É um livro singular. E, confesso,
julgando que conhecia tudo quanto se havia escrito sobre a PIDE/DGS, ignorava
por completo este Cela Sem Número, de
Arnaldo Pinto. Não são memórias de longo curso, mas valem como tal. É o
«diário» das 38 jornadas que o autor passou encarcerado na delegação da PIDE do
Porto, entre Janeiro e Fevereiro de 1970. O mais curioso de tudo é que o livro
seria publicado ainda antes do 25 de Abril – mais precisamente, em 1972, no
Porto –, juntando-se à numerosa bibliografia de Arnaldo Pinto, onde avultam
títulos com nomes fantásticos, tais como o
ambicioso Maior que o Destino, o
desesperado As Portas do Abismo, o
comercialão 20 Contos por 15 Escudos,
o tenebroso No Mundo das Trevas ou o
sempre prático Guia Turístico do Portugal
Continental. Isto para não falarmos, claro, da distopia bíblica Julgamento de Judas no Ano 3.000.
Arnaldo Pinto esteve preso ou detido na
delegação do Porto da polícia política sob a acusação, ou suspeita, de prática
do crime de auxílio à emigração clandestina. Ou seja, não era, em sentido
estrito, um «criminoso político», um oposicionista declarado ao regime, sendo
essa, porventura, a razão pela qual estas suas memórias do cárcere não são
muito conhecidas.
Num estilo gongórico, pejado de
floreados e ornamentos, Arnaldo Pinto descreve pari passu os seus dias de cela. Fá-lo com uma candura tal, digamos
assim, que chega a ser desarmante – e até, por vezes, digno de sorriso. Na
primeira linha do seu diário relativo a 22 de Janeiro de 1970, uma
quarta-feira, escreve, do fundo dos calabouços: «Dia sem interesse prático».
Depois, acumulam-se em camadas sobrepostas referências eruditas ao alcance de
todos, alusões aos infernos de Dante ou às pinturas de Bosch, recordações do
dia em que é preso, no local de trabalho. «Este dia 19 de Janeiro de 1970 foi,
para a grande maioria das gentes deste pobre Universo, um dia igual a qualquer
outra segunda-feira do ano». No Universo – e, em particular, no sistema solar –
o dia não foi assim para um ser terráqueo: Arnaldo Pinto, autor de Plano Inclinado, entre outras obras. Foi
esse o dia em que os agentes da PIDE/DGS o detiveram e, depois de o deterem,
lhe disseram que estava preso. «A partir do momento de se ouvir a frase
terrível do – “está preso” – as coisas mudam substancialmente e quase por
encanto».
Logo de seguida, perguntaram-lhe o que
queria almoçar. «Escolhi, como era lógico, a coisa mais simples, um bife».
Sempre inquisidor, o agente da DGS pergunta: «– Com batatas fritas?». «– Sim,
pode ser», condescendeu Arnaldo. Não satisfeito, o agente avança para o sector
das bebidas: «– E para beber? Vinho maduro?». Astuto, o autor-recluso optou
pela cerveja. Apareceu então em cena «um empregado jovem do restaurante oficial
fornecedor das refeições», ou seja, do estabelecimento comercial de restauração
que, oficial ou oficiosamente, alimentava funcionários, agentes e demais
pessoal maior e menor que se encontrasse na delegação portuense da Direcção
Geral de Segurança. Na altura, para passar o tempo, o espírito de Arnaldo
vagueia por destinos exóticos – Nova Zelândia, Tailândia, Rio De Janeiro – até
aterrar de súbito na realidade dura e crua de uma cela com duas camas de ferro
sobrepostas (um beliche?) e um balde. «– O balde é para as suas necessidades».
Arnaldo Pinto passou 38 dias na prisão,
onde não foi torturado e podia receber a visita da família. Podia até
requisitar ao servente «o que quisesse», mais precisamente, maços de cigarros,
um bloco de apontamentos, papel de carta e uma esferográfica. Arnaldo Pinto
pediu tudo quanto tinha direito, incluindo um maço da marca Monserrate. Não
estamos, de modo algum, perante um «caso típico» de preso da PIDE/DGS. Até por
isso, este Cela Sem Número é um livro
singular, que merece registo e nota nesta rubrica memórias perdidas.
António
Araújo
É um tema que é ia ser o fluido na história de Portugal
ResponderEliminarKis :=}