4.
Ao contrário do que se possa pensar – e
ao contrário da imagem vulgar que dela se tem no Ocidente –, A Grande Onda não é a «quintessência do
Japão», como justamente observa Neil MacGregor (Uma História do Mundo em 100 Objectos, Temas e Debates-Círculo de
Leitores, pp. 575ss.
Na verdade, a presença de elementos
ocidentais de origem europeia, como a coloração em azul da Prússia ou a
introdução da perspectiva, afasta decisivamente a xilogravura de Hokusai de uma
essencialidade nipónica, por assim
dizer, convertendo-a antes num trabalho híbrido, onde confluem traços
especificamente japoneses e outros provindos do exterior.
De igual modo, A Grande Onda não encerra um ciclo da história da xilogravura
japonesa, sendo talvez, mais propriamente, um trabalho que inaugura uma nova
etapa na trajectória dessa arte, o que é patente, desde logo, no pioneirismo e
no carácter vanguardista da série em que se integra, 36 Vistas do Monte Fuji. Aí residiu, aliás, uma das razões da sua
popularidade no Japão de 1830.
Num outro sentido, A Grande Onda é igualmente pioneira ou, melhor dizendo, representa
o prenúncio de uma abertura ao Ocidente que se concretizará em pleno década
mais tarde, muito por acção da «diploma da canhoeira» que o comodoro Matthew Perry
imporá ao Japão em 1853, ao quebrar pela força o isolamento do país,
obrigando-o a encetar relações comerciais com os Estados Unidos.
Curiosamente, alguns observadores do
Japão dessa época consideram que o período em que foi feita A Grande Onda corresponde ao declínio da
xilogravura japonesa. É o caso de Basil Hall Chamberlain (1850-1935), professor da Universidade de Tóquio, que no clássico livro-enciclopédia Things Japanese, de 1890,
escreve o seguinte: «após 1830, as cores foram-se tornando mais berrantes. A
introdução de pigmentos europeus de baixa qualidade, os problemas associados à abertura
do país ao comércio e a concorrência de gravuras europeias de baixa qualidade
levaram à decadência da arte da gravura japonesa» (Cosas de Japón. Apuntes y notas del Japón tradicional, trad. castelhana,
Satori Ediciones, 2014, p. 196).
A partir daqui poderíamos chegar a duas
conclusões surpreendentes para os que, no Ocidente, julgam ser A Grande Onda a síntese perfeita da
alma japonesa, convertida em ícone de massas: por um lado, a xilogravura de Okusai não corresponde ao pulsar
dessa alma na sua acepção mais pura e ancestral; por outro, constitui não um
sinal do apogeu desta arte tradicional japonesa mas o sintoma do seu ocaso.
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