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Quem há vinte anos entrasse para uma
universidade em Portugal teria ao seu dispor uma forte equipa de especialistas
em torno das culturas e das civilizações antigas. As religiões do Egipto, da
Suméria, da Babilónia e de Canaã não seriam nada de estranho a um aluno de uma
licenciatura em História. Corriam tempos em que a academia lucrava com o êxodo
dos seminaristas que tivera lugar nas décadas de sessenta e de setenta,
constituindo, nos oitenta e nos noventa, uma elite humanista de forte formação
filosófica e linguística que em muito veio fortalecer os departamentos de
Línguas e Culturas Clássicas, de Filosofia, e, claro, de História.
De facto, como tem toda a lógica que tenha
acontecido, as universidades públicas, em plena fase de expansão, integraram
muita dessa mão-de-obra altamente especializada, que eram os formandos das
universidades para onde o universo católico enviava as suas elites,
especialmente em Roma e Jerusalém. Assim, Portugal chegou a ter, ao mesmo
tempo, biblistas nas principais universidades nacionais: Universidade de
Lisboa, Universidade do Porto, Universidade de Coimbra e Universidade Nova de
Lisboa.
Nas ditas décadas de oitenta e de noventa,
Portugal parecia querer pôr fim a longos séculos em que se afastara dos
conhecimentos do “Mundo da Bíblia”, expressão de definição de contexto cultural
que tão frequentemente usa José Augusto Ramos para caracterizar o universo onde
nasceu esse texto de que civilizacionalmente somos todos herdeiros, sejamos
religiosos, ou não.
Mas José Augusto Ramos é apenas o pretexto
para esta reflexão. Acabado de ultrapassar o limite de idade da carreira
docente, ele é o mais novo de uma geração de académicos formados em línguas e
culturas semitas, especialmente no hebraico bíblico. O grupo era largo e marcou
culturalmente este pequeno país, habituado a pouco cultivar o conhecimento pela
Antiguidade: Manuel Augusto Rodrigues foi
professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, desde 1963 até
2004, tendo estudado em Roma e em Jerusalém. António Augusto Tavares, foi professor na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa até final dos anos
noventa, tendo feito a sua formação também em instituições dessas duas cidades.
Percurso semelhante, pelas “geografias do saber”, mas juntando passagens de especialização
pelo mundo germânico, teve José Nunes Carreira, professor na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, até 2004. Na Universidade do Porto, o beneditino Geraldo
Coelho Dias, também formado nas mesmas cidades, foi professor até ao mesmo ano.
Por fim, José Augusto Ramos, com percurso semelhante, a que juntou formação em
Espanha e em França, foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, até este ano lectivo que agora termina, tendo atingido o limite de
idade.
Acrescentemos
ainda, o dominicano Francolino Gonçalves,
recentemente galardoado com o Prémio Pedro Hispano, que pela mesma altura foi
subdirector da prestigiada Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém –
por onde os nomes anteriores passaram como alunos –, e que colaborou
regularmente com a Universidade de Lisboa em cursos de Mestrado.
Portugal, que se devia afirmar como herdeiro
de toda uma tradição histórica e cultural onde a cultura bíblica, judia e
cristã, têm um lugar imenso, deixa passar ao lado uma oportunidade soberana e
soberba de alterar quatro séculos de atraso e de preconceitos que, no limite,
se vão enraizar na Inquisição e numa cimentada incapacidade de olhar para o
“outro”.
Durante mais de vinte anos, no tempo de um
quarto de século, Portugal teve à sua disposição um grupo de especialistas
altamente bem formados, ao nível do que de melhor havia na Europa. Hoje,
jubilado todo este grupo, a não ser através do assiriólogo Francisco Caramelo,
na Universidade Nova de Lisboa – que muitas vezes trabalha cultural e
linguisticamente o hebraísmo –, os
Estudos Bíblicos desapareceram das universidades públicas portuguesas.
A partir deste ano, quem quiser, por exemplo,
aprender hebraico, terá que ir para o campo confessional, para os cursos não
académicos da comunidade judaica, ou para a Universidade Católica, ou, em
termos não confessionais, para a Universidade Lusófona onde Paulo Mendes,
baptista brasileiro, continua a leccionar, apesar da sua idade e frágil saúde.
Sempre centrada numa visão nacionalista de
História, a universidade não soube, não se lembrou, ou achou secundário,
fortalecer e criar “escola” com base nesta plêiade de sábios.
Neste ano, perdemos todos. Quem com eles teve
aulas, sabe que perdemos um saber único, uma dimensão que qualquer sociedade
moderna e aberta deve ter.
Que bela oportunidade se perdeu.
Paulo Mendes Pinto
O artigo está, a meu ver, incompleto. Quem deixou afinal passar a oportunidade? As universidades por não fazerem contratos com novos professores nestas áreas? Ou não há discípulos destes professores que podiam dar continuidade?
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