sábado, 25 de março de 2017

O Estatuto dos Indígenas de 1954.







Gilberto Freyre com um pastor no Deserto do Namibe, 1952


  1. A feitura
         A primeira e principal justificação para a elaboração de um novo Estatuto dos Indígenas (substituindo o então vigente Estatuto de 1929) era a aplicação dos princípios fundamentais que passaram a estar consignados na Constituição, após a revisão de 1951, e na nova Lei Orgânica Ultramar, de 1953. Em 1951, apesar de algumas divergências de fundo entre a proposta governamental e o parecer da Câmara Corporativa (ainda mais conservador na matéria), a discussão parlamentar sobre o indigenato fora curta: mantiveram-se as “garantias dos indígenas” provindas do Acto Colonial, a tentativa de alteração da terminologia não passou e a única novidade foi a atribuição de natureza transitória ao regime de indigenato. Porém, num curso realizado em 1952-1953, Marcelo Caetano criticava a influência do «renovo das velhas doutrinas da assimilação integral das províncias ultramarinas ao regime europeu» e distinguia, considerando os diversos estádios culturais em que se encontravam os seus componentes, quatro situações (sociológicas) entre a população nativa: (i) indígenas primitivos;  (ii) indígenas em evolução; iii) indígenas destribalizados; e (iv) assimilados [1].  
Ora, era a situação dos destribalizados não assimilados que mais preocupava os mentores da política indígena. Não se tratava de caso exclusivamente português e Marcelo Caetano abordou a questão num parecer emitido no Conselho do Império Colonial, em 1941, defendendo agrupamentos populacionais próprios e a criação de um estatuto intermediário entre a cidadania e o indigenato, o de “semi-assimilado” – que abrangeria os negros e mestiços com um verniz externo de civilização e em rebeldia contra a disciplina tribal[2]. Tratava-se especialmente de indígenas que tinham frequentado as escolas das missões ou que tinham emigrado para áreas urbanas.


