Gilberto Freyre com um pastor no Deserto do Namibe, 1952
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- A feitura
A
primeira e principal justificação para a elaboração de um novo Estatuto dos
Indígenas (substituindo o então vigente Estatuto de 1929) era a aplicação dos
princípios fundamentais que passaram a estar consignados na Constituição, após
a revisão de 1951, e na nova Lei Orgânica Ultramar, de 1953. Em 1951, apesar de
algumas divergências de fundo entre a proposta governamental e o parecer da
Câmara Corporativa (ainda mais conservador na matéria), a discussão parlamentar
sobre o indigenato fora curta: mantiveram-se as “garantias dos indígenas”
provindas do Acto Colonial, a tentativa de alteração da terminologia não passou
e a única novidade foi a atribuição de natureza transitória ao regime de
indigenato. Porém, num curso realizado em 1952-1953, Marcelo Caetano criticava
a influência do «renovo das velhas doutrinas da assimilação integral das
províncias ultramarinas ao regime europeu» e distinguia, considerando os
diversos estádios culturais em que se encontravam os seus componentes, quatro
situações (sociológicas) entre a população nativa: (i) indígenas primitivos; (ii) indígenas em evolução; iii) indígenas destribalizados;
e (iv) assimilados [1].
Ora, era a situação dos destribalizados não
assimilados que mais preocupava os mentores da política indígena. Não se
tratava de caso exclusivamente português e Marcelo Caetano abordou a questão
num parecer emitido no Conselho do Império Colonial, em 1941, defendendo
agrupamentos populacionais próprios e a criação de um estatuto intermediário
entre a cidadania e o indigenato, o de “semi-assimilado” – que abrangeria os
negros e mestiços com um verniz externo de civilização e em rebeldia contra a
disciplina tribal[2].
Tratava-se especialmente de indígenas que tinham frequentado as escolas das
missões ou que tinham emigrado para áreas urbanas.
Orlando Ribeiro e Talibé, Bissau, 1947
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2. Noção de indígena
O novo Estatuto dos Indígenas Portugueses das
Províncias da Guiné, Angola e Moçambique foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
39.666, de 20 de Maio de 1954, ou seja, pelo Governo reunido em Conselho de
Ministros, deste modo, e pela primeira vez, ultrapassando a competência
específica do Ministro do Ultramar (no caso, Sarmento Rodrigues). Continha 67
artigos, agrupados em 4 capítulos.
O Estatuto era especial e pessoal,
acompanhando os indígenas quando e para onde se deslocassem (como era,
sobretudo, o caso dos indígenas angolanos e moçambicanos “contratados” para as
roças de S. Tomé e Príncipe).
A noção legal constava do artigo 2.º:
«indivíduos de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo
habitualmente nelas [províncias da Guiné, Angola e Moçambique], não possuam
ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a
integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses». Eram,
portanto, cinco os critérios utilizados: i)- raça; ii)- filiação; iii)- nascimento;
iv)- residência; v)- cultura. Comparando com o Estatuto de 1929 constatam-se
quatro alterações: a)- deixou de se definir o “não indígena”; b)- alargou-se o
conceito de indígena aos “destribalizados” e “indígenas em evolução”; c)- a
definição é geral (comum a todas as províncias de indigenato) e exclusiva
(porque consta da lei e deixa de caber aos governadores de cada colónia); d)-
em vez de dois (racial e cultural) passam a ser cinco os critérios usados na
definição[3].
O indigenato não existia no Império britânico,
assente na separação racial. Como regime legal fora criado no século XIX pelo
Império Francês, onde provocou “um debate sem fim” por causa da variedade e
complexidade destes estatutos pessoais[4].
