“É
a minha nova instalação artística”, diz Daniel Blake depois de pintar a spray numa das paredes exteriores do
Centro de Emprego uma frase em que, além de denunciar a incompetência grosseira
dos serviços, aproveita para gozar com a música chata a que esses mesmos
serviços o sujeitam durante as horas em que o deixam pendurado ao telefone. O
filme Eu, Daniel Blake, que despertou
apaixonadas discussões em 2016, ano de estreia, passou um destes dias na RTP e
logo uma nova poeira de debate se ergueu no ar. Como nunca o tinha visto
aproveitei agora a oportunidade, e o episódio de “street art” que relato em
cima serve para explicar o motivo pelo qual, apesar de todas as “provocações”
do realizador Ken Loach, não verti uma lágrima durante os 96 minutos.
Inicialmente,
através de um processo de auto-análise e também por causa dos subtis
comentários que a minha mulher ia soltando, atribuí a aridez das glândulas
lacrimais à incapacidade de sentir sentimentos sentimentais sensíveis, mas a
verdade é que, depois de afastar o ruído inerente à reflexão sobre o eu, bem
como o ruído inerente ao convívio prolongado entre seres humanos de sexos
opostos, lembrei-me dos riachos que escorreram pela minha cara quando vi o Umberto D., clássico do neo-realismo
italiano com o qual Eu, Daniel Blake
estabelece óbvios paralelos. A diferença decisiva entre o desgraçado Umberto
Domenico Ferrari, um italiano que se vê mergulhado numa situação de gravíssima privação
material, e o desgraçado Daniel Blake, um inglês que se vê mergulhado numa
situação de gravíssima privação material, é a atitude com que cada um deles
enfrenta a provação. Umberto D. é um símbolo quase perfeito daquilo a que damos
o nome de pobreza envergonhada; pelo contrário, Blake, no meio do desastre,
mantém a cabeça erguida, reclama, satiriza, provoca amigavelmente os vizinhos
do lado e, saudavelmente encolerizado, ainda ameaça o vizinho afastado de lhe
esfregar a cara na merda do próprio cão se ele se voltar a atrever a fazer do
jardim dos outros casa de banho para canídeos. Salvo melhor entendimento de
carácter meloso, acredito que Daniel Blake merece que não choremos por ele.
Antes
de avançar na análise recuperemos resumidamente o guião. Daniel Blake é um
marceneiro viúvo que acaba de sofrer um ataque cardíaco. Fruto de uma época em
que o trabalho tinha não só uma função económica mas também uma forte
componente de legitimação da própria existência, vê-se, de repente, encalacrado
numa armadilha procedimental: os médicos dizem-lhe que ainda não pode regressar
ao emprego e a Segurança Social, depois de lhe fazer uma dúzia de perguntas, considera-o
apto para trabalhar e não lhe concede o subsídio de doença. Sem salário e com
os apoios públicos a minguarem a cada dia, rapidamente se vê forçado a vender
os poucos pertences que tem para conseguir sobreviver, ao mesmo tempo que
percorre uma enervante via-sacra nas repartições de um Estado dominado pela
desumanidade, frieza formal e rigidez legalista.
Álvaro
Cunhal, no ensaio A Arte, o Artista e a
Sociedade, recorda, a propósito do significado da obra de arte, uma frase
cortante do crítico Dobrolyubov. Para esse revolucionário russo do séc. XIX,
cuja prematuridade se traduziu em escritos poéticos aos treze anos e morte por
tuberculose aos vinte e cinco, a sentença era clara: o que um autor pretende
exprimir é muito menos importante do que aquilo que realmente exprime. Não é
nada fácil contestar esta ideia, seja em relação a artistas propriamente ditos,
a desculpas dadas às três da manhã com hálito a whisky e batom no colarinho da
camisa, ou a discursos contra a especulação imobiliária proferidos da varanda
de um prédio lisboeta reabilitado com o objectivo de gerar mais-valias
pantagruélicas. No entanto, para ser justo, devo dizer que, embora tenha dúvidas
sobre algumas análises ao filme de Ken Loach, não afirmo peremptoriamente que
aquilo que pretendeu exprimir seja diferente daquilo que realmente exprimiu.
Parece-me antes que estamos, usando uma comparação muito em voga, perante um Teste
de Rorschach: projectamos no ecrã as nossas convicções e por isso vemos na
história de Daniel Blake aquilo que queremos ver. O que não deixa de ser
irónico, dado que essa costuma ser a reacção do público perante uma obra
abstracta e o trabalho do realizador britânico é, supostamente, um marco do
realismo.
Conhecemos
bem, por nunca a ter escondido ou disfarçado, a sua ideologia fortemente
esquerdista. A estreia do filme em Londres contou, aliás, com a presença do
amigo e líder trabalhista Jeremy Corbyn, que logo o aproveitou para atacar as
políticas de direita do governo do partido conservador. A premissa para essa
investida é simples: Daniel Blake, bem como a sua companheira de infortúnio
Katie Morgan (que conheceu nos corredores da sinistra burocracia kafkiana que
nos é apresentada), são vítimas dos ataques “neoliberais” ao Welfare State protagonizados
pelos tories. De acordo com esta
visão o sistema foi, por razões economicistas, propositadamente ”afinado” para
complicar a vida dos cidadãos, até que estes, cansados e desmoralizados, se
afastam e desistem do suporte estatal. No entanto, e aqui regresso à mancha de
tinta de Hermann Rorschach, podemos olhar para o drama dos personagens através
de uma lente diferente, à qual podemos dar o nome, em jeito de homenagem, de
“lente de Herculano”. E tentar responder a uma pergunta muito simples: há neste
enredo macabro alguma sombra de liberdade, ou, pelo menos, de não intromissão
excessiva do Estado na vida dos cidadãos? Ou estamos, pelo contrário, a
assistir a uma actuação de “Estado-papá”, em que, por contrapartida de uma
“mesada” raquítica, vemos o funcionalismo a controlar ao milímetro a vida de
Katie e Blake, ao ponto de, por causa de um ligeiro atraso, castigarem a
primeira com a suspensão da dita “mesada”? Katie Morgan e Daniel Blake estão, de
facto, a ser esmagados pelos formalismos e idiossincrasias dos serviços
públicos, mas interessa perceber se tal não acontecerá por estarmos na presença
de uma quase relação absolutista “soberano-súbdito”, relação essa contra a qual
o liberalismo nasceu no século XVII.
E
esta é apenas a interpretação dominante do oposto ideológico de Ken Loach,
pois, numa análise à lupa, conseguimos encontrar no filme argumentos ao gosto
de todo o tipo de fregueses: o entusiasta do rigor prussiano pode achar
correcta e adequada a atitude intransigente da repartição (os dinheiros dos
contribuintes devem ser geridos sem contemplações sentimentais e a verdade é
que Blake, tendo passado o filme a andar de um lado para o outro e a fazer
biscates na sua casa e na casa de Katie, deu sempre a impressão de estar com
vontade e em condições de trabalhar); o libertário pode especular que, sem a
existência do Estado, Daniel Blake teria poupado o dinheiro que foi descontando
para a Segurança Social e não estaria agora com a própria vida nas mãos de
burocratas; e, acima de tudo, o “gajo de Alfama” encontrará mais uns quantos
motivos para afirmar que os funcionários públicos são uns madraços da pior
espécie e que só servem para fazer trinta por uma linha com o objectivo de
lixar o pessoal.
Em
resumo, Ana Avoila até pode ter pensado que gostou deste filme, mas talvez não
seja má ideia reflectir mais um bocado no assunto.
Sérgio
Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário