domingo, 2 de março de 2014

Um num milhão.

 
 
 

 
 
 
O último número da revista Sábado conta-nos a história extraordinária de Armando Rodrigues de Sá, numa reportagem da autoria de Nuno Tiago Pinto.

         Nascido em 1926 em Vale de Madeiros, no distrito de Viseu, casou aos 19 anos com Maria Emília Pais, na altura com 15 anos de idade. Era carpinteiro na Companhia Portuguesa de Fornos Eléctricos, tinha emprego, mas decidiu partir para Alemanha. Ao fim de uma viagem de comboio de dois dias, Armando chegou a Colónia. Sem saber porquê, chamaram o seu nome. Teve medo, pensou ser a PIDE. Os companheiros de viagem incentivaram-no a ver o que era. Eram alemães que queriam saudar a sua chegada, a chegada do imigrante 1 milhão àquele país. Houve cerimónia e saudações inesperadas. A mais perene de todas: a Associação dos Industriais da Alemanha ofereceu-lhe na altura uma mota Zündapp, com matrícula portuguesa. De um momento para o outro, e sem perceber como, Armando tornou-se uma celebridade, entrou para a História. Havia sido previamente seleccionado para o efeito, mas, para o caso de ser detido na fronteira por qualquer motivo, os alemães, sempre previdentes, tinham outro nome para o substituir. Não foi necessário. Armando Rodrigues de Sá tornou-se famoso por um acaso do destino. Os alemães queriam mostrar que a sua terra era um bom destino, atrair os portugueses que, por várias razões, tinham alguma relutância em emigrar para um país cuja língua não dominavam. A 10 de Setembro de 1964, em Colónia, Armando Rodrigues de Sá foi fotografado e a sua imagem em cima de uma Zündapp faz hoje parte de museus e manuais de História. Foi entrevistado para a televisão e para os jornais enquanto se deslocava para o seu destino de trabalho, Estugarda. Nos seis anos seguintes, passaria várias temporadas na Alemanha. Em 1970, sofreu um acidente de trabalho, esteve vários dias sem escrever para a terra – ele, que três vezes por semana escrevia cartas à sua mulher. Esta, estranhando a ausência de correspondência, consultou um bruxo, que acertou em cheio quando lhe disse: «o seu marido esteve no hospital mas já está bem. Quando chegar a casa já lá tem uma carta dele.» Era verdade.
 


 
 
 
         Armando regressou a Portugal, após o acidente de trabalho. Já na sua terra, foi-lhe diagnosticado um cancro. Ainda seria operado em Lisboa, mas acabaria por morrer em 1979, aos 53 anos de idade.
VVVVNo final da década de 90, um grupo de responsáveis pelo museu de história Contemporânea da República Federal da Alemanha comprou à viúva a histórica Zündapp, que havia sido oferecida a Armando quando chegar a Colónia. A mota está hoje num museu da Alemanha. Em Portugal, só agora se descobre a história de Armando Rodrigues de Sá, símbolo de um tempo em que mais de um milhão de portugueses emigraram. De facto, estima-se que 1,43 milhões de pessoas terão deixado o nosso país nos anos 1960-74, 40% dos quais ilegalmente. Números incríveis, tão incríveis que a década de sessenta é a única do século XX português que regista um valor negativo (-3,1%) da população residente. O economista Alfredo de Sousa contava mesmo a história segundo a qual o presidente Américo Thomaz, ao conhecer o censo populacional que dizia existirem menos residentes em Portugal em 1970 do que em 1960, opinou que o censo estaria por certo errado e que deveriam realizar outro. A emigração tinha por objecto, não raramente, trabalhadores especializados (34% dos 120.000 portugueses que emigraram em 1973), o que constituiu uma perda da já de si escassa qualificação da mão-de-obra que permanecia em Portugal, e obrigou à «importação» de imigrantes das colónias, nomeadamente de Cabo Verde.
 
 
 
 
 
         Quando hoje folheamos álbuns que retratam o «milagre económico alemão», como Wirtschaftswunder, da Taschen, devemos lembrar-nos que esse milagre não teria sido possível sem a emigração. Não foi por acaso que, em 1956, Konrad Adenauer, encontrando-se em Roma, ofereceu transporte gratuito a todos os italianos que o quisessem acompanhar para trabalharem na Alemanha. É também sintomático que, ao longo da década de sessenta, as autoridades alemãs tenham estabelecido acordos de cooperação no domínio migratório com diversos países: Grécia e Espanha (1960), Turquia (1961), Marrocos (1961), Portugal (1964), Tunísia (1964) ou Jugoslávia (1968).

         Armando Rodrigues de Sá é uma história pequenina no meio desta História grande. A sua história pequenina tem todos os ingredientes de uma grande história: o casamento numa idade hoje impensável; a viagem de dois dias para a Alemanha, numa carruagem com bancos de pau; a correspondência assídua com a família; o acidente de trabalho e a ida da mulher ao bruxo; o desfecho trágico com uma doença incurável e o destino previsível de um objecto histórico. Nos anos 60, Armando partiu porque Portugal era um país atrasado e pobre. Nos anos 90, levaram a sua mota porque o atraso ainda persiste. A vúva de Armando, ao longo dos anos, foi visitada por vários investigadores e historiadores alemães. Portugueses, quase nenhuns.
 
 
António Araújo
 
 
    
 
 
 
 
 
 
       

1 comentário:

  1. Como devia ser difícil sobreviver emigrado sem os meios de comunicação actuais. Para saber do marido a senhora foi ao bruxo, que felizmente era bom e até sabia das voltas do correio...

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