Acabo de ler num jornal peruano – Expreso – uma
notícia que ontem ou anteontem já tinha lido num jornal português: que vai sair
a lume, no dia 25 deste mês, um novo romance de José Saramago, intitulado Ensaio
sobre a lucidez. Já o sabia muito bem, mas agora fico a sabê-lo melhor: que
a máquina de publicidade montada por Saramago e pelos seus acólitos e pelos
seus editores é poderosíssima, tanto a nível nacional como a nível
internacional. O artigo em que se anuncia o novo romance é curto, mas nada fica
a dever ao que de melhor se faz, em termos publicitários, na Madison Avenue da
Cidade de Nova Iorque. A palavra-chave é o escândalo, fazendo-se questão de
acentuar bem que o evento ultrapassará de longe o que aconteceu com o seu
romance Evangelho segundo Jesus Cristo.
Dizer que
estou farto de Saramago até à ponta dos meus cabelos brancos é desnecessário.
Li e estudei com certo interesse e alguma profundidade o Memorial do
Convento. Dei esse romance em dois seminários sobre ficção portuguesa
contemporânea na Universidade de Connecticut. Não posso esquecer o enorme entusiasmo
dos meus alunos judeus americanos – três – pela história de Blimunda. E o meu
também. Até porque cada vez estou mais convencido que carrego comigo aquela
costela judaica (e aquela costela mourisca) de que falava Américo Castro,
refutando o fanático e inquisitorial Don Marcelino Menéndez y Pelayo, apostado
em demonstrar a todo o custo, falaciosamente, a pureza da raça dita ibérica.
Isso pelo lado paterno, em virtude de meu pai e os pais de meu pai serem
oriundos de Macedo de Cavaleiros e em virtude do estranho modo de meu pai viver
– ou não viver – a religião. Que me lembre, nunca lhe vi pôr os pés na igreja.
Naturalmente que o meu apelido de Cirurgião é mais um argumento a favor da
minha potencial costela judaica.
(Aqui abro
um parêntesis para contar o que me contou Dona Mécia de Sena sobre o Memorial do Convento. Acabado de ler,
Dona Mécia, tal como é seu costume, apressou-se a escrever uma longa carta a
José Saramago para lhe dar a sua opinião sobre o romance, com aquela
frontalidade e franqueza por que sempre se pautou a sua crítica literária. Que,
entre outras coisas, lhe disse que a única coisa de que sobremaneira gostara
fora da novela inserida no romance: a história de Blimunda. Mas que essa já estava escrita e publicada: era O Físico Prodigioso do seu marido, Jorge
de Sena.)
Mas deixemos, por agora, estas digressões e passemos
adiante.
Li também
com certo prazer o Ano da Morte de Ricardo Reis.
Quanto ao Evangelho
segundo Jesus Cristo, comecei a lê-lo por mais de uma vez, mas nunca
consegui passar das primeiras páginas. É que a matéria já tinha sido tratada
por Renan e por alguns dos seus discípulos e epígonos, e em melhor linguagem e
melhor estilo.
Não sei se
o meu fastio em relação a Saramago se deve mais ao conhecimento do homem que ao
conhecimento da obra. É que, para meu azar, tive a desdita de haver visto
Saramago e de com ele haver convivido em demasiadas ocasiões. A primeira vez
que o conheci pessoalmente foi na noite em que se estreou, no palco, em Agosto
de 1986, no anfiteatro do Museu de Arte Moderna da Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, a tragédia de Jorge de Sena, intitulada O Indesejado
(António, Rei).
Terminada a representação, juntou-se um grupo bastante grande no Pavilhão
Chinês, ao Príncipe Real, para uma longa sessão de tertúlia. Lembro-me que,
entre outras pessoas, estavam D. Mécia de Sena, Vasco Graça Moura, Maria Velho
da Costa, Orlando Neves, encenador da peça, e
Sinde Filipe, actor principal.
Voltei depois a estar com José Saramago por ocasião do
congresso anual do New England Chapter da AATSP (American Association of
Teachers of Spanish and Portuguese), realizado em data que não recordo na
University of Massachusetts, em Amherst. O orador principal (keynote speaker), durante o banquete,
foi José Saramago, antes de haver sido galardoado com o Prémio Nobel de
Literatura, mas quase doentiamente ansioso por se ver reconhecido e aclamado
pela comunidade académica. Fez um discurso longuíssimo e chatérrimo. Não disse
sequer uma gracinha, coisa obrigatória
em discursos desta natureza. Não esboçou o mais fugidio sorriso. Dono do pódio,
senhor absoluto de uma audiência cativa, ansiosa por se levantar da mesa e, em
conversa amena, fazer o quilo de um jantar farto, mas tipicamente sensaboroso,
Saramago falou longuissimamente e chaterrimamente, como já foi dito, com uma
solenidade de sumo pontífice da verdade, como se dele dependesse o futuro das
nações e a salvação da humanidade.
