Fig. 1: Rua
do Arco do Marquês de Alegrete (Eduardo Portugal, 1949).
A Praça de
Martim Moniz é, provavelmente, o largo mais desgraçado de Lisboa. O seu fado
começou com a destruição da Baixa Mouraria entre sensivelmente 1945 e 1962. As
sucessivas vagas de demolições fizeram desaparecer edifícios como o Palácio do
Marquês de Alegrete, o seu arco medieval, a Igreja do Socorro e o Teatro Apolo.
Desapareceram para dar lugar, décadas mais tarde, a uma praça incaracterística,
sem história e sem alma. O discutível arranjo da praça, realizado em 1997-1998,
envelheceu mal, por incúria e falta de manutenção. Os centros comerciais,
símbolos de modernidade e progresso, converteram-se rapidamente em armazéns de
grosso, onde produtos inflamáveis abastecem os mercados e feiras da Grande Lisboa.
Fig. 2: O
eléctrico 28 ao lado de um típico camião TIR. Hans Strudel, 16 anos, natural de
Francoforte do Meno, nunca tinha visto um no centro histórico de uma cidade.
O
empreendimento da EPUL, Residências Martim Moniz, comercializado em 2001, só
foi concluído em 2014 e não foi capaz de trazer novos moradores a esta zona da
cidade, estando em grande parte vazio ou entregue ao chamado alojamento local
(curiosamente, quando foi lançado, parte deste empreendimento fazia parte de um
programa chamado EPUL-Jovem). Numa hasta pública, no mesmo ano de 2014, 26
apartamentos foram comprados por investidores de origem chinesa, que obviamente
não os usam para arrendamento de longa duração, ou para fixar novas famílias
nesta zona da cidade. Tudo, do ruído ao raquitismo das árvores, do lixo aos
veículos pesados que descem a Avenida Almirante Reis, denuncia o erro, o
fracasso e a inacção.
Figs. 3 e 4:
Oriundos de regiões assépticas no centro e norte da Europa, os turistas
congratulam-se com a autenticidade lisboeta.
Incapaz de
resolver a situação, a Câmara Municipal de Lisboa desferiu um golpe em cima de
um hematoma. Insuficiente nas tarefas que lhe cabem (como recolher o lixo,
limpar as ruas e ordenar as cargas e descargas), a Câmara Municipal de Lisboa
decidiu assumir, através da empresa NCS Audiovisuais (a quem concessionou em
2012 a exploração da praça por uns leoninos 16 anos), novas responsabilidades
no Martim Moniz, nomeadamente o entretenimento de locais e estrangeiros. Sob a
designação de «Mercado de Fusão» (ou «Dragon Square»), prometem-se «sabores do
Mundo», «street food», cultura e «muita animação». Na verdade, oferece-se cerveja
barata, a vulgaridade do karaoke e,
para a maioria silenciosa, há vários anos, muito ruído até altas horas da
madrugada, que não deixa os moradores dormir, na vizinhança de enfermarias do
maior hospital público do centro da cidade. Esta é uma concepção rasteiramente recreativa
e mercantil que desmobiliza e expulsa os (poucos) moradores que resistem na
zona da praça, não havendo quase interação entre o Mercado de Fusão, o bairro,
os seus habitantes e associações. A partir de Julho de 2015, a situação piorou claramente
com a instalação do bar Topo (igualmente propriedade da empresa NCS e de um
conjunto de sócios não identificados) no sexto andar do Centro Comercial do
Martim Moniz. Este espaço, em teoria um bar e restaurante, funciona como
discoteca, não estando devidamente insonorizado. Para mais, as portas do terraço
são deixadas abertas e com frequência os DJ’s actuam ao ar livre. Nas noites de
quinta-feira a sábado, a música prolonga-se até às 2h da manhã e o ruído
propaga-se pelas colinas e chega a locais como a Rua da Bombarda, a Travessa da
Nazaré e a Calçada de Santo André. Apesar das inúmeras queixas, e de uma queixa
do próprio Hospital de São José, até Dezembro de 2016, os serviços da Divisão
de Ambiente da Câmara Municipal de Lisboa ainda não tinham realizado as
necessárias medições técnicas de ruído. Ou seja, entre Julho de 2015 e Dezembro
de 2016, num período de cerca de 17 meses a Câmara Municipal de Lisboa, os seus
dirigentes eleitos e os serviços não foram capazes de resolver o assunto, nem
de realizar tarefas básicas do processo de controlo do ruído. No caso do
Mercado de Fusão, o processo e as queixas são anteriores, sendo recorrente a
utilização de colunas e aparelhagens de música no espaço público durante a
tarde e até, pelo menos, às 2h da manhã.