Orlando Ribeiro e Talibé, Bissau, 1947


2. Noção de indígena


O novo Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39.666, de 20 de Maio de 1954, ou seja, pelo Governo reunido em Conselho de Ministros, deste modo, e pela primeira vez, ultrapassando a competência específica do Ministro do Ultramar (no caso, Sarmento Rodrigues). Continha 67 artigos, agrupados em 4 capítulos.
O Estatuto era especial e pessoal, acompanhando os indígenas quando e para onde se deslocassem (como era, sobretudo, o caso dos indígenas angolanos e moçambicanos “contratados” para as roças de S. Tomé e Príncipe).
A noção legal constava do artigo 2.º: «indivíduos de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas [províncias da Guiné, Angola e Moçambique], não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses». Eram, portanto, cinco os critérios utilizados: i)- raça; ii)- filiação; iii)- nascimento; iv)- residência; v)- cultura. Comparando com o Estatuto de 1929 constatam-se quatro alterações: a)- deixou de se definir o “não indígena”; b)- alargou-se o conceito de indígena aos “destribalizados” e “indígenas em evolução”; c)- a definição é geral (comum a todas as províncias de indigenato) e exclusiva (porque consta da lei e deixa de caber aos governadores de cada colónia); d)- em vez de dois (racial e cultural) passam a ser cinco os critérios usados na definição[3].
O indigenato não existia no Império britânico, assente na separação racial. Como regime legal fora criado no século XIX pelo Império Francês, onde provocou “um debate sem fim” por causa da variedade e complexidade destes estatutos pessoais[4]. Em 1945, vivendo-se ainda sob a forma de Império (substituída pela Constituição de 1946), reclamar a cidadania era um gesto revolucionário pois «a esmagadora maioria dos Africanos – e dos Argelinos – eram considerados nacionais franceses e súbditos franceses, mas não cidadãos franceses. Só poderiam tornar-se cidadãos se renunciassem ao respectivo estatuto pessoal (islâmico ou “costumeiro”), aceitassem as regras do código civil francês sobre o casamento e a herança e persuadissem os administradores que tinham assimilado completamente as normas sociais francesas[5]. A abolição do indigenato traduziu-se na generalização da cidadania enunciada pelo artigo único da chamada “Lei Lamine Guèye” (e cujo desenvolvimento admitiu a manutenção do estatuto pessoal de direito privado e distinguiu entre cidadania da República francesa e cidadania da União Francesa), aprovada por unanimidade em 7 de Maio de 1946 pela Assembleia Nacional Constituinte.
No direito colonial português, para Marcelo Caetano, numa construção restritiva, os indígenas eram apenas «súbditos portugueses, submetidos à protecção do Estado português, mas sem fazerem parte da Nação, quer considerada como comunidade cultural (visto faltarem-lhe os requisitos de assimilação de cultura) quer como associação política dos cidadãos, (por não terem ainda conquistado a cidadania)»[6]. Adriano Moreira sustentava uma opinião diferente, mais complexa. Primeiro, considerava a palavra “cidadania” adequada «para designar o estado jurídico caracterizado precisamente pela detenção dos poderes jurídicos pertinentes à intervenção no exercício da soberania»; depois, aproximava-se da doutrina francesa: «os indígenas integram uma categoria de nacionais que não são cidadãos, como não o são os não indígenas que não reúnam as condições fixadas por lei»[7]. Consequentemente, concluía que, no direito constitucional então vigente, o estado jurídico de “nacional” era «género de que são espécies os estados de indígena e não indígena»[8]. Portanto, em sua opinião, embora não-cidadãos, os indígenas seriam nacionais portugueses. Em 1961 foi mais longe: eliminou o estado de “indígena”, criou o de “vizinho da regedoria” e generalizou a obtenção do bilhete de identidade de cidadão português.
No Estatuto de 1954, a contemporização com os usos e costumes dos indígenas estava contemplada no artigo 3.º (sendo, desde logo, prejudicada por não existirem efectivamente codificações sistemáticas dos «usos e costumes próprios das respectivas sociedades»). A contemporização obedecia à chamada “cláusula de repugnância” [9], ou seja, excluía o que “repugnava” à civilização ocidental (a “moral”, os “ditames da humanidade” e os “interesses superiores da soberania”); por outro lado, a medida dos usos e costumes teria em conta o grau de evolução, as qualidades morais, a aptidão profissional bem como o afastamento ou integração na sociedade tribal (§ 3.º). Mas a aplicação dos usos e costumes próprios poderia, no domínio das relações privadas, ser afastada pois os indígenas tinham direito a optar pela lei comum em matéria de relações de família, sucessões, comércio e propriedade imobiliária (art. 27.º). Esta última previsão visaria a “assimilação parcial” (dos destribalizados), contra a qual se levantou Adriano Moreira, por a considerar inoperante e não conduzir «à indispensável coincidência entre o estatuto jurídico e o estatuto cultural» dos “assimilados” e destribalizados, sobretudo católicos[10].
Era no Capítulo II, sobre a situação jurídica dos indígenas, que o artigo 21.º regulava a jurisdição exclusiva das autoridades administrativas sobre os destribalizados, dispondo que elas exerceriam «por si sós jurisdição e polícia sobre os indígenas que deixarem de estar integrados nas organizações políticas tradicionais». Tratava-se de um regime especial em que os destribalizados continuavam a ser considerados indígenas. O projecto de Estatuto previamente aprovado pelo Conselho Ultramarino distinguia o “Estatuto dos indígenas em regime tribal” do “Estatuto dos Indígenas destribalizados” mas tal orientação não fora perfilhada pelo Governo e por isso as disposições sobre os indígenas destribalizados foram disseminadas e não submetidas a um título comum[11]. Segundo Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz, embora a doutrina jurídica construída sobre este artigo 21.º postulasse que a destribalização tinha fundamentos económicos e estabelecesse que o destribalizado era um “marginal”, o primeiro objectivo da regulação do destribalizado visava o não reconhecimento de legitimidade do chefe tradicional e a lei restringia o seu enquadramento social a um problema de ordem política[12].





