domingo, 21 de outubro de 2012

A América vista e vivida de perto e de longe.

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Alfred Hitchcock, The Trouble with Harry (1955)






Nietzsche, que adorava o poema de Poe (O Corvo), ficou um dia muito deprimido ao saber que o mesmo era imensamente popular nos bordéis americanos.

João Medina, A Minha América

 
A epígrafe acima vai ser justificada em poucas linhas, mas por agora relembremos que João Medina, professor de História jubilado da Universidade de Lisboa e autor de uma extensa obra historiográfica e literária, pertence àquele grupo de escritores e intelectuais da modernidade portuguesa que de quando em quando menciono nestas páginas: os que nasceram, emigraram ou se exilaram ao longo do século passado (Eugénio Lisboa, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis, Adolfo Casais Monteiro, Rui Knopfli, et al) mas que nunca deixaram de cultivar na nossa melhor literatura tanto a sua própria e repartida essência diaspórica como a sua condição de cidadãos lusos por inteiro, que na língua portuguesa, mais do que no território, encontraram a sua verdadeira pátria. É claro que se Pessoa com eles tivesse vivido, não negaria o seu passado nem, provavelmente, rejeitaria uma cumplicidade que o levaria muito para além dos seus poucos amigos e colegas numa Lisboa que hoje raramente se recorda que foi do seu seio que partiram, e depois alguns regressavam, os desbravadores de novos e longínquos mundos, trazendo a notícia de que outros povos, línguas e culturas existiam, e bem, para além da pequena mas desde sempre etnocêntrica península asiática, essa que, ao contrário do nosso país e de Espanha, permanecia  fechada na maior selvajaria e ignorância. É também preciso dizer que João Medina não é um recente apaixonado pela América, ao contrário de alguns que a descobriram aqui há dias, e quase sempre julgando que a Quinta Avenida é onde começa e acaba tudo, pontificando semana a semana nas mais diversas publicações da capital. O carinho que João Medina cultiva para com a América vem muito de trás, e tem a ver com a sua nascença e adolescência em Lourenço Marques e Joanesburgo, onde a cultura anglo-saxónica chegava muito antes de ser projectada nos cinemas da nossa capital, ou conhecida através de alguma literatura por uma minoria intelectual. Diga-se também desde já que A Minha América, aqui em foco, é de longe superior em conteúdo e astúcia crítica a quase tudo que no nosso país foi publicado por visitantes ocasionais ao grande continente a oeste, desde o pomposamente intitulado Descobri Que Era Europeia, de Natália Correia, à Cavalgada Cinzenta, de Fernando Namora, entre alguns outros escondidos na minha estante. Este livro só poderá ser comparado aos que ao longo dos anos vêm publicando em língua portuguesa escritores e intelectuais nossos imigrados nos EUA, entre os quais devemos contar América, América, de Jorge de Sena, América do Norte de Alfredo Mesquita, e quase todos os livros de Onésimo T. Almeida, Francisco Cota Fagundes e Diniz Borges.

