Michel Vieuchange
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Michel Vieuchange: ver Smara e morrer
Em Setembro de 1930, Michel Vieuchange, um jovem francês, partiu para a misteriosa cidade interdita, Smara. Envergava a indumentária de uma mulher berbere, para poder esconder os traços ocidentais. Parece que até arrancou um dente de ouro, porque este o podia denunciar. Como não conhecia bem a localização de Smara, nem falava árabe ou berbere, era acompanhado por guias locais, de quem sempre desconfiou.
A certo ponto, vítima do sol abrasador e temendo ser descoberto, tem de seguir viagem dentro de uma alcofa, no dorso de um camelo. Terá Michel Vieucange inspirado Hergé em Carvão no Porão, em que Tintin e Haddock se disfarçam de mulheres?
Recordo-me de ouvir falar de um jornalista americano que quis entrar no Afeganistão dos talibãs e que teve a ideia de usar uma burka, para ocultar a sua pele branquinha e o cabelo ruivo. Foi logo apanhado e executado. O bruto não contou com o facto de serem relativamente raras as mulheres afegãs com ... um metro e noventa de altura.
Michel Vieuchange, muito debilitado, ainda atingiu as muralhas de Smara, e ali permaneceu apenas três horas, errando por entre as ruínas.
"J´ai vu tes deux kasbas et la mosquée en ruines. Je t´ai vue tout intière posée sur ton socle, face au désert, désert, dans le silence, sous l´ardent soleil."
Teve de regressar muito doente, demorando um mês a calcorrear o deserto até chegar à zona francesa, de onde foi evacuado por avião. Morreu em Agadir, com o irmão mais novo, Jean Joseph Marie Vieuchange, à sua cabeceira.
Michel Vieuchange poderá ter sido um daqueles jovens da geração do pós-guerra, niilistas e enfastiados, que teorizavam sobre os actos gratuitos ou sobre o heroísmo, inspirados à vez em Gide e em Malraux, com laivos de Nietzsche.
Cumprira o serviço militar no Marrocos que Lyautey abrira aos franceses. Mas naquele sul tão arredio, os rebeldes ainda dominavam – chamava-se-lhe “a zona dos dissidentes”. A sua base seria a mítica cidade de Smara, cuja evocação fascinava o jovem Michel. Mal terminou o serviço militar, decidiu organizar a sua própria expedição nesse território desconhecido e letal.
Sobre Smara tinha-se forjado uma lenda fabulosa, disseminada pelos nómadas que percorriam o deserto. Era a cidade nunca tocada, nem maculada, por pés europeus. Uma fortaleza inalcançável.
Mas, em boa verdade, Smara era apenas a povoação do deserto a partir da qual, em 1888, um personagem extraordinário, Ma-El-Ainin, grande chefe político, religioso e militar, tinha conseguido unir todos os guerreiros do Sahara Ocidental. Meio mago, meio profeta, encantava os que o escutavam e que logo se decidiam a segui-lo incondicionalmente. Foi ele que, no meio da areia, começou a construir junto a alguns poços do deserto o que pensava ser uma residência pessoal e que se transformou numa povoação nascida do nada, que as caravanas de camelos entreviam, sem nela poder entrar.
"Tu est bien l´oeuvre d´un homme, de Ma el Ainin au sommet de sa puissance. Comme s´il êut voulu étonner les nomades comme par chose miraculeuse. Il donna une mosquée à ces hommes qui errant dans le Sahara n´avaient jusqu´à ce jour prié que dans le vent du matin et du soir."
Sendo uma comunidade unida por um iluminado, quando este morre, em 1910, Smara despovoa-se. Mas o abandono apenas a torna ainda mais misteriosa. Michel, filho de família (Nevers, 1904), sonhador, licenciado em letras e fascinado pelos clássicos gregos, assistente de realização de Abel Gance no grande épico Napoléon (1927), constrói o seu mito: ele quer, acima de tudo, ver Smara, ver a cidade interdita e ser o primeiro europeu a penetrar nas suas muralhas e surpreender os seus segredos. Basta isso para cumprir o destino.
No deserto, escreve:
"Cette nuit, je suis resté longtemps avant de m´éndormir. Ai beaucoup pensé à Smara particulièrement. Cela m´apparaissait indispensable de réussir. Je me sens prêt à tout..."
Obcecado, místico, encontrava na lenda de Smara a meta para os seus sonhos de superação heróica:
Nous marchons vers toi comme des ravisseurs.
Nous marchons vers toi aussi comme des pénitents.
Et nous dirons à l´ami ou à celle qui nous interpellera sur le chemin: Je ne vous connais pas.