3. Os “assimilados” 

A condição de indígena “perdia-se” sempre e só pela aquisição de cidadania (a vulgarmente designada “assimilação”). Provava-se pelo bilhete de identidade (nacional) e podia revestir uma de três formas:
a)- a forma “normal”, realizada através de um processo administrativo onde o indígena requerente deveria comprovar que satisfazia cumulativamente os seguintes cinco requisitos: i)- ser maior de 18 anos; ii)- falar correctamente a língua portuguesa; iii)- exercer profissão, arte ou ofício suficientemente remunerado para sustentar a família; iv)- ter bom comportamento e ter adquirido suficiente ilustração e hábitos portugueses; v)- não ter sido refractário ao serviço militar nem desertor. 
b)- a forma “automática” através da outorga de um bilhete de identidade a quem beneficiasse das circunstâncias expressamente contempladas no art. 60.º;
c)- a forma “graciosa” mediante concessão da cidadania pelo governador da província.
  Os objectivos centrais do novo Estatuto eram os mesmos do anterior regime do indigenato: reduzir a população a um reservatório de mão-de-obra barata e até gratuita e facilitar a expropriação das melhores terras dos africanos a favor dos europeus[13]. As mudanças mais significativas foram a acentuação da natureza provisória do indigenato, a enumeração dos requisitos de aquisição de cidadania portuguesa e uma reformulação do conceito de indígena que, mantendo o factor étnico quanto aos «indivíduos da raça negra ou seus descendentes», acentuou o factor cultural, ao aceitar como critério já não a integração do indivíduo no grupo tradicional mas sim a sua integração no grupo dos cidadãos portugueses, ou seja, no grupo europeu. Assim, desapareceu a categoria autónoma de “assimilado” (cuja terminologia permaneceu porém na linguagem corrente para designar aqueles que, de qualquer modo ou em qualquer momento, haviam adquirido a cidadania) mas o regime do indigenato continuou a aplicar-se aos “destribalizados” (os quais, ao contrário da pretensão de Marcelo Caetano, não alcançaram a categoria de “semi-assimilados”), embora lhes tenha sido facultada a possibilidade de optar parcialmente pelo direito comum português.
Mantendo o núcleo do regime que vinha dos Estatutos de 1926 e de 1929, este Estatuto contrariava a lógica da assimilação que, em certa medida, enformara a revisão constitucional de 1951[14]. Mas, por outro lado, comprovava que os “assimilados” nunca foram uma figura central na doutrina colonial portuguesa e nunca haviam sido considerados como sinal de uma política de assimilação[15].



4. A importância do bilhete de identidade

Em Angola, no final da década de cinquenta, para uma população total de cerca 4.800.000 residentes, os brancos (cidadãos) eram aproximadamente 270.000 (3,6%), os “assimilados” (de ascendência nativa ou mista) cerca de 70.000 (2%) – dos quais eram “mulatos” cerca de 50.000 (1,1%) – e os indígenas 4.500.000 (95%)[16]. Os números relativos à Guiné Portuguesa e a Moçambique eram ainda mais desproporcionados.
Sobre esta política de assimilação, Adriano Moreira fala de “classe intermédia” (que, em sentido amplo, incluía, além dos assimilados, todos os destribalizados) que «pela sua vocação activa, e sendo originária da população indígena» ultrapassara «definitivamente, e por definição, a natureza de classe marginal podendo acontecer e tendo acontecido, ter-se transformado no núcleo de um anticolonialismo nacionalista». Preventiva e premonitoriamente, acrescentava que tal fenómeno ainda não se verificava no Ultramar português, mas importava «não ignorar a potencialidade dessa classe» [17].
O mero reconhecimento dos direitos cívicos ainda chegou a ser o tema central dos textos predecessores dos movimentos nacionalistas, nesta fase, de predominante origem cultural. Por exemplo, em 1958, uma petição da Liga Africana clamava: «O bilhete de identidade é, para nós indígenas, uma questão de vida ou de morte»[18]. Mas o indigenato não foi sequer abordado aquando da revisão constitucional de 1959. Depois, a sua abolição em 1961, seguindo o figurino francês e já em fase de generalizado “assalto à fortaleza colonial”, não salvou o Império Colonial Português nem a Nação Una.


