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Alfred Hitchcock, The Trouble with Harry (1955)
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Nietzsche, que adorava o poema de
Poe (O Corvo), ficou um dia muito deprimido ao saber que o mesmo era imensamente
popular nos bordéis americanos.
João Medina, A Minha América
A epígrafe acima vai ser
justificada em poucas linhas, mas por agora relembremos que João Medina,
professor de História jubilado da Universidade de Lisboa e autor de uma extensa
obra historiográfica e literária, pertence àquele grupo de escritores e
intelectuais da modernidade portuguesa que de quando em quando menciono nestas
páginas: os que nasceram, emigraram ou se exilaram ao longo do século passado
(Eugénio Lisboa, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis, Adolfo Casais Monteiro,
Rui Knopfli, et al) mas que nunca
deixaram de cultivar na nossa melhor literatura tanto a sua própria e repartida
essência diaspórica como a sua condição de cidadãos lusos por inteiro, que na
língua portuguesa, mais do que no território, encontraram a sua verdadeira
pátria. É claro que se Pessoa com eles tivesse vivido, não negaria o seu
passado nem, provavelmente, rejeitaria uma cumplicidade que o levaria muito
para além dos seus poucos amigos e colegas numa Lisboa que hoje raramente se
recorda que foi do seu seio que partiram, e depois alguns regressavam, os
desbravadores de novos e longínquos mundos, trazendo a notícia de que outros
povos, línguas e culturas existiam, e bem, para além da pequena mas desde
sempre etnocêntrica península asiática, essa que, ao contrário do nosso país e
de Espanha, permanecia fechada na maior
selvajaria e ignorância. É também preciso dizer que João Medina não é um recente
apaixonado pela América, ao contrário de alguns que a descobriram aqui há dias,
e quase sempre julgando que a Quinta Avenida é onde começa e acaba tudo,
pontificando semana a semana nas mais diversas publicações da capital. O carinho
que João Medina cultiva para com a América vem muito de trás, e tem a ver com a
sua nascença e adolescência em Lourenço Marques e Joanesburgo, onde a cultura
anglo-saxónica chegava muito antes de ser projectada nos cinemas da nossa
capital, ou conhecida através de alguma literatura por uma minoria intelectual.
Diga-se também desde já que A Minha
América, aqui em foco, é de longe superior em conteúdo e astúcia crítica a
quase tudo que no nosso país foi publicado por visitantes ocasionais ao grande
continente a oeste, desde o pomposamente intitulado Descobri Que Era Europeia, de Natália Correia, à Cavalgada Cinzenta, de Fernando Namora,
entre alguns outros escondidos na minha estante. Este livro só poderá ser
comparado aos que ao longo dos anos vêm publicando em língua portuguesa escritores
e intelectuais nossos imigrados nos EUA, entre os quais devemos contar América, América, de Jorge de Sena, América do Norte de Alfredo Mesquita, e
quase todos os livros de Onésimo T. Almeida, Francisco Cota Fagundes e Diniz
Borges.
Perdoem-me a lista de acima, mas
desatenções não são permitidas nestes instantes de informação e apreciação de
uma obra tão vasta na sua temática, tão pungente na sua respiração crítica e de
proximidade como A Minha América.
