segunda-feira, 3 de março de 2014

Zarafa.

 
 
 


 
 
Num dia do Verão de 1415, o imperador da China, acompanhado de um vasto séquito, apressou-se a ir receber em Pequim um ilustre recém-chegado, trazido da longínqua Melinde. O convidado tinha, segundo uma testemunha ocular, "corpo de veado, cauda de boi, um chifre carnudo sem osso, e manchas luminosas, como uma névoa vermelha ou arroxeada. Tem um andar imponente, e observa em todos os seus movimentos um ritmo compassado". Tratava-se, evidentemente, de uma girafa destinada ao jardim zoológico da dinastia Ming. O imperador não quis mostrar um grande interesse pelo animal, mas acabou por ceder à imensa curiosidade que ele suscitava em toda a sua corte. Narrado por Felipe Fernández-Armesto no livro Milénio, este episódio, segundo o autor, é ilustrativo do interesse que os chineses tinham, desde os tempos de Kublai Cã, pelo panorama do mundo. 
 
 
 
            Mas não é deste episódio nem desta girafa que trata o livro Zarafa, obra de estreia de Michael Allin. Zarafa conta a histórica verídica do envio para a França, em 1826, de uma girafa capturada no Sudão (ou aqui). O animal era um presente de um dos mais poderosos homens de África da altura, Muhammed Ali, e destinava-se ao rei Carlos X. A oferta não era inocente: a girafa era um meio de melhorar a imagem de Muhammed Ali, vice-rei do Egipto, no seio da corte francesa, já que o seu prestígio havia sido seriamente abalado pela guerra que conduzira contra os gregos. Um dos aspectos mais interessantes do livro é o modo como Michael Allin situa esta petite histoire num contexto geoestratégico mais vasto, que nos faz compreender a verdadeira importância da oferenda do vice-rei egípcio. Michael Allin retrata, ainda que de forma muito sumária, as relações políticas e culturais existentes entre França e o Egipto e a projecção que, desde Bonaparate e Champollion, a terra dos faraós adquirira no imaginário dos franceses. 
            Girafa é um termo que deriva do árabe zerafa, uma variação fonética da expressão zarafa, que poderá ser traduzida como "encantadora" ou "adorável". O encanto das girafas é bem patente no fascínio que exerceu na corte Ming. Não admira, pois, que a longuíssima viagem da girafa destinada ao rei de França tenha sido uma epopeia recheada de peripécias, que Michael Allin conta ao pormenor, desde a sua captura nas profundezas do Nilo Azul, no Sudão, passando pela viagem de barco de Alexandria a Marselha e, por fim, a travessia por terra de Marselha a Paris. O relato de Allin só foi possível graças à sua descoberta, em Marselha, de uma caixa contendo cerca de 170 documentos: cartas, relatórios, memorandos oficiais que contavam pari passu as deambulações do animal e revelam bem o cuidado que as autoridades tiveram para garantir que a girafa chegaria a Paris em boas condições. Em França, a viagem do animal, acompanhado por um dos mais eminentes cientistas da época, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, foi seguida por multidões em alvoroço. A Europa não via um animal do género desde há cerca de 350 anos. Em Paris, a girafa foi recebida com pompa e, como não poderia deixar de ser, foi alvo de um interesse quase obsessivo, sendo reproduzida em milhares de objectos: pratos, papéis de parede, gravuras. A sociedade parisiense foi acometida de uma autêntica "zarafamania", com músicas, poemas os cenas de vaudeville. Chegou a criar-se um novo tipo de penteado à la giraffe!
 
Jacques-Laurent Agasse, A Girafa Núbia (c. 1827)

 
 
A girafa não conseguiu, no entanto, evitar a assinatura, pelas potências europeias, de um tratado contra Ali e os turcos e o envio de uma esquadra para a Grécia. O encanto da girafa marcou a sociedade parisiense, mas foi incapaz de cumprir os seus desígnios políticos e diplomáticos. Mas a "ingratidão" de Carlos X também não o iria salvar: três anos após a chegada do animal a França, o rei foi forçado a abdicar. Indiferente aos destinos dos homens, a girafa viveria tranquilamente no Jardin des Plantes, sob os cuidados de Atir, o tratador que com ela viajara desde o Egipto. Não consta que a tenham morto ou sequer esquartejado em público.
 
António Araújo
 
 
 

4 comentários:

  1. Belo texto, António. Por sinal, uma girafa é objecto de magia em A Grande Beleza :-)

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  2. Recorda os casos de outros famosos animais exóticos asiáticos e africanos, como o elefante Annone, o rinoceronte Gande e o elefante Salomão, de que falam os livros de José Saramago, A Viagem do Elefante (Caminho, 2008) e de Jorge Nascimento Rodrigues e Tessaleno Deveza, Salomão - O Elefante Diplomata (Centro Atlantico, 2008)

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    1. Sobre essa matéria, permito-me recomendar o livro «The Pope's Elephant», de Silvio Bedini, que - inexplicavelmente - nunca foi publicado em português. Sobre animais e poder, dos melhores que conheço é o de Marina Belozerskaya, «The Medici Giraffe and Other Tales of Exotic Animals and Power».
      Cordialmente,
      António Araújo

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