sábado, 27 de outubro de 2012

Duas mártires.






Jazigo de Sara de Matos, Cemitério dos Prazeres, Lisboa


 

1.     Sara de Matos, a mártir laica do convento das Trinas (1892)

 

O caso Sara de Matos, ocorrido em 1892 num convento lisboeta, numa fase acesa de polémica antijesuítica movida pelos laicistas republicanos contra as congregações religiosas, nomeadamente contra os loiolanos, por três vezes expulsos do país, alvo das iras do pombalismo, do liberalismo e, por fim, do republicanismo antes e depois de 1910, constitui um exemplo de fabricação duma lenda negra ou de uma lenda de martírio de uma jovem vitimada pela alegada perfídia dos membros da Companhia de Jesus. Todo o final do século XIX e primeiras décadas do séc. XX regurgitariam destes casos, sob o signo dos quais nasceria a nossa maçónica I República. [1] Nesses quase vinte anos que vão do final de oitocentos ao triunfo da revolução do 5 de Outubro e à avalanche de diplomas e abrasivos actos anticlericais,  o caso de Sara de Matos - de nome completo Sara Pereira Pinto de Matos - que teria sido assassinada no convento de freiras das Trinas, ou de Mocambo, em 23-VII.1891, foi uma cause célèbre, já que esta jovem de catorze anos teria sucumbido a um envenenamento por ácido oxálico, depois de alegadamente violada por um jesuíta no recolhimento religioso lisboeta, escândalo a que O Século e A Vanguarda deram retumbância suficiente para que os tribunais julgassem o sucedido, sendo condenada a enfermeira do recolhimento Rosa de Oliveira, a irmã Coleta, a uma pesada pena, que contudo, nunca cumpriria, já que um outro tribunal acabaria por a absolver. A Maçonaria encarregar-se-ia de cultuar esta vítima do sórdido e trágico caso clerical, fazendo dela a mártir laica dos manejos loiolanos, e  o jornal republicano O Século faria uma subscrição pública para que o seu jazigo fosse florido e uma lápide assinalasse ali o triste caso.

Pouco tempo volvido sobre a proclamação da I República e a expulsão dos Jesuítas, uma lápide foi ali colocada, com a data de 23-VII-1911, com estes dizeres. “Faz hoje 20 anos que deixaste de existir, vítima dum abominável crime” (…).Sim já foram expulsos os jesuítas! E como triunfo dos teus martírios, aqui depomos. Descansa em paz! Estás vingada da tua morte.” O seu jazigo fica no cemitério dos Prazeres, no cruzamento da rua 12 com a rua 6.
 
 

Baleizão. Local onde foi assassinada Catarina Eufémia. Fotografia de João Pina
 
 

2. Catarina Eufémia, a ceifeira martirizada pela GNR e santificada pelo PCP

 
“E por mais que te escondam não ficas sepultado”
                     Sophia de Mello Breyner, poema à memória de Humberto Delgado

 


Não deixa de pertencer ao mesmo mecanismo de mitogénese política e lenda vermelha ou negra, conforme a queiramos chamar, o caso sangrento ocorrido entre nós em plena Ditadura salazarista, no Alentejo das lutas do campesinato contra a opressão que esse regime fazia sobre o mundo rural onde os manejos policiais opressivos contra as classes oprimidas eram mais agressivos. Por outro lado, num país tradicionalmente católico como o nosso, inclinado portanto ao miraculismo mariânico e à santificação de mártires vitimados pelos centuriões romanos ou seus descendentes fardados, o caso da ceifeira assassinada por um guarda-republicano em Baleizão, a 19-V-1954, durante uma greve de protesto de assalariados rurais nesse insofrido Alentejo, agitado desde aos anos 40 por movimentos de massas camponesas dos latifúndios e do emprego sazonal, dispostas a rebeldias contra as autoridades e o patronato, constitui um exemplo dessa legendização dos oprimidos em luta desigual contra a Ditadura, ali mais penosa do que nos demais sectores laboriosos do país.

