Regresso às
memórias perdidas. Desta feita, as de Maria José Gama ou, de seu nome completo,
como assina no introito, de Maria José Gomes Coelho Carvalho dos Santos de
Calheiros da Gama.
Prefácio de
Adriano Moreira, e não por acaso. Adriano Moreira, juntamente com outras
figuras do antigo regime e da actual democracia, é evocado no livro como uma
das personalidades que – quem sabe? – poderiam ter dado um novo rumo às
colónias ultramarinas, evitando o desastre humanitário dos «retornados», de que
a autora se ocupou de perto, num admirável trabalho de organização e apoio.
Desengane-se, porém, quem julgar que Maria José Gama é uma saudosista do Estado
Novo. Pelo contrário. Até devido às suas origens familiares, sempre esteve do
lado republicano-socialista de oposição a Salazar, bastando recordar ter sido
seu pai – José, irmão de Teófilo Carvalho dos Santos – chefe de gabinete de
Cunha Leal, governador civil de Viseu, deputado em 1922 e sempre, mas sempre,
advogado. Era José Carvalho dos Santos amigo de Manuel Rodrigues, que o tentou
dissuadir de se fixar em Angola após o 28 de Maio, desiludido com os ventos
ditatoriais que sopravam sobre o seu país. Viajou José para África, no ano de
1932. A mulher ficou cá, negando-se a viver nos trópicos. E foi já em Angola
que, tendo conhecido a sua segunda mulher, Isabel Gomes Coelho, nasceu Maria
José, natural de Moçâmedes, «uma terra muito rica quer pela sua fauna, quer
pela sua flora existente em virtude da sua privilegiada situação geográfica».
Hoje, a terra chama-se Namibe – e lá existe, esplendorosa, a célebre Welwitschia, planta miraculosa. Existia
em Lisboa, no Jardim Botânico, um exemplar desta planta que deve o nome ao
cientista e explorador austríaco Frederic Welwitschia, mas, creio eu, a incúria
dos homens levou a que lamentavelmente morresse.
Regressemos
a Maria José. Em 1939, veio com sua mãe até à metrópole, de barco. Nova viagem
até Lisboa, também por via marítima, em 1942. No auge da guerra, portanto.
Nesta segunda deslocação, um submarino germânico obrigou o paquete a desviar a
rota, indo até Casablanca, sob domínio alemão. «apesar de ter só 5 anos, jamais
esqueci a imagem de homens armados junto de nós e do nosso camarote ter sido
inteiramente revolvido», recorda-se Maria José, acrescentando, num pormenor
delicioso, que com elas vinha um comerciante, de seu nome Adérito Sanches, que
consigo trazia dezenas de cartas que depois iria, sem cobrar portes nem
tarifas, distribuir pelos destinatários metropolitanos. Os malvados alemães
nazis apreenderam toda aquela correspondência, que era muita e íntima.
Finda a
guerra, ou por essa altura, José recebeu em Angola uma carta cifrada de seu
irmão Teófilo, dizendo-lhe que se preparava um golpe para depor Salazar. Logo
veio José de África em 1943, pronto a participar na conjura anti-salazarista
que, como se sabe, não vingou. Como não vingou outra tentativa de golpe, em
1947, no mesmo ano em que Teófilo Carvalho dos Santos foi preso na sua casa de
Alenquer. O irmão José seria seu advogado de defesa. Enquanto tudo isso se
passava, Maria José lia os livros da condessa de Ségur, e o pai defendia os
interesses dos Industriais de Moçâmedes, sendo, no plano político, apoiante da
candidatura de Norton de Matos. Desiludido, foi de novo para Angola, fixando-se
agora em Benguela, onde foi Presidente do Rádio Clube, 1º Presidente da Cruz
Vermelha Portuguesa e Presidente do Sport Benguela e Benfica. Maria José e a
mãe ficaram em Lisboa, onde a primeira frequentou o Liceu Filipa de Lencastre,
onde teve «professoras de grande nível intelectual» mas também docentes
«excessivamente sectárias e facciosas que me fizeram uma guerra fria,
humilhando-me pelo facto de não ser baptizada e ser filha de um oposicionista,
bem como sobrinha de um líder da oposição a quem várias vezes era retirada a
liberdade». Teve problemas, claro está, por não comprar a farda da Mocidade
Portuguesa, organização, que curiosamente, lhe foi recordada quando, muitos
anos depois, viu com seu marido, em Moscovo, uma actuação em marcha da
Juventude Bolchevista.