Em 1945, vivendo-se ainda sob a forma de Império (substituída pela Constituição
de 1946), reclamar a cidadania era um gesto revolucionário pois «a esmagadora
maioria dos Africanos – e dos Argelinos – eram considerados nacionais franceses
e súbditos franceses, mas não cidadãos franceses. Só poderiam tornar-se
cidadãos se renunciassem ao respectivo estatuto pessoal (islâmico ou
“costumeiro”), aceitassem as regras do código civil francês sobre o casamento e
a herança e persuadissem os administradores que tinham assimilado completamente
as normas sociais francesas[5]. A
abolição do indigenato traduziu-se na generalização da cidadania enunciada pelo
artigo único da chamada “Lei Lamine Guèye” (e cujo desenvolvimento admitiu a
manutenção do estatuto pessoal de direito privado e distinguiu entre cidadania
da República francesa e cidadania da União Francesa), aprovada por unanimidade
em 7 de Maio de 1946 pela Assembleia Nacional Constituinte.
No direito colonial português, para Marcelo
Caetano, numa construção restritiva, os indígenas eram apenas «súbditos portugueses,
submetidos à protecção do Estado português, mas sem fazerem parte da Nação,
quer considerada como comunidade cultural (visto faltarem-lhe os requisitos de
assimilação de cultura) quer como associação política dos cidadãos, (por não
terem ainda conquistado a cidadania)»[6].
Adriano Moreira sustentava uma opinião diferente, mais complexa. Primeiro,
considerava a palavra “cidadania” adequada «para designar o estado jurídico
caracterizado precisamente pela detenção dos poderes jurídicos pertinentes à intervenção
no exercício da soberania»; depois, aproximava-se da doutrina francesa: «os
indígenas integram uma categoria de nacionais que não são cidadãos, como não o
são os não indígenas que não reúnam as condições fixadas por lei»[7].
Consequentemente, concluía que, no direito constitucional então vigente, o
estado jurídico de “nacional” era «género de que são espécies os estados de
indígena e não indígena»[8]. Portanto,
em sua opinião, embora não-cidadãos, os indígenas seriam nacionais portugueses.
Em 1961 foi mais longe: eliminou o estado de “indígena”, criou o de “vizinho da
regedoria” e generalizou a obtenção do bilhete de identidade de cidadão
português.
No Estatuto de 1954, a contemporização com os
usos e costumes dos indígenas estava contemplada no artigo 3.º (sendo, desde
logo, prejudicada por não existirem efectivamente codificações sistemáticas dos
«usos e costumes próprios das respectivas sociedades»). A contemporização obedecia
à chamada “cláusula de repugnância” [9], ou seja,
excluía o que “repugnava” à civilização ocidental (a “moral”, os “ditames da
humanidade” e os “interesses superiores da soberania”); por outro lado, a
medida dos usos e costumes teria em conta o grau de evolução, as qualidades
morais, a aptidão profissional bem como o afastamento ou integração na
sociedade tribal (§ 3.º). Mas a aplicação dos usos e costumes próprios poderia,
no domínio das relações privadas, ser afastada pois os indígenas tinham direito
a optar pela lei comum em matéria de relações de família, sucessões, comércio e
propriedade imobiliária (art. 27.º). Esta última previsão visaria a
“assimilação parcial” (dos destribalizados), contra a qual se levantou Adriano
Moreira, por a considerar inoperante e não conduzir «à indispensável
coincidência entre o estatuto jurídico e o estatuto cultural» dos “assimilados”
e destribalizados, sobretudo católicos[10].
Era no Capítulo II, sobre a situação jurídica
dos indígenas, que o artigo 21.º regulava a jurisdição exclusiva das
autoridades administrativas sobre os destribalizados, dispondo que elas
exerceriam «por si sós jurisdição e polícia sobre os indígenas que deixarem de
estar integrados nas organizações políticas tradicionais». Tratava-se de um
regime especial em que os destribalizados continuavam a ser considerados
indígenas. O projecto de Estatuto previamente aprovado pelo Conselho
Ultramarino distinguia o “Estatuto dos indígenas em regime tribal” do “Estatuto
dos Indígenas destribalizados” mas tal orientação não fora perfilhada pelo
Governo e por isso as disposições sobre os indígenas destribalizados foram
disseminadas e não submetidas a um título comum[11].
