23-I-1941), a partir do qual os chefes
legionários seriam detidos e mandados para a Alemanha hitleriana e ali mantidos
presos. Deposto, o rei Carol II, exilara-se entretanto em Espanha, Portugal,
Brasil – onde casaria finalmente com a sua favorita, Magda Lupescu, agora
princesa Elena) –, México e, por fim, de novo em Portugal (1947), onde acabaria
por morrer (Estoril, 4-IV-1953).
[2] Veja-se
a biografia de Andé Le Gall, Ionesco,
pp.208-211. E o depoimento do Journal
de M. Sebastian, em 10-II-1941, p.321: sob o efeito de alguns copos de vinho, o
dramaturgo contou-lhe que a mãe era uma judia de Craiova, que o seu pai a
deixara com duas crianças pequenas em França, permanecendo fiel
à sua fé até morrer. Quanto às complexas relações entre Ionesco e Eliade,
recordemos dois estudos indispensáveis, o de Alexandra Laignel-Lavastine, Cioran, Eliade, Ionesco. L’ Oubli du
Fascisme, Paris, PUF, 2002, maxime pp.235-274
(Ionesco, Eliade e os “rinocerontes”) e pp. 383-416
(os três romenos exilados em França), e a excelente biografia de Eliade por Florin Turcanu. Le Prisonnier de l’Histoire, Paris, La Découverte , 2003, maxime pp. 349-351.
[3] Eugène Ionesco, Présent passé Passé présent, Paris,
Mercure de France, 1968, pp.181-182. Ver ainda pp.163-164, na qual, a propósito
da Guarda de Ferro, Ionesco se pergunta como é que seria possível falar com um
lobo, um rinoceronte: “Como fazer-lhes admitir os meus valores, o mundo
interior que eu transporto. De facto, como o derradeiro homem nessa ilha
monstruosa, já não represento nada, a não ser uma anomalia, um monstro. Sim,
eles parecem-me ser rinocerontes.” (p.164), Está aqui o tema ionesquiano da rinocerite, que o levaria a escrever a
peça O Rinoceronte (1959),
extraordinária parábola de como se chega à desumanização colectiva das
sociedades pelo fascismo (ou pelo estalinismo soviético).
[5] Veja-se Rhinocéros
de Ionesco, apresentação e dossiê crítico de Emmanuel Jacquart, Paris,
Gallimard, col. Foliothèque, 1995, maxime
pp. 11-14, 9-25 e 36-38 (o contexto
sociopolítico desta peça e a influência dum texto de Denis de Rougemont, no
seu Journal d’une Époque, 1926-1946,
Gallimard, 1968, sobre o fascínio colectivo na Alemanha hitleriana, durante um
comício que assistiu em 1936, em Nuremberga), bem como os depoimentos do
próprio dramaturgo, pp.102-112. Ver ainda Eugène Ionesco, Le Rhinocéros, peça em 3
actos e quatro quadros, Paris, Gallimard, 1959. O monólogo final de Bérenger,
recusando transformar-se num rinoceronte: pp.195-99, rematando com estas
palavras: “Contra toda a gente, defender-me-ei, contra toda a gente,
resistir-lhe-ei até ao fim! Não capitulo!” (p.199).
[6] Ver essa entrevista, intitulada “Ionesco em
Portugal”, realizada por mim com a ajuda de Jorge Mota, um colega da Faculdade
de Direito, que eu então frequentava, que me pedira ajuda porque não conhecia
muito bem as peças do franco-romeno, pelo que a nossa conversa com o dramaturgo
sairia com o pseudónimo “Sérgio de Andrade”, na revista O Mundo, “revista semanal ilustrada” que se publicou de 6-VII-1957 a 19-III-1960,dirigida
por Gentil Marques, Lisboa, nº 110, 12-IX-1959, pp.40-41, com duas fotos do dramaturgo
a ser entrevistado no Palácio de Seteais. Citarei as perguntas que eu mesmo lhe
fiz, sobretudo acerca d’O Rinoceronte
e da política francesa. Como tinha levado comigo um exemplar da referida peça,
Ionesco, sempre de uma enorme gentileza no trato connosco, teve a amabilidade
de me dedicar o meu exemplar, usando uma
BIC, com estas palavras: “Pour João Medina sympathiquement / Eugène Ionesco”,
sem data, explicando-me que fazer dedicatórias era bem mais difícil do que
escrever livros, pelo que ele adoptara essa fórmula invariável, do que me pedia
desculpa... Além das palavras da entrevista que a seguir transcrevemos, Ionesco
contou-me, ainda a propósito da rinocerite,
que o seu pai tinha sido membro da Guarda de Ferro e, depois da guerra, aderira
à ditadura comunista na Roménia, o que parecia natural ao escritor, em termos
de tendência de aderir ao que predomina numa dada sociedade. Quanto a este pai
que Ionesco tanto detestou – até por ter abandonado a sua mulher, Marie-Thérèse
Ipcar, mãe do dramaturgo, e ter ido viver para a Roménia, onde voltou a casar –,
veja-se o que dele esclarece A. Le Gall na sua cit. biografia, maxime pp. 20, 25, 28, 63-68. Eugen N. Ionescu fez
carreira na administração civil, nomeadamente na polícia e nos serviços da Securitate (desde 1918) e no pós-1945,
mostrando ser capaz de ser legionário,
democrata, franco-maçon, nacionalista e, por fim comunista, adaptando-se a tudo
e todos (cf. op. cit., pp. 63-64); no final da vida, foi um advogado de
sucesso, mantendo-se na advocacia pelo regime comunista numa altura em que essa
profissão desaparecia na Roménia; faleceu em 1948.
[7] A pergunta refere-se ao regime do general Charles de
Gaulle (1890-1970) implantado em 1958. A seguir à crise de Maio de 1968, vendo o
referendo sobre reforma do Senado e regionalização por ele proposto recusado
pelo eleitorado, demitiu-se da presidência da República (28-IV-1969),
recolhendo a Collombey-les-Deux-Églises.)
[8] O romancista André Malarux (1901-1976) foi ministro
dos Assuntos Culturais de De Gaulle, de 1959 a 1969. Sartre era uma das bêtes noires de Ionesco: veja-se, por exemplo,
o que diz dele no seu livro de entrevistas a
André Coutin, Ruptures du Silence,
Paris, Mercure de France, 1995, maxime
pp. 66-68. Ionesco lamentava que o homem do engagement
nunca se alistara verdadeiramente em nada, e “que era um homem que nunca se
aventurara na contra-corrente, que esteve sempre na moda e que o quis estar”(p.
67).
[9] Veja-se este texto no seu livro Notes et Contre-notes, Paris, Gallimard, col. Folio, 1972, pp. 273-275.
A propósito...:
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Gabriel
Muito obrigado.
EliminarCordialmente,
António Araújo