quarta-feira, 15 de março de 2017

Memórias Perdidas - 12



 
 
 
         É um livro singular. E, confesso, julgando que conhecia tudo quanto se havia escrito sobre a PIDE/DGS, ignorava por completo este Cela Sem Número, de Arnaldo Pinto. Não são memórias de longo curso, mas valem como tal. É o «diário» das 38 jornadas que o autor passou encarcerado na delegação da PIDE do Porto, entre Janeiro e Fevereiro de 1970. O mais curioso de tudo é que o livro seria publicado ainda antes do 25 de Abril – mais precisamente, em 1972, no Porto –, juntando-se à numerosa bibliografia de Arnaldo Pinto, onde avultam títulos com nomes fantásticos, tais como o ambicioso Maior que o Destino, o desesperado As Portas do Abismo, o comercialão 20 Contos por 15 Escudos, o tenebroso No Mundo das Trevas ou o sempre prático Guia Turístico do Portugal Continental. Isto para não falarmos, claro, da distopia bíblica Julgamento de Judas no Ano 3.000.
         Arnaldo Pinto esteve preso ou detido na delegação do Porto da polícia política sob a acusação, ou suspeita, de prática do crime de auxílio à emigração clandestina. Ou seja, não era, em sentido estrito, um «criminoso político», um oposicionista declarado ao regime, sendo essa, porventura, a razão pela qual estas suas memórias do cárcere não são muito conhecidas.
         Num estilo gongórico, pejado de floreados e ornamentos, Arnaldo Pinto descreve pari passu os seus dias de cela. Fá-lo com uma candura tal, digamos assim, que chega a ser desarmante – e até, por vezes, digno de sorriso. Na primeira linha do seu diário relativo a 22 de Janeiro de 1970, uma quarta-feira, escreve, do fundo dos calabouços: «Dia sem interesse prático». Depois, acumulam-se em camadas sobrepostas referências eruditas ao alcance de todos, alusões aos infernos de Dante ou às pinturas de Bosch, recordações do dia em que é preso, no local de trabalho. «Este dia 19 de Janeiro de 1970 foi, para a grande maioria das gentes deste pobre Universo, um dia igual a qualquer outra segunda-feira do ano». No Universo – e, em particular, no sistema solar – o dia não foi assim para um ser terráqueo: Arnaldo Pinto, autor de Plano Inclinado, entre outras obras. Foi esse o dia em que os agentes da PIDE/DGS o detiveram e, depois de o deterem, lhe disseram que estava preso. «A partir do momento de se ouvir a frase terrível do – “está preso” – as coisas mudam substancialmente e quase por encanto».
         Logo de seguida, perguntaram-lhe o que queria almoçar. «Escolhi, como era lógico, a coisa mais simples, um bife». Sempre inquisidor, o agente da DGS pergunta: «– Com batatas fritas?». «– Sim, pode ser», condescendeu Arnaldo. Não satisfeito, o agente avança para o sector das bebidas: «– E para beber? Vinho maduro?». Astuto, o autor-recluso optou pela cerveja. Apareceu então em cena «um empregado jovem do restaurante oficial fornecedor das refeições», ou seja, do estabelecimento comercial de restauração que, oficial ou oficiosamente, alimentava funcionários, agentes e demais pessoal maior e menor que se encontrasse na delegação portuense da Direcção Geral de Segurança. Na altura, para passar o tempo, o espírito de Arnaldo vagueia por destinos exóticos – Nova Zelândia, Tailândia, Rio De Janeiro – até aterrar de súbito na realidade dura e crua de uma cela com duas camas de ferro sobrepostas (um beliche?) e um balde. «– O balde é para as suas necessidades».
         Arnaldo Pinto passou 38 dias na prisão, onde não foi torturado e podia receber a visita da família. Podia até requisitar ao servente «o que quisesse», mais precisamente, maços de cigarros, um bloco de apontamentos, papel de carta e uma esferográfica. Arnaldo Pinto pediu tudo quanto tinha direito, incluindo um maço da marca Monserrate. Não estamos, de modo algum, perante um «caso típico» de preso da PIDE/DGS. Até por isso, este Cela Sem Número é um livro singular, que merece registo e nota nesta rubrica memórias perdidas.
 
António Araújo
 
 
 

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