Fig. 5:
Lisboa, capital da coolness e da
cerveja barata, oferece música ao ar livre, a qualquer hora do dia ou da noite.
Neste caso, eram 00h30 (Bar Love Lisbon, 24 de Setembro de 2016).
O paradoxo é
tal que a Junta de Freguesia de Santa Maior lançou (e bem) no final de 2016 uma
petição à Câmara Municipal de Lisboa solicitando «que se estabeleça um horário
para a realização de actividades ruidosas na Praça do Martim Moniz e bares
circundantes no máximo até às 22h00, de domingo a quinta, podendo nas noites de
sexta-feira e sábado admitir-se tais actividades até à meia-noite» e que «no
exercício das suas competências, a Câmara Municipal de Lisboa e em especial a
Polícia Municipal fiscalizem efectivamente o cumprimento do horário indicado».
E, acrescento, meçam os níveis de ruído de estabelecimentos como os bares Topo
e Love Lisbon, ambos a dezenas de metros do Hospital de São José quando o
Artigo 32.º, do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (Regulamento Geral do
Ruído), determina que «não é permitido o funcionamento ou o exercício contínuo
dos espectáculos ou actividades ruidosas nas vias públicas e demais lugares
públicos na proximidade de edifícios hospitalares […] durante o respectivo
horário de funcionamento». Na verdade, a vizinhança das enfermarias de Medicina
e de Cirurgia, situadas na ala do Hospital de São José voltada ao bar Topo, bem
como a proximidade do Serviço de Urgência, não foram tidas em conta pelos
serviços da Câmara. Se ainda não tinha ficado claro reiteramos: quer a localização,
quer o comportamento destes estabelecimentos violam uma lei que a Câmara
Municipal de Lisboa tem como competência fazer cumprir.
Fig. 6:
Perspectiva do lado poente da Praça Martim Moniz. É visível o bar-quiosque Love
Lisbon, o bar Topo e por detrás o Hospital de São José. As enfermarias de
Medicina e de Cirurgia, bem como o Serviço de Urgência, ficam virados à praça.
Não consta que a Câmara Municipal de Lisboa esteja a patrocinar um estudo sobre
os efeitos terapêuticos do ruído na população hospitalar.
Fig. 7: O
terraço do bar Topo visto do parque de estacionamento do Hospital de São José.
À direita, a fachada principal do hospital reflectida no Centro Comercial do Martim
Moniz ilustra a proximidade dos dois edifícios.
A iniciativa
«Licenciamento Zero», aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de Maio,
meritória no combate à burocracia, significa para a Câmara Municipal de Lisboa,
para a Polícia Municipal e para a Divisão de Ambiente uma responsabilidade
acrescida de controlo e monitorização. Também se traduz num conjunto de
facilidades e garantias para os empreendedores. Infelizmente, para os
queixosos, quer sejam os moradores das Residências Martim Moniz, ou de outras
ruas do bairro, quer seja a direcção do Hospital de São José, constitui um
calvário de reclamações, junto de organismos que alijam responsabilidades e se
escondem atrás da esquizofrenia da legislação ou da falta de meios técnicos e
humanos. Com sorte, tudo termina dois anos depois, com uma contraordenação e
uma multa pecuniária, quando a empresa promotora já se dissolveu ou já fez uma
boa maquia à custa do descanso dos outros.
Quando os
desmandos do Bairro Alto, do Príncipe Real, da Bica, do Cais do Sodré, de
Santos e do Arco do Cego ameaçam a Mouraria, aquilo que me move não é insignificante.
Este é um momento decisivo na escolha do futuro da cidade de Lisboa e da defesa
do direito ao sossego e ao sono dos seus habitantes. A impunidade de todos
aqueles que lucram com o ruído não é um problema exclusivo da Mouraria, ou
sequer do centro histórico, mas de toda a cidade. As queixas relativamente ao
Arco do Cego estão aí para o demonstrar. A Câmara tem de encontrar respostas
rápidas para estas situações de excesso de ruído e incumprimento.
