segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Os universos da crítica.

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Disraeli, Teixeira-Gomes, Leopold Senghor, Vaclav Havel, o que entre eles há de comum foi terem sido escritores e estadistas, com sortes e estros diferentes em ambas as matérias. Haverá decerto mais exemplos capazes de provar a compatibilidade entre o romanesco e a política, e não necessariamente do calibre de Leonid Brejnev que em 1979 granjeou o Prémio Lenine de Literatura, proporcionando uma anedota: Brejnev perguntou aos membros do Politburo se tinham gostado das suas memórias; como todos se prostraram em elogios, concluiu: “se são assim tão boas também tenho que as ler.”

Agora do que não há grande memória é de ter havido muitos críticos literários cuja obra os tenha impulsionado às altas esferas do Estado, tomando decisões de vida ou morte sobre os seus concidadãos por via das suas aptidões analíticas no domínio das letras. Assim de repente, recorde-se um caso, trata-se de um nome assaz obscuro para a maioria dos coevos e tão-só vagamente reminiscente para a minoria que ainda se lembre e seja capaz de retirar sentido histórico à expressão “Bando dos Quatro”. Sim, é o enigmático, veemente, intimidador e diminuto Yao Wenyiuan, que em seu tempo de glória era sobejamente temido pelo epíteto de “o cacete”.

 

Yao Wenyuan em ação
 
 
Em 1965 Wenyuan saiu da obscuridade ao escrever uma crítica a uma peça que já estava em cena há 4 anos na Ópera de Pequim, ou seja, com mais atraso que as críticas do nosso “Expresso”. Este artigo, com o exemplarmente humilde e académico nome “Acerca da nova ópera histórica de Beijing ‘Hai Rui demitido do seu cargo’”, publicado no formidável Wenhui bao de Xangai, que à época tirava a bagatela de 1,8 milhões de exemplares, comprovou por extenso uma das leis políticas de Mao Zedong: “uma só centelha pode incendiar toda a pradaria”.

O libreto da ópera tinha sido escrita por Wu Han, reputado historiador, figura destacada do partido e nº 2 na vereação de Pequim – um figurão do regime. Escudado num episódio histórico, talvez fosse ou talvez não fosse uma codificada e irónica alegoria a Mao, mas foi isso que Yao Wenyuan disse que era: “não uma flor fragrante mas uma erva daninha”, concluindo que “se não limparmos este veneno, ele acabará por infetar a causa do povo.”

Hoje é escusado tentar separar a perspicácia crítica da paranoia política, porque sem descurar os seus créditos, o nosso Yao corroborava a denúncia com um impecável pedigree revolucionário: o seu pai era o reputado Yao Pengzi de quem herdara o facho da atividade crítica literária e fundador do movimento “Escritores Pela Pureza Proletária” do qual o filho se tornara figura de destaque. Rezam as crónicas que a prosa de Yao Wenyuan era chatíssima e só com muita relutância e outra tanta influência política o Diário do Povo de Beijing a publicou na secção de ensaios académicos. Ou seja, ali estava mais uma peça crítica condenada ao oblívio, como lamentavelmente sucede com a maior parte delas, até as da Sra. Clara Ferreira Alves.

Sucedeu, no entanto que quem exultou com o panfleto de Yao Wenyuan foi Jian Qing, a companheira do Grande Timoneiro, a “cadela do Presidente Mao, que mordia onde ele mandava morder” como se autodefiniu mais tarde aquando do seu julgamento, no único momento de risada geral nesse lúgubre episódio. Quem sabe se em conversas de travesseiro a esposa convenceu o marido de que as “ervas daninhas” haviam infestado o Partido de cima para baixo e que havia que expurgá-las por essa mesma ordem – e como fazê-lo?



Jiang Qing brilhando à luz do pensamento de Mao

Li Songsong, Wave, 2002
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Olhando para trás, para os primórdios do leninismo e, mais tarde, do estalinismo, o que se via era o laborioso Comissário Jadnov permanentemente ocupado em depurar o pecado por via da eliminação do pecador. A superior inteligência dialética de JIan Qin e do diligente Yao Wenyuan não tardou em verificar que o método além de moroso era subjetivo. O pecador era ele próprio um resultado de algo mais profundo e geral, que à luz do materialismo histórico só poderia ser uma sociedade pecaminosa. Por isso couraçados no livrinho vermelho e numa “visão crítica” – acessível apenas aos mestres dessa arte – propuseram-se desencadear o que veio a ser a famosa e famigerada Grande Revolução Cultural Proletária.

A grandiosa operação consistia em libertar a explosivas energias proletárias das massas, de maneira a que fossem desmascarados os dirigentes burocratas, acomodados, cúpidos e aburguesados que tinham usurpado o Partido e, concomitantemente, traído o socialismo.