João Medina começa por lembrar a influência do cinema americano ainda em
África, seguida pelas sua leituras de muitos autores norte-americanos agora, ou
desde sempre, canónicos, até às suas visitas a várias partes do país como
professor universitário visitante nos anos 90, incluindo a sua marcante
passagem pela Brown University, à qual, assim como à cidade de Providence (a
própria capa do livro é como que uma declaração de amor), presta homenagem não
só pelo seu fulgor académico-intelectual como pela sua beleza tranquila,
florida e acolhedora. Boa parte deste livro de mais de quatrocentas páginas
está preenchida precisamente com a sua apreciação do cinema e actores
americanos da sua preferência e num contexto histórico e cultural muito
próprio, abrindo-nos as mais inesperadas perspectivas para uma revisitação aos
clássicos dos vários géneros, que ele conhece como poucos entre nós. De resto,
o livro inclui também ensaios literários ou historiográficos (desde a génese do
país à sua expansão imperialista no século XIX, nos quais não faltam abordagens
à melhor poesia e ficção), crónicas publicadas no Diário de Notícias e no JL,
assim como um diário escrito durante a sua estadia lá como professor numa das
maiores e mais prestigiadas universidades do mundo, já mencionada aqui. A sua
linguagem analítica e descritiva do país e do seu povo imensamente diversificado
tanto aborda virtudes como castiga o que o autor entende dever ser castigado, a
política estrangeira ianque recebendo a primazia dos seus reparos e
distanciamento. Não se trata aqui de mais um livro sobre a América: é um autêntico
compêndio (sem nunca perder a sua criatividade, subjectividade e viveza, mesmo
que o autor renegue por completo, no seu Preâmbulo, este outro estatuto do seu
livro) para quem se quiser educar ou informar, pois entre nós não existe nada
de igual em abrangência de temas e contextualização, uma vez mais, histórica,
literária e política. Não se lê A Minha
América, no entanto, só por dever, mas em primeiro lugar pelo imenso prazer
que nos invade página a página. Desde quando temos de seguida uma análise do
hino americano, das origens constitucionais e a figura de Thomas Jefferson, de ensaístas
lendários como H. L. Mencken, Edmund Wilson e Alfred Kazin, ou romancistas como
Ernest Hemingway e Carson McCullers, a comédias televisivas como Uma Família às Direitas e ALF, ao significado freudiano de Kim
Novak e de Marilyn Monroe, “bela das belas”?
“Sim, estes cemitérios
americanos,
- escreve João Medina num curioso passo no seu diário que encerra
o livro, intitulado “Dias calmos em Rhode Island”, mas cujo tema já levou um
famoso escritor britânico a escrever um romance inteiro
- sempre verdes e
agradáveis, integrados no meio da paisagem, visitados com naturalidade pelo
coro dos sobreviventes sem remorsos, têm qualquer coisa de único, de belo e de
apaziguador: mostram-nos uma morte quase feliz à força de ser naturalmente
integrada no quotidiano dos vivos, sem a barroca pompa e convulsão moral que os
católicos põem nestes negócios de túmulos, lágrimas, tremebundos além-mundos e
fúnebres eternidades escancaradas”.
Por detrás de toda esta prosa
claríssima sobre uma América por ele feita íntima e que nos aparece com o
brilhantismo florido do arvoredo outonal da Nova Inglaterra,
- quase uma
segunda pátria sentimental para o autor
- está sempre implícito o
contraditório, que será o nosso país no seu pior, amado mas sofrido durante
todo o século passado, sem sequer falarmos dos opressivos dias presentes.
Curiosamente, João Medina visita uma associação do Divino Espírito Santo numa
pequena comunidade lusa em Connecticut, e sai de lá absolutamente deprimido por
ver no nosso “exílio” um corte definitivo com a pátria, sem nunca assemelharmos
por inteiro o melhor do Novo Mundo. Vê a nossa bandeira nacional, ao lado da
americana, “enrolada sobre si mesma, envelhecida e triste, verdadeiro pendão do
Exílio…” Nunca vi as coisas do mesmo modo no meu longo estado de pertença e
cidadania na Diáspora norte-americana, mas entendo o desgosto do autor: a
melancolia de pertencermos ao país que é nosso, e cujo único feito para além
das elegantes e gloriosas caravelas foi atirar para fora os seus cidadãos,
enquanto a elite, no seu histórico desrespeito pelo seu povo e nas suas
corrupções sem fim, se deleita com moralismos e, sempre, com a fingida
democracia lusitana.
Nietzche desgostou-se com o facto
de o grande poema de Poe ser recitado nos bordéis americanos? Não haverá,
creio, maior glória para um genial poeta da desgraça humana. O grande filósofo
alemão que, melhor do que qualquer um dos seus contemporâneos, conhecia o
marasmo e a falsidade europeia, deveria ter sorrido à genialidade da vida
reencontrada no outro lado do Atlântico
- uma literatura que tem, depois de Edgar
Allan Poe, um Walt Whitman, só pode e deve sair à rua, e ainda mais aos antros
do maior prazer humano.
A
Minha América é essa celebração, inteligente e crítica, do melhor e
mais humano que o ainda reinante império mundial nos deu.
Vamberto Freitas (in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias)
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