Perdoem-me a lista de acima, mas desatenções não são permitidas nestes instantes de informação e apreciação de uma obra tão vasta na sua temática, tão pungente na sua respiração crítica e de proximidade como A Minha América. João Medina começa por lembrar a influência do cinema americano ainda em África, seguida pelas sua leituras de muitos autores norte-americanos agora, ou desde sempre, canónicos, até às suas visitas a várias partes do país como professor universitário visitante nos anos 90, incluindo a sua marcante passagem pela Brown University, à qual, assim como à cidade de Providence (a própria capa do livro é como que uma declaração de amor), presta homenagem não só pelo seu fulgor académico-intelectual como pela sua beleza tranquila, florida e acolhedora. Boa parte deste livro de mais de quatrocentas páginas está preenchida precisamente com a sua apreciação do cinema e actores americanos da sua preferência e num contexto histórico e cultural muito próprio, abrindo-nos as mais inesperadas perspectivas para uma revisitação aos clássicos dos vários géneros, que ele conhece como poucos entre nós. De resto, o livro inclui também ensaios literários ou historiográficos (desde a génese do país à sua expansão imperialista no século XIX, nos quais não faltam abordagens à melhor poesia e ficção), crónicas publicadas no Diário de Notícias e no JL, assim como um diário escrito durante a sua estadia lá como professor numa das maiores e mais prestigiadas universidades do mundo, já mencionada aqui. A sua linguagem analítica e descritiva do país e do seu povo imensamente diversificado tanto aborda virtudes como castiga o que o autor entende dever ser castigado, a política estrangeira ianque recebendo a primazia dos seus reparos e distanciamento. Não se trata aqui de mais um livro sobre a América: é um autêntico compêndio (sem nunca perder a sua criatividade, subjectividade e viveza, mesmo que o autor renegue por completo, no seu Preâmbulo, este outro estatuto do seu livro) para quem se quiser educar ou informar, pois entre nós não existe nada de igual em abrangência de temas e contextualização, uma vez mais, histórica, literária e política. Não se lê A Minha América, no entanto, só por dever, mas em primeiro lugar pelo imenso prazer que nos invade página a página. Desde quando temos de seguida uma análise do hino americano, das origens constitucionais e a figura de Thomas Jefferson, de ensaístas lendários como H. L. Mencken, Edmund Wilson e Alfred Kazin, ou romancistas como Ernest Hemingway e Carson McCullers, a comédias televisivas como Uma Família às Direitas e ALF, ao significado freudiano de Kim Novak e de Marilyn Monroe, “bela das belas”?

“Sim, estes cemitérios americanos,  - escreve João Medina num curioso passo no seu diário que encerra o livro, intitulado “Dias calmos em Rhode Island”, mas cujo tema já levou um famoso escritor britânico a escrever um romance inteiro  - sempre verdes e agradáveis, integrados no meio da paisagem, visitados com naturalidade pelo coro dos sobreviventes sem remorsos, têm qualquer coisa de único, de belo e de apaziguador: mostram-nos uma morte quase feliz à força de ser naturalmente integrada no quotidiano dos vivos, sem a barroca pompa e convulsão moral que os católicos põem nestes negócios de túmulos, lágrimas, tremebundos além-mundos e fúnebres eternidades escancaradas”.

Por detrás de toda esta prosa claríssima sobre uma América por ele feita íntima e que nos aparece com o brilhantismo florido do arvoredo outonal da Nova Inglaterra,  - quase uma segunda pátria sentimental para o autor  - está sempre implícito o contraditório, que será o nosso país no seu pior, amado mas sofrido durante todo o século passado, sem sequer falarmos dos opressivos dias presentes. Curiosamente, João Medina visita uma associação do Divino Espírito Santo numa pequena comunidade lusa em Connecticut, e sai de lá absolutamente deprimido por ver no nosso “exílio” um corte definitivo com a pátria, sem nunca assemelharmos por inteiro o melhor do Novo Mundo. Vê a nossa bandeira nacional, ao lado da americana, “enrolada sobre si mesma, envelhecida e triste, verdadeiro pendão do Exílio…” Nunca vi as coisas do mesmo modo no meu longo estado de pertença e cidadania na Diáspora norte-americana, mas entendo o desgosto do autor: a melancolia de pertencermos ao país que é nosso, e cujo único feito para além das elegantes e gloriosas caravelas foi atirar para fora os seus cidadãos, enquanto a elite, no seu histórico desrespeito pelo seu povo e nas suas corrupções sem fim, se deleita com moralismos e, sempre, com a fingida democracia lusitana.

Nietzche desgostou-se com o facto de o grande poema de Poe ser recitado nos bordéis americanos? Não haverá, creio, maior glória para um genial poeta da desgraça humana. O grande filósofo alemão que, melhor do que qualquer um dos seus contemporâneos, conhecia o marasmo e a falsidade europeia, deveria ter sorrido à genialidade da vida reencontrada no outro lado do Atlântico  - uma literatura que tem, depois de Edgar Allan Poe, um Walt Whitman, só pode e deve sair à rua, e ainda mais aos antros do maior prazer humano.

A Minha América é essa celebração, inteligente e crítica, do melhor e mais humano que o ainda reinante império mundial nos deu.
 
 
Vamberto Freitas (in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias)

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