Ora as massas proletárias eram na verdade os estudantes, que na sua candura juvenil constituíam a vanguarda esclarecida dos novos valores. Ei-los que deveriam organizar-se numa tropa de choque, como Guardas Vermelhos da pureza revolucionária. Talvez um leninista mais recalcitrante pudesse objetar que havia qualquer coisa de ideologicamente desconforme nisto de colocar os estudantes (categoria que não pertencia a nenhuma classe social segundo o cânone marxista) na vanguarda do proletariado (rezavam os livros que era a única classe, organizada no seu partido, capaz de conduzir a revolução). Mas à época só aos sorumbáticos dirigentes da “Cortina de Ferro”, sobretudo os da pungente RDA, ocorreu proferir tímidos reparos a tal contradição, o que foi meio caminho andado para não serem escutados.





Grande Revolução Cultural Proletária, as massas e os líderes



Xangai foi o epicentro deste maremoto que derramado por toda a China, devastou qualquer resquício de autoridade, de tradição, de dúvida e, já agora de sensatez. Yao Wenyuan, diziam as más línguas (“a mordedura de uma cobra cura-se com o veneno da própria cobra”, não sendo um provérbio chinês, não só parece como vem a propósito), não passava de um mandarete de Jian Qing, precisamente nativa de Xangai, onde tinha os seus grandes apoios. Entre eles contava-se nada menos que Zhang Chungqiao, o fundador e líder da Comuna de Xangai e emérito dinamizador da Revolução Cultural. O Bando dos Quatro completava-se com o jovem Wang Hongwen, um operário siderúrgico, também ele de Xangai, cujo mérito foi ter sido o autor do primeiro cartaz de crítica, apontado ao diretor da sua fábrica, com a consequente expulsão deste e a imediata ascensão de Wang ao Comité Central.

De 1966 até 1976, nunca a democracia de base teve tanto esplendor. As aulas nas universidades foram suspensas para que os estudantes pudessem participar livremente nas sessões de crítica e autocrítica promovidas por todos os recantos do Império do Meio; mais lhe era facultado, por decreto pessoal de Mao Zedong, circular livre e gratuitamente para onde quisessem de comboio, camioneta ou avião, de modo encherem os estádios em que tais sessões decorriam. Do que se passou sobram poucos registos, mas há pouco tempo foram reveladas as fotos que Li Zhensheng mantivera em segredo, constituindo um precioso acervo dos acontecimentos na cidade de Harbin, em nada discrepantes do que ocorreu em qualquer outro lugar.
 
 
O Comité Provincial do PCC em Harbin,
denunciado durante a Grande Revolução Cultural Proletária
 

Wang Yilun, Secretário Provincial do PCC em Harbin, Agosto de 1966
 

Jornalistas do diário Heilongjian denunciando um quadro do PCC

 

- fotos de Li Zhengsheng -
 

Além do mais que possa provocar repulsa, uma característica é verdadeiramente avassaladora, tão estranha como inédita, neste circo de crueldade. Os desgraçados que aqui vemos submetidos a tais vexames públicos de maneira passiva e estoica, não eram dissidentes, marginais, oposicionistas, relapsos, gente clandestina ou das sombras; eram dirigentes do Estado, comunistas de velha guarda do Partido, tantos deles protagonistas da Longa Marcha. Desorientados com a falta de diretivas e sedentos de agradar a Mao Zedong, entregavam-se voluntariamente aos Guardas Vermelhos e deixavam-se imolar sem um queixume. O próprio Presidente da República Liu Shaoqi foi alvo de tão funestas atenções acabando por morrer na prisão de maneira ignóbil e brutal e a sua mulher Wang Guangmei foi passeada nas ruas com um colar de bolas de ping-pong a gozar com o de pérolas que usara numa visita de Estado a Jakarta e com a saia rachada das concubinas.



Última foto de Lio Shaoqi, Presidente da RPC




Wang Gaungmei (2ª à dir.) em Djakarta com o vestido fatídico
 

Wang Guangmei exibida com colar e vestido trocista


Wang Gaungmei criticada pelos estudantes da Universidade de Tsingua
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Entretanto o nosso “Cacete”, já promovido ao Comité Central e introduzido no estreito círculo dos dirigentes máximos da Revolução, perseverou com o frenesim dos iluminados a sua obra crítica. De tal modo que ao atingir a quantia de 100 escritores desmascarados, dos quais muitos malharam com os ossos em remotos campos de trabalho, Yao Wenyuan celebrou efusivamente o feito – a cultura que ele pusera em marcha atingia o climax.