António Duarte Silva
 


[1] Marcello Caetano, Os nativos na economia africana, Coimbra Editora, 1954, pp. 6 e 16/18.
[2] Citado e transcrito por J. M. Silva Cunha, O sistema português de política indígena, Coimbra Editora, 1953, pp. 185/187.
[3] José Carlos Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga, Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique- Anotado, 2.ª edição, Lisboa, 1957, pp. 14-20, e Mário Moutinho, O Indígena no Pensamento Colonial Português, 1895-1961, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, pp. 123 e segs.
[4] Para um resumo, Emmanuelle Saada, “Et le droit colonial inventa l’indigène”, in L’Histoire, Paris, n.º 400/Junho 2014, pp. 48/51.
[5] Frederick Cooper, Français et Africains? Être citoyen au temps de la décolonisation, (tradução do inglês), Paris, Payot, 2014, p. 18
[6] Marcello Caetano, A Constituição de 1933 – Estudo de Direito Político, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1957, p. 23.
[7] Adriano Moreira, Administração da justiça aos indígenas, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1955, p. 14.
[8] Ibidem, p. 15.
[9] José Luís de Oliveira Cabaço, Moçambique: identidades, colonialismo e libertação, Tese de doutoramento em Antropologia, Universidade de São Paulo, 2007, pp. 153.
[10] Adriano Moreira, “Problemas Sociais do Ultramar”, in Ensaios, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1960, p. 157.
[11] José Carlos Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga, Estatuto…, cit., p. 38.
[12]  Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz, “Destribalização, regedorias e desenvolvimento comunitário: notas acerca do pensamento colonial português”, in Diogo Ramada Curto (org.), Bernardo Pinto da Cruz e Teresa Furtado, Políticas coloniais em tempo de revoltas – Angola circa 1961, Porto, Afrontamento, 2016, p. 28.
[13] Tcherno Djaló, O mestiço e o poder – identidades, dominações e resistências na Guiné, Lisboa, Vega, 2012, p. 189.
[14] Valentim Alexandre, “ A descolonização portuguesa em perspectiva comparada», in Manuela Franco (coord.), Portugal, os Estados Unidos e a África Austral, Lisboa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento/IPRI, 2066, p. 54.
[15] Cristina Nogueira da Silva, “Assimilacionismo e assimilados no império português do século XX: uma relação equivocada”, in Ângela Barreto e Cristina Nogueira da Silva (org.), O Governo dos OutrosPoder e Diferença no Império Português, Lisboa, ICS, 2016, pp. 346/347.
[16] Cfr. Fernando Tavares Pimenta, Angola, os Brancos e a Independência, Porto, Edições Afrontamento, 2008, p. 449, Quadro I. Os números apresentados por Douglas Wheeler e René Pélissier, História de Angola, Lisboa, Tinta- da-China, 2009, p. 393, são semelhantes, salvo quanto aos “brancos” (172.500).
[17] Adriano Moreira, “As elites das províncias portuguesas de indigenato (Guiné, Angola, Moçambique)”, in Ensaios, cit.,  p. 44.
[18] Citada por René Pélissier, La Colonie du MinotaureNationalisme et révoltes en Angola (1926-1961), Pélissier, Montamets, 78630 Orgeval, France, 1978, p. 73. 









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