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Disraeli, Teixeira-Gomes, Leopold
Senghor, Vaclav Havel, o que entre eles há de comum foi terem sido escritores e
estadistas, com sortes e estros diferentes em ambas as matérias. Haverá decerto
mais exemplos capazes de provar a compatibilidade entre o romanesco e a
política, e não necessariamente do calibre de Leonid Brejnev que em 1979
granjeou o Prémio Lenine de Literatura, proporcionando uma anedota: Brejnev
perguntou aos membros do Politburo se tinham gostado das suas memórias; como
todos se prostraram em elogios, concluiu: “se são assim tão boas também tenho
que as ler.”
Agora do que não há grande memória é
de ter havido muitos críticos literários cuja obra os tenha impulsionado às
altas esferas do Estado, tomando decisões de vida ou morte sobre os seus
concidadãos por via das suas aptidões analíticas no domínio das letras. Assim
de repente, recorde-se um caso, trata-se de um nome assaz obscuro para a
maioria dos coevos e tão-só vagamente reminiscente para a minoria que ainda se
lembre e seja capaz de retirar sentido histórico à expressão “Bando dos Quatro”.
Sim, é o enigmático, veemente, intimidador e diminuto Yao Wenyiuan, que em seu
tempo de glória era sobejamente temido pelo epíteto de “o cacete”.
Yao Wenyuan em ação
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Em 1965 Wenyuan saiu da obscuridade
ao escrever uma crítica a uma peça que já estava em cena há 4 anos na Ópera de
Pequim, ou seja, com mais atraso que as críticas do nosso “Expresso”. Este artigo,
com o exemplarmente humilde e académico nome “Acerca da nova ópera histórica de
Beijing ‘Hai Rui demitido do seu cargo’”, publicado no formidável Wenhui bao de
Xangai, que à época tirava a bagatela de 1,8 milhões de exemplares, comprovou
por extenso uma das leis políticas de Mao Zedong: “uma só centelha pode incendiar
toda a pradaria”.
O libreto da ópera tinha sido escrita
por Wu Han, reputado historiador, figura destacada do partido e nº 2 na
vereação de Pequim – um figurão do regime. Escudado num episódio histórico,
talvez fosse ou talvez não fosse uma codificada e irónica alegoria a Mao, mas
foi isso que Yao Wenyuan disse que era: “não uma flor fragrante mas uma erva
daninha”, concluindo que “se não limparmos este veneno, ele acabará por infetar
a causa do povo.”
Hoje é escusado tentar separar a
perspicácia crítica da paranoia política, porque sem descurar os seus créditos,
o nosso Yao corroborava a denúncia com um impecável pedigree revolucionário: o seu pai era o reputado Yao Pengzi de
quem herdara o facho da atividade crítica literária e fundador do movimento
“Escritores Pela Pureza Proletária” do qual o filho se tornara figura de
destaque. Rezam as crónicas que a prosa de Yao Wenyuan era chatíssima e só com
muita relutância e outra tanta influência política o Diário do Povo de Beijing
a publicou na secção de ensaios académicos. Ou seja, ali estava mais uma peça
crítica condenada ao oblívio, como lamentavelmente sucede com a maior parte
delas, até as da Sra. Clara Ferreira Alves.
Sucedeu, no entanto que quem exultou
com o panfleto de Yao Wenyuan foi Jian Qing, a companheira do Grande Timoneiro,
a “cadela do Presidente Mao, que mordia onde ele mandava morder” como se autodefiniu
mais tarde aquando do seu julgamento, no único momento de risada geral nesse
lúgubre episódio. Quem sabe se em conversas de travesseiro a esposa convenceu o
marido de que as “ervas daninhas” haviam infestado o Partido de cima para baixo
e que havia que expurgá-las por essa mesma ordem – e como fazê-lo?
Jiang Qing brilhando à luz do pensamento de Mao
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Li Songsong, Wave, 2002
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Olhando para trás, para os primórdios
do leninismo e, mais tarde, do estalinismo, o que se via era o laborioso Comissário Jadnov permanentemente
ocupado em depurar o pecado por via da eliminação do pecador. A superior
inteligência dialética de JIan Qin e do diligente Yao Wenyuan não tardou em
verificar que o método além de moroso era subjetivo. O pecador era ele próprio
um resultado de algo mais profundo e geral, que à luz do materialismo histórico
só poderia ser uma sociedade pecaminosa. Por isso couraçados no livrinho
vermelho e numa “visão crítica” – acessível apenas aos mestres dessa arte –
propuseram-se desencadear o que veio a ser a famosa e famigerada Grande
Revolução Cultural Proletária.