À Europa chegaram esparsos e escassos ecos destas evoluções, mas os suficientes para que os estudantes de Nanterre e da Sorbonne aclamassem a Grande Revolução Cultural Proletária como uma utopia realizada. Que liberdade maravilhosa a de poder cuspir na cara dos maîtres-à-penser da república tão enfatuados com as suas façanhas da Resistência, que exaltante ato de higiene revolucionária o derrube de todos os símbolos do glorioso passado da França jacobina. Tiveram a sua oportunidade na primavera do ano seguinte, em 1968, e Sartre cavalgou essa onda com emulações de Mao, um olho nas cargas dos CRS e outro no cadáver ainda fresco de Che Guevara.








Que repercussões teve isto em Portugal? À época quase nenhumas, pois a tampa do Estado Novo não levantou, nem com Marcelo Caetano, e o susto foi longínquo. Mas 10 anos depois, em 1975, ou seja, quando finalmente estas questões ficaram na ordem do dia no seio da esquerda rotundamente marxista-leninista, o saudoso cinema Universal (que depois, o tempora o moraes, se veio a transformar no Rock Rendez-Vous e a seguir em nada) exibiu com garbo e militância o filme “O destacamento vermelho feminino”. Sucedia que antes do genérico inicial vinha à tela um cartão em que se agradecia ao PCP (m-l) do renegado (Eduíno) Vilar a disponibilidade da fita, mensagem que dava azo a uns 15 minutos de algazarra dentro da sala, com os MRPPs aos uivos de um lado, os UDPs à cuspidelas lá de cima do balcão e outros m-ls sortidos expelindo imprecações soezes, tais como: “sociais fascistas!”, “as massas vos darão um corretivo exemplar!”, “traidores!”, “Viva Enver Hoxha!”. Havendo troca de sopapos e tabefes como chegou a haver, as luzes acendiam-se, a projeção interrompia-se e o arrumador que também era bilheteiro e projecionista, acudia à bulha a mandar-nos todos à merda que não estava para aturar isto, querem lá ver…! Reposta a legalidade burguesa, a unanimidade era alcançada com arrebatada ovação à legenda “um filme produzido na República Popular da China”. Vão lá perguntar aos professores Crato e Espada ou ao Sr. Barroso se não foi assim, que eles logo vos dirão.
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“The gang is all there” no funeral de Mao Zedong em 1976 (Yao Wenyuan é o 4ª à dir.)
 
A mesma foto publicada no ano seguinte…
 
 
Lenine teve um Jadnov, Estaline um Beria, Mao não chegou a ter um Yao porque tinha uma Jiang Qing, tão bailarina quanto esquerdista, tão vingativa quanto uma Agripina. Mas em 1976, logo após a morte de Mao, a revolução ruiu como um castelo de cartas e Yao Wenyuan de permeio com os outros três camaradas, agora sob o labéu de Bando dos Quatro, foi sequestrado à entrada de uma reunião do Comité Central, depois arrecadado preventivamente numa cadeia e por fim levado à barra, num julgamento transmitido pela televisão. Não havia perigo de repercussões pois as massas populares vieram para a rua dançar ao saberem da sua detenção. Ao cabo de tantos artigos críticos, Yao Wenyuan terá verificado que não foram os suficientes para educar o proletariado e extirpar-lhe os defeitos burgueses.
 
 
 
 

Cartazes de 1977 denunciando o Bando dos Quatro
 

Curiosamente a justiça da RPC, não sendo famosa pela sua doçura, tratou o Bando dos Quatro com inesperada condescendência. Começou por condená-los à morte, para não destoar da tradição imperial, quer a antiga quer a moderna, mas em vez de os liquidar sumariamente, comutou as penas em prisão perpétua.



Yao Wenyuan durante o julgamento do bando dos Quatro

 
Yao Wenyuan foi o derradeiro sobrevivente, tendo passado com a máxima discrição os últimos nove anos da sua vida em Xangai, livre mas impedido de comunicar, mirrado e curvado pela tuberculose, sempre envergando a característica indumentária dos seus tempos áureos, o paletó e as calças de sarja cinzenta. Diz-se que estava a escrever um livro e ainda hoje há quem secretamente procure o seu mítico diário, ao que consta iniciado aos 15 anos de idade.
Pois aqui fica, para proveito e exemplo das novas e vivas massas, parte delas sedenta de justiça manual, o que pode um crítico, para mais literário, quando alcandorado às aras do poder, quase absoluto – Yao Wenyuan, o purificador cultural, o mentor radical, o impetuoso retificador dos vícios da sociedade, o idealista de um novo mundo, enfim, que mais dizer senão um simples crítico?
 
 
José Navarro de Andrade
 
 

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