quarta-feira, 8 de março de 2017

Os conspiradores divertem-se.





 
António de Spínola
 
         Foi num domingo de Outubro de 1975. Dia de céu claro e frio. Relativamente cedo pela manhã, eis-nos a caminho de Nova Iorque – Veiga Simão, Seabra Veiga, Pedro Corte-Real Pinto e Cirurgião – para uma conferência secreta com Richard Aldrich, empresário e primo de Nelson Rockfeller, ao tempo vice-presidente dos Estados Unidos.
         Estacionado o Lincoln Continental do Dr. Seabra Veiga, com matrícula diplomática, por ser Cônsul Honorário de Portugal no estado de Connecticut, dirigimo-nos imediatamente para o novo apartamento do Richard Aldrich, a uns três quarteirões do lugar em que tínhamos deixado o carro.
         Sendo domingo, por volta das dez da manhã e estando o tempo bastante frio, as ruas estavam quase totalmente desertas. De luvas, de sobretudo e alguns também de carapuço, para acautelar do vento frio e cortante de Nova Iorque o rosto e as nossas preciosas orelhas lusitanas, lá íamos andando quando, pelo passeio oposto, em direcção contrária, caminhava uma bela e tentadora filha de Eva.
         Postos os olhos gulosos nela, Pedro Pinto, um dos homens mais mulherengos que conheci até hoje (para já não falar de um exímio erotólogo e fabuloso coleccionador de livros eróticos ilustrados), pára, volta-se para ela, solta uma assobiadela galante e diz bem alto, em Português castiço:
         − Ouça, menina, que é para seu bem.
         Claramente surpreendida com uma saudação tão original, e com um piropo numa língua desconhecida, mas proferido num tom bem sonante, muito romântico e sedutor, a senhora afrouxou o passo e olhou semi-sorridente para o grupo.
         Dados mais uns passos, foi a vez de o Dr. Seabra Veiga repetir a outra filha de Eva as catitas e namoradas  palavras que o Embaixador Pedro Pinto tinha proferido antes.
         O Professor Veiga Simão, com um malicioso sorriso a aflorar-lhe fugitivamente ao canto dos lábios, divertido por dentro com o que estava acontecendo, mas aparentando por fora uma certa seriedade, como era seu costume, fez a seguinte observação em tom jocoso:
         - Então que é isso? Julgam que estão nas ruas malandras de Coimbra?
         E uns a gargalhar e outros a sorrir, lá continuámos nós a caminho do apartamento do Richard Aldrich, com a mente mais ocupada nas recordações de velhas aventuras dos tempos áureos da vida de estudantes que na táctica conspiratória, para já não falar na estratégia.
          Chegados ao novo apartamento do Richard Aldrich, com que deparámos nós? Com um apartamento praticamente sem qualquer móvel, vazio de tudo o que se pudesse chamar conforto, o que se prestou para uma série de piadas picantes, iniciadas, naturalmente, pelo príncipe dos erotólogos portugueses, o Embaixador Pedro Pinto, e secundadas pelos outros membros da comitiva
         Como é que, num apartamento assim, poderia alguma vez o Richard, recém-divorciado, atrair companhia feminina? Qual a mulher que, após uma rápida vista de olhos por um apartamento privado do mínimo de comodidade doméstica, não arranjava imediatamente um pretexto para dar meia volta e sair? Será que o Richard se propunha passar a viver vida de frade? E com estas e outras piadas semelhantes, de uma frivolidade pedestre, mais próprias de magalas que de intelectuais, gastámos pelo menos uma boa meia hora do nosso precioso tempo de conspiradores políticos.
         Não me posso esquecer de informar que a finalidade fundamental da reunião era ponderar sobre a conveniência de o General Spínola fazer uma viagem de carácter conspiratório aos Estados Unidos, ouvindo dos lábios de Pedro Pinto, recém-chegado do Brasil para esse propósito, um relato pormenorizado sobre o papel desempenhado pelo General Spínola no famigerado 11 de Março, uma vez que ele se tinha encontrado por mais de uma vez com ele no Rio de Janeiro, onde Pedro Pinto se auto-exilara, embora tivesse sido nomeado  embaixador de Portugal na Tailândia. É que, antes de partir para a Tailândia, tinha de passar por Lisboa, onde o esperava Monsieur Jorge Campinos (leia-se Campinôsse, por favor), ao tempo muito influene na política governamental, para o meter na prisão, por, segundo Mr. Campinos, Pedro Pinto não ter tratado devidamente os exilados políticos, como ele, durante o seu mandato de Cônsul de Portugal em Paris. Porém, para decepção nossa, sobretudo de Veiga Simão, o que nos disse Pedro Pinto e nada foi quase a mesma coisa. E digo “decepção [...] sobretudo de  Veiga Simão”, porque, tal como eu viria a verificar em muitas outras ocasiões, a coisa que Veiga Simão mais temia era dar passos em falso. Basta dizer, para comprovar a atitude de Veiga Simão perante a nossa conspiração, que, mal tínhamos acabado de sair do apartamento de Richard Aldrich, já ele nos estava a dizer a todos em tom maior:
         −  Quero que saibam que esta reunião nunca existiu para mim. Nunca admitirei que participei nela.
         Também não posso esquecer que, no decorrer dos meses, não me foi difícil compreender a razão por que Pedro Pinto quase nada sabia sobre o papel desempenhado por  Spínola no 11 de Março. É que Pedro Pinto passava mais tempo nos sebos (alfarrabistas em Portugal) do Rio de Janeiro, à cata de livros eróticos, sobretudo generosa e ricamente ilustrados, do que nas conspirações políticas, e o General Spínola fugia do relato do seu protagonismo nessa dita intentona como o diabo da água benta. 
            Como, em relatos desta natureza, a minha preocupação fundamental é ser verídico, vou exemplificar a paixão de Pedro Pinto pelos sebos do Rio de Janeiro. Em duas ocasiões, durante o exílio dele no Brasil e as minhas viagens de estudo e de recreio a esse país, o primeiro encontro entre nós, na cidade do Rio de Janeiro, com vários milhões de habitantes, deu-se, inesperadamente e (in)explicavelmente, num dos vários sebos que nela existem, onde eu procurava afanosamente livros raros e esgotados e baratos para enriquecer a minha modesta biblioteca pessoal, e onde Pedro Pinto procurava os famigerados livros ilustrados de que falei atrás, livros que ele fez questão que eu folheasse em vários encontros que no Verão de 1984 tivemos na residência dele em Genebra, onde era Cônsul Geral de Portugal.
 
 
António Cirurgião
 
 

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