A grandiosa operação consistia em
libertar a explosivas energias proletárias das massas, de maneira a que fossem
desmascarados os dirigentes burocratas, acomodados, cúpidos e aburguesados que
tinham usurpado o Partido e, concomitantemente, traído o socialismo.
Ora as massas proletárias eram na
verdade os estudantes, que na sua candura juvenil constituíam a vanguarda
esclarecida dos novos valores. Ei-los que deveriam organizar-se numa tropa de choque,
como Guardas Vermelhos da pureza revolucionária. Talvez um leninista mais
recalcitrante pudesse objetar que havia qualquer coisa de ideologicamente
desconforme nisto de colocar os estudantes (categoria que não pertencia a
nenhuma classe social segundo o cânone marxista) na vanguarda do proletariado (rezavam
os livros que era a única classe, organizada no seu partido, capaz de conduzir
a revolução). Mas à época só aos sorumbáticos dirigentes da “Cortina de Ferro”,
sobretudo os da pungente RDA, ocorreu proferir tímidos reparos a tal
contradição, o que foi meio caminho andado para não serem escutados.
Grande Revolução Cultural Proletária, as massas e os líderes
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Xangai foi o epicentro deste maremoto
que derramado por toda a China, devastou qualquer resquício de autoridade, de
tradição, de dúvida e, já agora de sensatez. Yao Wenyuan, diziam as más línguas
(“a mordedura de uma cobra cura-se com o veneno da própria cobra”, não sendo um
provérbio chinês, não só parece como vem a propósito), não passava de um
mandarete de Jian Qing, precisamente nativa de Xangai, onde tinha os seus
grandes apoios. Entre eles contava-se nada menos que Zhang Chungqiao, o
fundador e líder da Comuna de Xangai e emérito dinamizador da Revolução
Cultural. O Bando dos Quatro completava-se com o jovem Wang Hongwen, um
operário siderúrgico, também ele de Xangai, cujo mérito foi ter sido o autor do
primeiro cartaz de crítica, apontado ao diretor da sua fábrica, com a
consequente expulsão deste e a imediata ascensão de Wang ao Comité Central.
De 1966 até 1976, nunca a democracia
de base teve tanto esplendor. As aulas nas universidades foram suspensas para
que os estudantes pudessem participar livremente nas sessões de crítica e
autocrítica promovidas por todos os recantos do Império do Meio; mais lhe era
facultado, por decreto pessoal de Mao Zedong, circular livre e gratuitamente
para onde quisessem de comboio, camioneta ou avião, de modo encherem os
estádios em que tais sessões decorriam. Do que se passou sobram poucos
registos, mas há pouco tempo foram reveladas as fotos que Li Zhensheng mantivera em segredo,
constituindo um precioso acervo dos acontecimentos na cidade de Harbin, em nada
discrepantes do que ocorreu em qualquer outro lugar.
O Comité Provincial do PCC em Harbin,
denunciado durante
a Grande Revolução Cultural Proletária
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Wang
Yilun, Secretário Provincial do PCC em Harbin, Agosto de 1966
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Jornalistas
do diário Heilongjian denunciando um quadro do PCC
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fotos de Li Zhengsheng -
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Além do mais que possa provocar
repulsa, uma característica é verdadeiramente avassaladora, tão estranha como
inédita, neste circo de crueldade. Os desgraçados que aqui vemos submetidos a
tais vexames públicos de maneira passiva e estoica, não eram dissidentes,
marginais, oposicionistas, relapsos, gente clandestina ou das sombras; eram
dirigentes do Estado, comunistas de velha guarda do Partido, tantos deles
protagonistas da Longa Marcha. Desorientados com a falta de diretivas e
sedentos de agradar a Mao Zedong, entregavam-se voluntariamente aos Guardas
Vermelhos e deixavam-se imolar sem um queixume. O próprio Presidente da
República Liu Shaoqi foi alvo de tão funestas atenções acabando por morrer na
prisão de maneira ignóbil e brutal e a sua mulher Wang Guangmei foi passeada
nas ruas com um colar de bolas de ping-pong a gozar com o de pérolas que usara
numa visita de Estado a Jakarta e com a saia rachada das concubinas.
Última foto de Lio Shaoqi, Presidente da RPC
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Wang
Gaungmei (2ª à dir.) em Djakarta com o vestido fatídico
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Wang
Guangmei exibida com colar e vestido trocista
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Wang
Gaungmei criticada pelos estudantes da Universidade de Tsingua
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Entretanto o nosso “Cacete”, já
promovido ao Comité Central e introduzido no estreito círculo dos dirigentes
máximos da Revolução, perseverou com o frenesim dos iluminados a sua obra
crítica. De tal modo que ao atingir a quantia de 100 escritores desmascarados,
dos quais muitos malharam com os ossos em remotos campos de trabalho, Yao
Wenyuan celebrou efusivamente o feito – a cultura que ele pusera em marcha
atingia o climax.