Segundo Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz, embora a doutrina jurídica
construída sobre este artigo 21.º postulasse que a destribalização tinha
fundamentos económicos e estabelecesse que o destribalizado era um “marginal”,
o primeiro objectivo da regulação do destribalizado visava o não reconhecimento
de legitimidade do chefe tradicional e a lei restringia o seu enquadramento
social a um problema de ordem política[12].
3. Os “assimilados”
A condição de indígena “perdia-se” sempre e só
pela aquisição de cidadania (a vulgarmente designada “assimilação”). Provava-se
pelo bilhete de identidade (nacional) e podia revestir uma de três formas:
a)- a forma “normal”, realizada através de um
processo administrativo onde o indígena requerente deveria comprovar que
satisfazia cumulativamente os seguintes cinco requisitos: i)- ser maior de 18
anos; ii)- falar correctamente a língua portuguesa; iii)- exercer profissão,
arte ou ofício suficientemente remunerado para sustentar a família; iv)- ter
bom comportamento e ter adquirido suficiente ilustração e hábitos portugueses;
v)- não ter sido refractário ao serviço militar nem desertor.
b)- a forma “automática” através da outorga de
um bilhete de identidade a quem beneficiasse das circunstâncias expressamente
contempladas no art. 60.º;
c)- a forma “graciosa” mediante concessão da
cidadania pelo governador da província.
Os
objectivos centrais do novo Estatuto eram os mesmos do anterior regime do
indigenato: reduzir a população a um reservatório de mão-de-obra barata e até
gratuita e facilitar a expropriação das melhores terras dos africanos a favor
dos europeus[13]. As
mudanças mais significativas foram a acentuação da natureza provisória do
indigenato, a enumeração dos requisitos de aquisição de cidadania portuguesa e
uma reformulação do conceito de indígena que, mantendo o factor étnico quanto
aos «indivíduos da raça negra ou seus descendentes», acentuou o factor
cultural, ao aceitar como critério já não a integração do indivíduo no grupo
tradicional mas sim a sua integração no grupo dos cidadãos portugueses, ou
seja, no grupo europeu. Assim, desapareceu a categoria autónoma de “assimilado”
(cuja terminologia permaneceu porém na linguagem corrente para designar aqueles
que, de qualquer modo ou em qualquer momento, haviam adquirido a cidadania) mas
o regime do indigenato continuou a aplicar-se aos “destribalizados” (os quais,
ao contrário da pretensão de Marcelo Caetano, não alcançaram a categoria de
“semi-assimilados”), embora lhes tenha sido facultada a possibilidade de optar
parcialmente pelo direito comum português.
Mantendo o núcleo do regime que vinha dos Estatutos
de 1926 e de 1929, este Estatuto contrariava a lógica da assimilação que, em
certa medida, enformara a revisão constitucional de 1951[14].
Mas, por outro lado, comprovava que os “assimilados” nunca foram uma figura
central na doutrina colonial portuguesa e nunca haviam sido considerados como
sinal de uma política de assimilação[15].
4. A importância do bilhete de identidade
Em Angola, no final da década de cinquenta,
para uma população total de cerca 4.800.000 residentes, os brancos (cidadãos)
eram aproximadamente 270.000 (3,6%), os “assimilados” (de ascendência nativa ou
mista) cerca de 70.000 (2%) – dos quais eram “mulatos” cerca de 50.000 (1,1%) –
e os indígenas 4.500.000 (95%)[16]. Os
números relativos à Guiné Portuguesa e a Moçambique eram ainda mais
desproporcionados.
Sobre esta política de assimilação, Adriano
Moreira fala de “classe intermédia”
(que, em sentido amplo, incluía, além dos assimilados, todos os destribalizados)
que «pela sua vocação activa, e sendo originária da população indígena»
ultrapassara «definitivamente, e por definição, a natureza de classe marginal podendo acontecer e
tendo acontecido, ter-se transformado no núcleo de um anticolonialismo
nacionalista». Preventiva e premonitoriamente, acrescentava que tal fenómeno
ainda não se verificava no Ultramar português, mas importava «não ignorar a
potencialidade dessa classe» [17].