Nous marchons vers ce qui jusqu´au bords
Remplira l´aube,
Qui la rendra si purifiée.
Toutes les sources ensuite seront belles.
Et il nous sera permis de boire.
Esperava tanto do final desta prova:
"Smara fini, je le sens, nos jeunesses seront accomplies, nous entrerons dans un autre âge."
Quis, conseguiu. Não foi mais além, mas atingiu o seu fim. Disse-o Paul Claudel, no prefácio aos carnets de route de Michel Vieuchange: "Lui seul comprend ce qu´il a fait, il a rempli sa destinée, il a fourni d´un seul coup ce qu´on attendait de lui, le plus pur de son sang, la moelle de son intelligence et de sa volonté."
E fê-lo dando-se todo:
"Mais jamais amant n´a couru au rendez-vous accordé par sa maîtresse d´un coeur plus impétueux et plus abandonné que ce jeune homme (...) n´a desiré cet endroit sur la carte au milieu de solitudes inhumaines où d´imperceptibles italiques forment les deux syllabes: Smara."
Jean, o irmão, parecia destinado a seguir o fim de Michel. À última hora, seguindo o conselho de Caïd Haddou, líder tribal local, decidiu-se que Jean ficaria para trás, para poder organizar uma missão de salvamento caso Michel ficasse doente, sofresse algum acidente ou fosse capturado e transformado em refém. Jean bem tentou. Regressado a França, editou os carnets de route de Michel, sob o título Smara, chez les dissidents du Sud marocain et du Rio de Oro (Plon, Paris, 1932).
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Jean tornou-se um investigador médico famoso, no Institut Pasteur, como microbiólogo. Veio a falecer apenas em 2003, com noventa e sete anos, setenta e três anos depois da morte do irmão.
Em 15 de Julho de 1934, a companhia de camelos do exército espanhol do capitão Galo Bullón dirige-se a Smara, tendo sido cordialmente recebida por um filho de Ma-El-Ainin. A bandeira espanhola é içada nas muralhas de uma cidade abandonada. Em 1954 já era um destino turístico modesto, sem vestígios da aura misteriosa que impeliu Michel Vieuchange. O seu nome é hoje utilizado para atrair alguns visitantes franceses a uma banal localidade do sul de Marrocos, no contestado território do Sahara Ocidental.
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Em 1998, o escritor Patrick Adam tentou reproduzir o itinerário de Michel Vieuchange e não o conseguiu, devido à situação perigosa na região e à desconfiança das autoridades militares marroquinas (Patrick Adam, De Smara à Smara, Sur les traces de Michel Vieuchange, L´Harmattan, Paris, 2006). Le Clézio também a visitou, tendo presente na memória o jovem aventureiro:
"... la cité mystique s´est changée en garnisson militaire et en centre commerçant. Peut-être subsiste-t-il quelque hose de ce passé dans la mélancolie qui s´empare du palais en ruine, le soir, quand résonne la voix du muezzin au -dessus du désert." (Le Clézio, Gens des Nuages, Stock, 1997)
Junto às ruínas do palácio de Ma-El-Ainin talvez ainda se possa encontrar vestígios do pequeno buraco em que Michel Vieuchange abrigou uma garrafa, como se fosse um náufrago no deserto. A garrafa que os soldados espanhóis descobriram em 1934. Nela, Michel depositou um manuscrito onde contava a sua história. A presença dessa singela mensagem atestava o essencial: conseguira chegar a Smara. Michel tinha medo de se perder no deserto e, com ele, a sua história. E isso era a única coisa de que tinha medo neste mundo: não ficando memória do cumprimento do seu destino ser-lhe-ia negada a glória perante os vindouros. Eis, para jovem fascinado pela Grécia antiga, o pior dos fados. Seria assim?
Não, não foi a glória. O seu era um caminho interior: medir o seu próprio valor, submetendo-se a todas as provações. Testar a resistência da sua vontade e das suas forças face a todos os sofrimentos. E, encontrando os seus limites, ser.
"Je marche. C´est mon seul but - suivre. Il n´y a plus ni jour ni nuit pour moi. Un seul besoin: atteindre. Je dormirai n´importe où, je soffrirai n´importe quoi."
No cume do sofrimento, no seu leito de morte, encontrou. O irmão Jean escutou-o:
"Michel m´ayant appelé me parla comme jamais il ne m´avait parlé. Dans sa bouche de telles paroles sont neuves! J´entends qu´il faut abandonner le plan sur lequel nous avons vécu jusque-là. Avec simplicité, il donne son adhésion totale au catholicisme, – comme Claudel, me dit-il. Et il fait venir l´aumônier."
José Luís Moura Jacinto
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