À Europa chegaram esparsos e escassos
ecos destas evoluções, mas os suficientes para que os estudantes de Nanterre e
da Sorbonne aclamassem a Grande Revolução Cultural Proletária como uma utopia
realizada. Que liberdade maravilhosa a de poder cuspir na cara dos
maîtres-à-penser da república tão enfatuados com as suas façanhas da
Resistência, que exaltante ato de higiene revolucionária o derrube de todos os
símbolos do glorioso passado da França jacobina. Tiveram a sua oportunidade na
primavera do ano seguinte, em 1968, e Sartre cavalgou essa onda com emulações
de Mao, um olho nas cargas dos CRS e outro no cadáver ainda fresco de Che
Guevara.
Que repercussões teve isto em
Portugal? À época quase nenhumas, pois a tampa do Estado Novo não levantou, nem
com Marcelo Caetano, e o susto foi longínquo. Mas 10 anos depois, em 1975, ou
seja, quando finalmente estas questões ficaram na ordem do dia no seio da esquerda
rotundamente marxista-leninista, o saudoso cinema Universal (que depois, o tempora o moraes, se veio a
transformar no Rock Rendez-Vous e a seguir em nada) exibiu com garbo e militância
o filme “O destacamento vermelho feminino”. Sucedia que antes do genérico
inicial vinha à tela um cartão em que se agradecia ao PCP (m-l) do renegado
(Eduíno) Vilar a disponibilidade da fita, mensagem que dava azo a uns 15
minutos de algazarra dentro da sala, com os MRPPs aos uivos de um lado, os UDPs
à cuspidelas lá de cima do balcão e outros m-ls sortidos expelindo imprecações
soezes, tais como: “sociais fascistas!”, “as massas vos darão um corretivo
exemplar!”, “traidores!”, “Viva Enver Hoxha!”. Havendo troca de sopapos e
tabefes como chegou a haver, as luzes acendiam-se, a projeção interrompia-se e
o arrumador que também era bilheteiro e projecionista, acudia à bulha a
mandar-nos todos à merda que não estava para aturar isto, querem lá ver…!
Reposta a legalidade burguesa, a unanimidade era alcançada com arrebatada ovação
à legenda “um filme produzido na República Popular da China”. Vão lá perguntar
aos professores Crato e Espada ou ao Sr. Barroso se não foi assim, que eles
logo vos dirão.
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“The
gang is all there” no funeral de Mao Zedong em 1976 (Yao Wenyuan é o 4ª à dir.)
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A mesma foto publicada no ano seguinte…
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Lenine teve um Jadnov, Estaline um
Beria, Mao não chegou a ter um Yao porque tinha uma Jiang Qing, tão bailarina
quanto esquerdista, tão vingativa quanto uma Agripina. Mas em 1976, logo após a
morte de Mao, a revolução ruiu como um castelo de cartas e Yao Wenyuan de
permeio com os outros três camaradas, agora sob o labéu de Bando dos Quatro, foi
sequestrado à entrada de uma reunião do Comité Central, depois arrecadado
preventivamente numa cadeia e por fim levado à barra, num julgamento
transmitido pela televisão. Não havia perigo de repercussões pois as massas
populares vieram para a rua dançar ao saberem da sua detenção. Ao cabo de
tantos artigos críticos, Yao Wenyuan terá verificado que não foram os suficientes
para educar o proletariado e extirpar-lhe os defeitos burgueses.
Curiosamente a justiça da RPC, não
sendo famosa pela sua doçura, tratou o Bando dos Quatro com inesperada
condescendência. Começou por condená-los à morte, para não destoar da tradição
imperial, quer a antiga quer a moderna, mas em vez de os liquidar sumariamente,
comutou as penas em prisão perpétua.
Yao Wenyuan foi o derradeiro
sobrevivente, tendo passado com a máxima discrição os últimos nove anos da sua
vida em Xangai, livre mas impedido de comunicar, mirrado e curvado pela
tuberculose, sempre envergando a característica indumentária dos seus tempos
áureos, o paletó e as calças de sarja cinzenta. Diz-se que estava a escrever um
livro e ainda hoje há quem secretamente procure o seu mítico diário, ao que
consta iniciado aos 15 anos de idade.
Pois aqui fica, para proveito e
exemplo das novas e vivas massas, parte delas sedenta de justiça manual, o que
pode um crítico, para mais literário, quando alcandorado às aras do poder,
quase absoluto – Yao Wenyuan, o purificador cultural, o mentor radical, o
impetuoso retificador dos vícios da sociedade, o idealista de um novo mundo,
enfim, que mais dizer senão um simples crítico?
José Navarro de Andrade
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