O mero reconhecimento dos direitos cívicos
ainda chegou a ser o tema central dos textos predecessores dos movimentos
nacionalistas, nesta fase, de predominante origem cultural. Por exemplo, em
1958, uma petição da Liga Africana clamava: «O bilhete de identidade é, para nós indígenas, uma questão de vida ou de morte»[18].
Mas o indigenato não foi sequer abordado aquando da revisão constitucional de
1959. Depois, a sua abolição em 1961, seguindo o figurino francês e já em fase
de generalizado “assalto à fortaleza colonial”, não salvou o Império Colonial
Português nem a Nação Una.
António
Duarte Silva
[2] Citado e
transcrito por J. M. Silva Cunha, O
sistema português de política indígena, Coimbra Editora, 1953, pp. 185/187.
[3] José Carlos Ney
Ferreira e Vasco Soares da Veiga, Estatuto
dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique- Anotado,
2.ª edição, Lisboa, 1957, pp. 14-20, e Mário Moutinho, O Indígena no Pensamento Colonial Português, 1895-1961, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, pp. 123
e segs.
[4] Para um resumo,
Emmanuelle Saada, “Et le droit colonial inventa l’indigène”, in L’Histoire, Paris, n.º 400/Junho 2014,
pp. 48/51.
[5] Frederick Cooper,
Français et Africains? Être citoyen au
temps de la décolonisation, (tradução do inglês), Paris, Payot, 2014, p. 18
[6] Marcello Caetano,
A Constituição de 1933 – Estudo de
Direito Político, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1957, p. 23.
[7] Adriano Moreira, Administração da justiça aos indígenas,
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1955, p. 14.
[9] José Luís de
Oliveira Cabaço, Moçambique: identidades,
colonialismo e libertação, Tese de doutoramento em Antropologia,
Universidade de São Paulo, 2007, pp. 153.
[10] Adriano Moreira,
“Problemas Sociais do Ultramar”, in Ensaios,
Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1960, p. 157.
[12] Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz,
“Destribalização, regedorias e desenvolvimento comunitário: notas acerca do
pensamento colonial português”, in Diogo Ramada Curto (org.), Bernardo Pinto da
Cruz e Teresa Furtado, Políticas
coloniais em tempo de revoltas – Angola circa 1961, Porto, Afrontamento,
2016, p. 28.
[13] Tcherno Djaló, O mestiço e o poder – identidades,
dominações e resistências na Guiné, Lisboa, Vega, 2012, p. 189.
[14] Valentim
Alexandre, “ A descolonização portuguesa em perspectiva comparada», in Manuela
Franco (coord.), Portugal, os Estados Unidos
e a África Austral, Lisboa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento/IPRI,
2066, p. 54.
[15] Cristina Nogueira
da Silva, “Assimilacionismo e assimilados
no império português do século XX: uma relação equivocada”, in Ângela
Barreto e Cristina Nogueira da Silva (org.), O Governo dos Outros – Poder
e Diferença no Império Português, Lisboa, ICS, 2016, pp. 346/347.
[16] Cfr. Fernando
Tavares Pimenta, Angola, os Brancos e a
Independência, Porto, Edições Afrontamento, 2008, p. 449, Quadro I. Os
números apresentados por Douglas Wheeler e René Pélissier, História de Angola, Lisboa, Tinta- da-China, 2009, p. 393, são
semelhantes, salvo quanto aos “brancos” (172.500).
[17] Adriano Moreira,
“As elites das províncias portuguesas de indigenato (Guiné, Angola,
Moçambique)”, in Ensaios, cit., p. 44.
[18] Citada por René
Pélissier, La Colonie du Minotaure – Nationalisme et révoltes en Angola
(1926-1961), Pélissier, Montamets, 78630 Orgeval, France, 1978, p. 73.
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