Desde Maio daquele ano que, pela época da ceifa do trigo, Catarina Efigénia Sabino Eufémia (1928-1954) e mais umas quantas ceifeiras foram reclamar ao feitor da propriedade um aumento de dois escudos por jorna para a apanha da fava. Nesta altura, os camponeses já reclamavam 50$00 para a jorna dos homens e 32$00 para as mulheres, tanto mais que o jornal clandestino O Camponês, editado desde 1947 pelo PCP, incentivava as reivindicações dos assalariados rurais. Este protesto das catorze mulheres atemorizou o feitor, que pediu auxílio à GNR e chamou o proprietário, Fernando Nunes Ribeiro, residente em Beja mas com propriedades no Monte do Olival, em Baleizão. Escolhida pelas colegas de trabalho ao apresentar ao tenente da Guarda a sua reclamação de “trabalho e pão”, o que valeu uma bofetada que a atirou ao chão. Tendo então ela dito “Já agora mate-me!”, o tenente Carrajola abateu-a com três tiros da sua pistola-metralhadora, numa altura em que a camponesa tinha um filho nos braços. A ceifeira faleceria poucos minutos depois, sendo encontrada pelo seu patrão, entretanto chegado, numa poça de sangue, sendo Catarina transportada para o hospital de Beja, onde morreria. O enterro da ceifeira realizou-se às escondidas, sendo, além do mais, antecipado em relação à hora anunciada, mas o povo acorreu ao local com gritos de protesto, não no cemitério de Baleizão mas no de Quintos, terra do seu marido, António Joaquim do Carmo, cantoneiro das estradas. Só após 1974 seria Baleizão a sua sepultura. Alguns dos camponeses que se tinham manifestado no enterro seriam condenados a penas de 2 anos de prisão, embora suspensas. Quanto ao tenente Carrajola, o guarda-republicano assassino, seria transferido para Aljustrel, nunca chegando a ser condenado pelo seu homicídio, vindo a falecer em 1964. O PCP, além de alegar que Catarina Eufémia seria militante deste partido, afirmação veiculada pelos seus órgãos clandestinos de imprensa desde 1963, fez dela uma lenda que teve projecção não só política mas ainda literária, já que alguns poetas, entre eles José Carlos Ary dos Santos - antigo premiado em jogos florais da Mocidade Portuguesa e depois filiado no PCP, transformando-se então em vociferante bardo da revolução marxista -, a cantaria como “Trança de trigo roxo / Catarina morrendo alpendurada / No alto duma foice / Soror Mariana viva assassinada”. Por seu lado, a poetisa católica e também anti-salazarista Sophia de Mello Breyner referiria no seu poema a alegada, embora duvidosa, condição de grávida no momento do seu assassinato. A estes poemas há que somar uma outra poesia, esta de Vicente Campinas, musicado por Zeca Afonso, em edição do Natal de 1971, ou seja, ainda durante a vigência da ditadura, agora marcelista.

Quanto à sua mitificação política ou santificação post-mortem, além de um monumento tumular da iniciativa da UDP (União Democrática Popular), que o PCP destruiria em 1976, o martírio de Catarina Eufémia seria reivindicado não só pelo PCP como pela UDP, criada após o 25 de Abril, embora seja pouco credível a sua filiação no partido de Álvaro Cunhal. Os seus filhos militariam na UDP. Por fim, no tocante ao pormenor se estar ou não grávida quando a mataram – a tal “patada da besta” de que falava Sophia no seu poema seu sobre a morte de Humberto Delgado, também abatido pelo despotismo salazarista -, o depoimento do médico legista que fez a autópsia aponta para a negativa. Na iconografia, o seu caso seria ilustrado por José Dias Coelho, ele também assassinado pela repressão salazarista.
 
 
 
João Medina





[1] Sobre o caso Sara de Matos veja-se a análise que lhe faz António de Araújo na sua obra intitulada Jesuítas e Antijesuítas no Portugal Republicano, Lisboa, Roma Editora, 2004, pp.107-109, com uma bibliografia na nota 482 da p.108, Entre os panfletos que abordam o caso Sara de Matos numa perspectiva antijesuítica, estão as Cartas vermelhas ao Rei e ao Povo contra o Jesuitismo e pela República (1910) de Henrique de Carvalho e ainda A Confissão, de Fernão Botto-Machado (Lisboa, 1908).

2 comentários:

  1. sister Colette e o Convento das Trinas do Mocambo. onde fica o limite do acesso às fontes, quem o quer e quem não o quer?

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  2. “FAZ HOJE 20 ANNOS SARAH/ QUE DEIXASTE DE EXISTIR VÍCTIMA/ D”UM ABOMINÁVEL CRIME!/ HÁ 20 ANNOS QUE MÃOS PIEDOSAS AQUI VEEM EM ROMARIA/ JUNGAR DE FLORES A TUA CAMPA COMO PREITO DE SAUDADE/ MAS ESTE ANNO É O MAIS SOLEMNE POR SER O DA TUA GLORIFICAÇÃO/ SIM! JÁ FORAM EXPULSOS OS JESUÍTAS! E COMO TRIUMPHO AOS TEUS MARTYRIOS AQUI TE DEPOMOS/ DESCANÇA EM PAZ! ESTÁ VINGADA A TUA MORTE!/ DOS TEUS IRMÃOS CÉLLIA E REYNALDO.”

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