Vi Saramago
por ocasião do congresso sobre Viagens na minha terra, de Garrett (Garrett’s Travels and Its Descendants), organizado
por Víctor J. Mendes, professor da Universidade de Massachusetts, em North
Dartmouth, nos dias 22 e 23 de Outubro de 1999, ano do centenário da morte de
Almeida Garrett. Nesse congresso, já laureado com o Prémio Nobel, Saramago também botou faladura, dando à sua
comunicação o pomposo título de “Garret e Eu.” Tom solene e súper-sério, como
sempre. Recordo-me de ele ter dito que Viagens na minha terra foi um dos
primeiros livros que leu, sendo esse ou o único ou um dos escassíssimos livros
que havia em casa dos pais dele. E recordo-me também de ele ter dito e redito
que desse livro só lhe interessara – e só continuava a interessar-lhe –, desde
a primeira leitura, a viagem propriamente dita. Que à deliciosa novela, a
Menina dos olhos verdes ou a Menina dos rouxinóis, não lhe achara – nem achava
- graça nenhuma nem qualquer relevância. Naturalmente que, com uma afirmação
dessa natureza, Saramago outra coisa não pretendia fazer senão chamar a atenção
dos ouvintes para a sua concepção da literatura como uma actividade de militância
em prol de uma causa pragmática: a luta pela vitória universal do proletariado,
cabendo a Saramago o cargo de profeta-mor, sumo pontífice e supremo líder.
E se eu não
ficar por aqui, caio naquilo que mais detesto em Saramago: a repetição ad
nauseam das mesmas ideias. De maneira que, para concluir, acrescentarei
apenas que nunca vi nenhum escritor – e bastantes tenho conhecido através da
vida – que se tomasse tão a sério como José Saramago.
Manchester, Connecticut, 8 de Março de 2004
António Cirurgião
"Saramago falou (...) com uma solenidade de sumo pontífice da verdade, como se dele dependesse o futuro das nações e a salvação da humanidade"
ResponderEliminarBrilhante síntese de todos os discursos de Saramago!
"Quanto ao Evangelho segundo Jesus Cristo, comecei a lê-lo por mais de uma vez, mas nunca consegui passar das primeiras páginas. É que a matéria já tinha sido tratada por Renan e por alguns dos seus discípulos e epígonos, e em melhor linguagem e melhor estilo"
ResponderEliminarHa aqui um ligeiro exagero. O inenarravel autor deste post (e de outros semelhantes, infelizmente) leu, talvez, os titulos das obras mencionadas. E de forma tão apressada que nem sequer isso percebeu...
Safa !
Boas
Este comentário tem como pressuposta a ideia de que todo o mundo amante da cultura deve "babar" perante a literatura de Saramago. Sem pôr em causa a elevação literária da produção de Saramago, nem todos serão obrigados a elogiar a sua obra, sem que isso possa ser argumento para uma espécie de "bullying" crítico e/ou labelling como "gente inculta, ignorante"! Gosta-se ou não e ponto final!
EliminarNada disso, cara Maria José, o meu comentario apenas pressupõe que se tenha lido, ou pelo menos tentado ler, os livros de que se diz mal, ou bem. Um pormenor que escapa completamente ao autor do post, que nunca abriu o Evangelho segundo JC nem a Vida de Jesus, ou não faria qualquer comparação entre duas obras que não tem rigorosamente nada a ver uma com a outra, nem na forma, nem quanto ao proposito, nem na construção, nem na intenção, nem em nada.
EliminarMas enfim, o camarada Cirurgião considera que o facto de ele não ir à bola com o Saramago, por razões que são la dele, o autoriza a falar dos livros. E a amiga Maria José "também pensa assim".
O valor do Saramago não esta em causa e eu nem sou dos mais entusiastas a este respeito. Apenas critico o provincianismo bem portugês que faz gala de não saber, de não querer saber e de ter raiva a quem sabe...
Boas
Subscreveria integralmente este texto! Penso exatamente o mesmo, sem nunca ter conhecido Saramago e sem ser erudita em literatura!
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