quarta-feira, 24 de outubro de 2012

The Portrait ID.

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Por que é que as pessoas tiram fotografias umas às outras? A vida é demasiado breve para nos esquecermos dos lugares em que fomos felizes. Daí nasceu a mística dos Momentos Kodak. Mas é provável que também haja algum narcisismo em tudo isto. E que a felicidade exibida seja mais simulada do que real. Não por acaso, as pessoas quase sempre sorriem para a câmera, fazem pose, querem «ficar bem». Destroem ou apagam as imagens em que não se gostam de ver. É curioso este desejo de criogenização para memória futura. As pessoas aspiram a ser congeladas para sempre, mas no melhor que de si podem legar à posteridade. É quando supostamente estamos felizes que queremos ser fotografados. Não se tiram fotografias em funerais ou episódios de dor. Tiram-se fotografias, mesmo as mais banais, em ocasiões especiais: nas férias ou em festas, casamentos e baptizados. Tiramos também muitas fotografias de crianças. Depois, tudo é convenientemente sugado pelo vórtice do kitsch.

Duas jovens designers portuguesas, Rita Trindade e Sara Gracioso, decidiram criar um arquivo digital da vida dos portugueses no século XX. The Portrait ID. O arquivo está organizado por décadas e as fotografias mais recentes – sobretudo, as dos fabulosamente bimbos anos 70 – são as que nos parecem mais risíveis ou anacrónicas. Porque mais próximas de nós. As outras, as mais antigas, já não nos pertencem, não somos nós. O arquivo recebe imagens dos leitores, mas não tem a pretensão à la Borges de se tornar uma enciclopédia infindável da portugalidade. Nem é preciso. Há lá imagens que resumem um universo inteiro. A people's history, um género em voga.
É deliciosa aquela ingenuidade toda, porque involuntária. Estamos no domínio do espontânea e do naturalíssimo. Aqui há algo de Martin Parr, obviamente, no retrato das pessoas normais. Simplesmente, como Parr reconhece em entrevista a Quentin Bajac, na sua obra há «hipocrisia» e falsa sinceridade. Nestas fotografias, ao invés, nada há de inautêntico, excepto a pose de felicidade. E, mais do que isso, quem retratava e quem era retratado não queria passar por ingénuo. O tempo é que conferiu este atributo de ingenuidade. As pessoas e as situações parecem (e são)  datadas porque a vida é breve e a felicidade fugaz. E é justamente por isso que a queremos fotografar;  para a resgatarmos da finitude certa. Para mais tarde recordar...., como dizia o anúncio. É também grande o desejo de deixarmos uma marca qualquer neste mundo. Alguma coisa queremos deixar por cá. As polaroids esmaecidas são a versão contemporânea das pinturas de Lascaux. Estes que ali vemos mostraram isto, deixaram estes sinais, os seus, pessoalíssimos. Tudo muito simples, nada de complicações ou teorizações. Esta gente nasceu, cresceu, provavelmente fez sexo regular e pagou impostos nas datas previstas. Almoçou a horas, teve febres altas, digestões difíceis, levou profissão e ofício, netos dos filhos. Depois, foi à sua morte. The Portrait ID, um comovente acervo da nossa vulgaridade. Está a chover, hoje? É o tempo dela.
 
 
António Araújo

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