domingo, 7 de outubro de 2012

Uma oportunidade perdida.

.
.
.
 
Marc Chagall (1887-1985)
 
 
Quem há vinte anos entrasse para uma universidade em Portugal teria ao seu dispor uma forte equipa de especialistas em torno das culturas e das civilizações antigas. As religiões do Egipto, da Suméria, da Babilónia e de Canaã não seriam nada de estranho a um aluno de uma licenciatura em História. Corriam tempos em que a academia lucrava com o êxodo dos seminaristas que tivera lugar nas décadas de sessenta e de setenta, constituindo, nos oitenta e nos noventa, uma elite humanista de forte formação filosófica e linguística que em muito veio fortalecer os departamentos de Línguas e Culturas Clássicas, de Filosofia, e, claro, de História.

De facto, como tem toda a lógica que tenha acontecido, as universidades públicas, em plena fase de expansão, integraram muita dessa mão-de-obra altamente especializada, que eram os formandos das universidades para onde o universo católico enviava as suas elites, especialmente em Roma e Jerusalém. Assim, Portugal chegou a ter, ao mesmo tempo, biblistas nas principais universidades nacionais: Universidade de Lisboa, Universidade do Porto, Universidade de Coimbra e Universidade Nova de Lisboa.

Nas ditas décadas de oitenta e de noventa, Portugal parecia querer pôr fim a longos séculos em que se afastara dos conhecimentos do “Mundo da Bíblia”, expressão de definição de contexto cultural que tão frequentemente usa José Augusto Ramos para caracterizar o universo onde nasceu esse texto de que civilizacionalmente somos todos herdeiros, sejamos religiosos, ou não.

Mas José Augusto Ramos é apenas o pretexto para esta reflexão. Acabado de ultrapassar o limite de idade da carreira docente, ele é o mais novo de uma geração de académicos formados em línguas e culturas semitas, especialmente no hebraico bíblico. O grupo era largo e marcou culturalmente este pequeno país, habituado a pouco cultivar o conhecimento pela Antiguidade: Manuel Augusto Rodrigues foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, desde 1963 até 2004, tendo estudado em Roma e em Jerusalém. António Augusto Tavares, foi professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa até final dos anos noventa, tendo feito a sua formação também em instituições dessas duas cidades. Percurso semelhante, pelas “geografias do saber”, mas juntando passagens de especialização pelo mundo germânico, teve José Nunes Carreira, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, até 2004. Na Universidade do Porto, o beneditino Geraldo Coelho Dias, também formado nas mesmas cidades, foi professor até ao mesmo ano. Por fim, José Augusto Ramos, com percurso semelhante, a que juntou formação em Espanha e em França, foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, até este ano lectivo que agora termina, tendo atingido o limite de idade.

Acrescentemos ainda, o dominicano Francolino Gonçalves, recentemente galardoado com o Prémio Pedro Hispano, que pela mesma altura foi subdirector da prestigiada Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém – por onde os nomes anteriores passaram como alunos –, e que colaborou regularmente com a Universidade de Lisboa em cursos de Mestrado.

Portugal, que se devia afirmar como herdeiro de toda uma tradição histórica e cultural onde a cultura bíblica, judia e cristã, têm um lugar imenso, deixa passar ao lado uma oportunidade soberana e soberba de alterar quatro séculos de atraso e de preconceitos que, no limite, se vão enraizar na Inquisição e numa cimentada incapacidade de olhar para o “outro”.

Durante mais de vinte anos, no tempo de um quarto de século, Portugal teve à sua disposição um grupo de especialistas altamente bem formados, ao nível do que de melhor havia na Europa. Hoje, jubilado todo este grupo, a não ser através do assiriólogo Francisco Caramelo, na Universidade Nova de Lisboa – que muitas vezes trabalha cultural e linguisticamente o hebraísmo , os Estudos Bíblicos desapareceram das universidades públicas portuguesas.

A partir deste ano, quem quiser, por exemplo, aprender hebraico, terá que ir para o campo confessional, para os cursos não académicos da comunidade judaica, ou para a Universidade Católica, ou, em termos não confessionais, para a Universidade Lusófona onde Paulo Mendes, baptista brasileiro, continua a leccionar, apesar da sua idade e frágil saúde.

Sempre centrada numa visão nacionalista de História, a universidade não soube, não se lembrou, ou achou secundário, fortalecer e criar “escola” com base nesta plêiade de sábios.

Neste ano, perdemos todos. Quem com eles teve aulas, sabe que perdemos um saber único, uma dimensão que qualquer sociedade moderna e aberta deve ter.

Que bela oportunidade se perdeu.

 

Paulo Mendes Pinto

1 comentário:

  1. O artigo está, a meu ver, incompleto. Quem deixou afinal passar a oportunidade? As universidades por não fazerem contratos com novos professores nestas áreas? Ou não há discípulos destes professores que podiam dar continuidade?

    ResponderEliminar