Aos 18 anos,
casou Maria José. Seu marido, Sérgio Marques Fernandes de Calheiros da Gama,
era geólogo, engenheiro técnico e professor no Liceu Camões (depois, exerceria
funções como técnico da Câmara Municipal de Lisboa). Mais tarde, em 1967,
morreu seu pai e, no ano seguinte, Oliveira Salazar caiu de uma célebre
cadeira. Facto curiosíssimo: apesar de todo o oposicionismo do antigo chefe de
gabinete de Cunha Leal, diz Maria José que por várias vezes o Presidente do
Conselho tentou demover José do seu auto-exílio, exortando-o a entrar nas
listas de deputados pela União Nacional.
Se Maria
José não revela qualquer admiração por Salazar, é patente o seu fascínio por
Adriano Moreira, cuja obra como Ministro do Ultramar enaltece viva e
copiosamente. Aliás, foi aquando da visita de Adriano Moreira a
Angola que Maria José, acompanhando a mãe do ministro e a esposa do general Venâncio
Deslandes a uma visita aos combatentes hospitalizados, encontrou João de
Mucaba, uma criança órfã que ficou ao seu cuidado.
Com o mesmo
desvelo acompanhará os que vieram de África após o 25 de Abril, sendo uma das
fundadoras e principais animadoras da CSARA – Comissão Socialista de Apoio aos
Retornados. Esse é o principal tema do livro, porventura o trabalho da vida de Maria José Gama. Em Maio de 1974, Maria José
ofereceu-se para colaborar com o Partido Socialista. Dirigiu-se à Cooperativa
Estudos, na Avª Duque de Ávila, pertença de um grupo a que estavam ligados Raul
Rego, Lopes Cardoso, Catanho de Menezes. Mais tarde, toma conhecimento da
trágica situação dos retornados de África, já que seu filho mais velho, José
Sérgio, na qualidade de voluntário da Cruz Vermelha, com eles convivia
diariamente. Outro dos seus filhos, Rui Sérgio, fará parte da «corrente» de
jovens do PS, do PPD e do CDS que, aquando do cerco ao Patriarcado, protegeu a
saída do edifício de D. António Ribeiro. Por aqui se vê, portanto, que Maria
José navegava nas águas do socialismo moderado, condenando o PREC («O País
viveu uma situação muito conturbada e de grande intranquilidade») e os excessos
desse tempo, quando se confundiu «democracia com libertinagem».
Nos
primeiros tempos da CSARA, Maria José tenta mobilizar apoios. Falou com Maria
de Jesus Barroso, tendo-lhe esta dito que só colaboraria se tivesse o
beneplácito de Mário Soares. Tendo este apoiado entusiasticamente a iniciativa,
a CSARA começa a funcionar, beneficiando de outro apoio de peso. Salgado Zenha.
No período gonçalvista, diz Maria José, a televisão jamais noticiou os
comunicados da CSARA, que sempre lutou contra a manipulação da imprensa e da
rádio, as quais, no seu entender, procuraram a todo o custo «ocultar a realidade
relativamente aos Retornados». Mais aliados de peso: Vasco da Gama Fernandes,
Vera Lagoa, o jornalista Antunes Ferreira. Maria Irene Zenha. E outros, vindos
da Noruega, do Instituto Norsk Folkehjelp, que muito ajudaram a CSARA nas suas
oito áreas de actividade: assistência médica e medicamentosa; assistência
jurídica; procura de empregos; distribuição de vestuário, calçado e agasalhos;
distribuição de cobertores; distribuição de leite, especialmente para crianças
e doentes; pequenos subsídios para alimentação, alojamento, etc.
Depois
da CSARA, dedicou-se Maria José à ASAS – Associação para Serviço de Apoio
Social, mas essas são contas de outro rosário, o rosário de uma vida de alguém
que festejou o 25 de Abril e cita como seus heróis Salgueiro Maia e Jaime
Neves. E pronto, aqui fica, a traços larguíssimos, uma síntese apertada da vida
cheia de Maria José Gama, militante socialista inscrita com o nº 50.
António Araújo
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