A actual vereação
não necessita, portanto, de se esconder atrás de discursos sobre a complexidade
dos problemas. Basta-lhe aplicar a lei. Muito menos faz sentido afirmar que é
necessário compatibilizar funções na cidade. Essa é uma evidência que todos
conhecem. Tal como outra evidência é a incapacidade que a Câmara demonstra em
fazer cumprir a Lei do Ruído em tempo útil quando a legislação e os
regulamentos em vigor lhe permitem aplicar restrições de horário, temporárias
ou definitivas, aos estabelecimentos que não respeitem as regras. Aliás, esta
competência foi delegada pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Fernando Medina, no vereador e vice-presidente Duarte Cordeiro. Se os
habitantes do centro da cidade estão cansados do ruído e de manobras dilatórias
é a ambos que deverão ser assacadas responsabilidades.
O vereador
Duarte Cordeiro, na última reunião descentralizada da Câmara Municipal de
Lisboa (1 de Março de 2017), afirmou ter aplicado 66 restrições de horários.
Contudo, não especificou qual o período de tempo a que estas se reportam, ou
qual o volume de queixas sobre ruído registado na Polícia Municipal e em
plataformas como Na Minha Rua durante o ano de 2016, por exemplo. Ou seja, não
sabemos se 66 restrições é suficiente ou é muito, muito pouco para a dimensão
do problema. O sucesso de Fernando Medina e da sua vereação na questão do ruído
é, por isso, semelhante ao do seu Programa de Renda Acessível. Tendo sido
anunciado como grande pompa em Abril de 2016, até ao dia 2 de Março de 2017, ou
seja 11 meses depois, ainda não tinha conseguido criar um único fogo para
habitação, ou sequer iniciado as obras numa das 15 localizações previstas.
Para
proceder ao uso mais generalizado das restrições de horário não é necessário aguardar
pela plena execução do novo Regulamento dos Horários de Funcionamento dos
Estabelecimentos que entrou em vigor em Novembro passado, mas que concede aos
estabelecimentos mais 120 dias para estes se adaptarem às novas formas de
controlo técnico do ruído. A legislação permite já pressionar os donos de bares,
discotecas e restaurantes a cumprir a Lei do Ruído, autorizando, como já referimos,
os responsáveis eleitos da Câmara Municipal de Lisboa a aprovar com relativa
rapidez restrições de horários, uma medida que tem sido poucas vezes aplicada (ver
artigo 12.º do Aviso n.º
13367/2016, de 28 de Outubro).
O presidente
da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, na reunião descentralizada do
passado dia 1 de Março, afirmou «que todos os casos concretos que sejam levantados
relativamente à questão da Lei do Ruído serão alvo de investigação imediata, de
avaliação imediata e das medidas que estão determinadas». Infelizmente, a noção
razoável de imediato não se prolonga por um período superior a 17 meses, no
caso do bar Topo, nem por anos no caso das queixas relativas ao ruído provocado
na Praça do Martim Moniz pelo Mercado de Fusão. Muito menos as queixas dos
munícipes em relação ao ruído são decorrentes daquilo a que os ingleses chamam
«not in my back yard» (NIMBY), como também afirmou o mesmo presidente da Câmara,
que insistiu na necessidade de fazer coexistir o lazer e o descanso, sem
acrescentar como vai ser capaz de fazer valer a Lei do Ruído e como vai
controlar os casos que são notoriamente ilegais e que se prolongam no tempo. «Os
investimentos para a melhoria da qualidade de vida nestas zonas da cidade» não
se resumem a mais e melhores infraestruturas, equipamentos, transportes, espaço
público e políticas de habitação, como afirmou o mesmo Fernando Medina. Antes
de tudo isso, os moradores que ainda resistem têm de conseguir viver
quotidianamente nestes locais, sem terem que dormir com tampões nos ouvidos,
sem terem que telefonar com frequência para a Polícia Municipal, sem terem que
preencher queixas recorrentes no sistema Na Minha Rua e sem terem que ficar
acordados até depois das 2h da manhã.
Não se
entende, do mesmo modo, como não é discutida, pela Câmara Municipal de Lisboa,
a anulação da concessão do espaço da Praça Martim Moniz à empresa privada de
entretenimento NCS-Audiovisuais, que manifestamente não tem capacidade ou vocação
para gerir o espaço e cumprir a lei, bem como respeitar o direito ao descanso
dos moradores e a presença, a menos de 100 metros, de um hospital público com
várias enfermarias. Sabemos, portanto, quem são os responsáveis por esta
situação e sabemos quem são os responsáveis por executar a lei. Apenas é
necessário que esta última seja aplicada. A Câmara Municipal de Lisboa, e as
juntas de freguesia da cidade, colocam à disposição dos munícipes reuniões
descentralizadas e conselhos de cidadãos que
urge usar como forma de participação cívica, exigindo aquilo que é um direito e
não um privilégio.
Mouraria, 2
de Março de 2017.
António J.
Ramalho
P.S.: -
Enquanto escrevia este texto, o bar Topo patrocinou a apresentação de um DJ no
terraço, entre – sensivelmente – as 20h30 e as 24h. O ruído chegava à Graça. Houve
quem ligasse para a Polícia Municipal. Não foram observados resultados.
Teria sido melhor para o turismo a praça ter ficado como mostra a foto de 1949...
ResponderEliminarUnknown:
ResponderEliminarAfinal, não é apenas o seu «nick name» que é desconhecido, o seu cérebro parece também desconhecer o mais leve pingo de inteligência e de capacidade de exercício da racionalidade.
É como se uma dada pessoa se congratulasse pelo facto de um familiar, que teve um grave acidente que o deixou tetraplégico e 100% dependente de outros, afinal, não ter morrido. E isto sem que antes de se pronunciar tivesse ouvido o visado, pode ser que a sua opinião seja bastante diferente.
Se o contraponto que escolheu fosse os efeitos do Terramoto de 1755, você ainda conseguia ter mais razão.
Compre um andar no prédio ao lado do Bar Top, deve ser divertido, e sempre poderá dizer que vive numa zona «cool» de Lisboa.
Há cada cromo nas redes sociais!
Posso até ser um cromo mas não estava a ser irónico. De facto considero que a maior parte das intervenções feitas em Lisboa nas últimas décadas desfiguraram uma cidade que não tendo praticamente zonas anteriores ao terramoto que menciona, só perde por se introduzirem à força construções pós-modernas que não primam pelo cuidado nem pela preocupação estética. Mas hoje estamos tão preocupados em responder a desconhecidos e em parecermos tão inteligentes.. Enfim erros de percepção.
EliminarNão quero comprar prédios (não tenho dinheiro para tal), nem apartamentos numa zona descaracterizada, onde já me ofereceram droga e onde já fui assaltado. Se isso é "cool" não sei, nem me interessa.
Quanto ao meu cérebro agradeço o seu cuidado e sugestões.
Parece gostar muito de ofender mas talvez fosse mais construtivo dedicar o seu tempo a fazer posts como o que o Malomil publicou.
Caro António J. Ramalho (que enviou o texto) e Caro António Araújo (que o publicou):
ResponderEliminarMuito obrigado por mais este serviço gratuito de cidadania.
Assim vivemos nas nossas autarquias, tão louvadas por certas pessoas como a mais brilhante conquista da Democracia Portuguesa.
Isto é, demitiram-se do essencial (a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos), para o que foram criadas, e apostaram no acessório (o fogacho, a festarola, o fogo fátuo), para o que não têm a mínima competência.
Os exemplos são tantos, alguns ainda mais gritantes, por mais que se denunciem é sempre insuficiente.
Vou copiar o texto e guardá-lo, para retirar alguns elementos úteis à minha actividade cívica pública de denúncia de coisas semelhantes na minha autarquia.
Subscrevo todas as afirmações aqui feitas.
ResponderEliminarMoro na Rua Martim Vaz, à Calçada de Santana e durante todo o fim-de-semana há barulho vindo do Martim Moniz. São concertos rock, provas de atletismo, paradas de tocadores de bombos, foguetes, arraiais, manifestações e ainda muita música pimba e étnica. O Martim Moniz e as colinas que o envolvem, Castelo e Santana formam como que um anfiteatro e a musica e os bombos que se tocam na praça são ampliados por todo o lado.
Não tenho nada contra as festas ou a alegria, mas tem que haver limites e sobretudo vigilância das leis. Os poucos moradores do centro de Lisboa que ainda ali resistem tem o direito ao descanso. Mais o direito ao silêncio.
Um abraço e felicito-o pela denuncia.