quinta-feira, 1 de maio de 2014

A «Contemporânea» e o modernismo.

 
 
 

 
 
Pede-me o meu amigo Álvaro de Matos que aqui diga hoje algumas palavras sobre a Contemporânea na sua relação com o modernismo.
O convite constituiu mais uma prova de amizade, e a aceitação um gesto temerário.
Não teria sido difícil encontrar quem, com autoridade, coisa que me falta neste domínio, invocasse aqui a experiência singular dessa revista. Basta pensar nos nomes de quem a tomou como objecto de estudo, aliás, qualificados nomes dos nossos estudos literários, da historiografia cultural e da imprensa literária. E só esse facto, apenas ele, justifica a temeridade do propósito da reflexão que vou partilhar com todos em mais esta iniciativa da Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Quando me foi proposto tratar da Contemporânea, confesso que pensei em outros títulos, cuja importância literária e política, se reconhece geralmente haver superando a iniciativa de Pacheco.
E não obstante, pareceu-me interessante que os organizadores deste plano de conferências, tivessem optado por lhe dar destaque, merecido destaque, a fazer jus ao tema geral do ciclo, ou não tivesse sido a Contemporânea um caso prototípico de revista a um tempo literária e política.
A edição fac-similar parcial da Contemporânea, da responsabilidade da Contexto, facilitou no início dos anos 80 o acesso ao título, até aí privilégio de bibliófilo, mas deve-se à Hemeroteca Municipal a digitalização de todos os seus números e a colocação em rede no vasto e muito rico repositório de imprensa periódica.
Aquela edição fac-similada foi acompanhada de um estudo de José Augusto França: «”Contemporânea” e os anos 20 portugueses», que constitui uma interessantíssima e torrencial análise crítica da publicação, texto de máxima referência para a sua história.
Alguns anos mais tarde o CNC, por motivo da passagem do centenário do nascimento de Almada, foi feliz ao colocar à disposição de um seleccionado conjunto de investigadores o espólio de José Pacheco, e de organizar com a colaboração de outros estudiosos, um livro a vários títulos notável: Pacheko, Almada e a “Contemporânea”, que, constituiu, nas palavras do meu Amigo Daniel Pires – um dos responsáveis dessa obra –, desde logo, uma reavaliação do papel desempenhado pela revista, que na prática acabou por ir bem mais longe, transformando-se pela riqueza da investigação – que incide também sobre a história interna da revista –, e colaborações, num documento imprescindível para a história cultural do século XX.
E é obrigatório assinalar-se o nome de Fernando Cabral Martins, estudioso da Contemporânea, que analisa no seu O Modernismo em Mário de Sá Carneiro, dedicando-lhe também atenção em estudo que destinou à edição portuguesa de Marginálias, de Ramon Gomez de la Serna, publicação da Bedeteca de Lisboa e da Assírio & Alvim, a que ainda voltarei, e que dirigiu o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, onde se encontram informações importantes sobre a revista e os seus principais colaboradores.
Como é bem sabido, a Contemporânea deu-se a conhecer através de um número espécimen, em 1915, ainda durante o governo do general Pimenta de Castro, cuja colaboração Manuel de Arriaga implorou numa carta que faz lembrar pelo tom, a que anos antes D. Carlos dirigira a João Franco com idêntica finalidade. Em Março aparecera a Orpheu recebida, como certamente os seus animadores previam, com desconsideração e escárnio.
Anunciando-se destinada a dar voz a quantos em Portugal se interessavam pela «elegância na arte e na vida» e não viravam as costas à «civilização moderna», pretendia preencher uma «deficiência do meio», organizando uma revista que «fosse rigorosamente o ponto de reunião de quantos interesses cultos entre nós» existissem. O que se visava era a «criação entre nós de um meio culto» e para isso anunciava como colaboradores «as figuras mais brilhantes e variadamente individuais das nossas modernas correntes artísticas, desde as mais simples às mais complexas – todos quantos, desde o verso até à linha, sabem servir as curiosidades cultas e os interesses aristocratizados».
E o programa, snob nos seus considerandos, marcado por um toque de imodéstia, esclarecia:
«Em Contemporânea encontrará o leitor tudo quanto posas interessar uma curiosidade elegante, desde a reportagem fotográfica escrupulosamente atenta em colher apenas o instante feliz das ocorrências, até uma colaboração literária e pictural que para sempre e deveras mostre que nada temos a invejar aos outros países se nos decidirmos a conjugar os nossos esforços e a disciplinar as nossas competências».
Se é certo que «o capricho do artista domina sempre a sua actividade; de sorte que, quando o crítico busca o significado de certa obra, tem de se remeter ao próprio autor e à obra em si», importa dizer que o número espécimen registava a direcção artística de José Pacheco, logo indicando por rigorosa ordem alfabética a colaboração de: Alfredo Pimenta, Antero de Figueiredo, António Cândido, António Carneiro, Conde de Sabugosa, Domingos Guimarães, Eugénio de Castro, Guerra Junqueiro, Jaime de Magalhães Lima, Júlio Brandão, Júlio Dantas, Luís de Magalhães, Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Teixeira Lopes e Teixeira de Pascoais.
 
Revista Contemporânea, nº 1, 1922

 
 

Afirmados que tinham sido propósitos ecléticos, confirmaram-nos, até certo ponto, os nomes anunciados.
Projecto contemporâneo, talvez; muito longe do propósito modernista, sem dúvida.
De Pacheco escreveu José Augusto França ser a mais curiosa personagem do mundo artístico lisboeta que à volta do futurismo se criou e depois andou em tentativas de sobrevivência, entre sonhos, polémicas, dívidas baratas – e doenças sem cura».
Só sete anos depois, passados 27 governos e 5 presidentes da República, a Contemporânea reapareceu, animada na circunstância pela polémica “Questão dos Novos” em que José Pacheco se envolve.
O general Pimenta de Castro vira-se afastado do poder na sequência dos acontecimentos de 14 de Maio de 1915, que colocaram o Pais em clima de guerra civil e a requisição de navios alemães surtos em portos portugueses, acabaria por espoletar a mais que previsível (e desejada por sectores influentes da política nacional) declaração de guerra da Alemanha. Sidónio Pais regressado de Berlim, onde desempenhava funções de ministro de Portugal, toma o poder em Dezembro de 1917. Bernardino Machado é destituído e colocado na fronteira. A reorientação constitucional do Estado para um modelo presidencialista e de representação corporativa gora-se quando Sidónio cai baleado mortalmente a 14 de Dezembro do ano seguinte. Durante a imprevista presidência de Canto e Castro, dá-se a restauração monárquica no Porto e a tentativa realista de Monsanto. José Relvas assume em Fevereiro de 1919 a presidência de um gabinete de concentração republicana. A instabilidade política potenciada pela limitação dos poderes presidenciais, faz o país assistir estupefacto à matança de 19 de Outubro de 1921. Desaparecem fundadores da República: Machado Santos; António Granjo; Carlos da Maia.
Na Ilustração Portuguesa, em artigo não assinado, mas atribuível a António Ferro – que havia dias assumira a direcção dessa revista com o propósito declarado de contribuir para «estilizar a raça» –, lia-se:
«O número de hoje […] é um número revolucionário, um número que não teve tempo de se arranjar, de se vestir, um número sem cor, um número sem “rouge”, um número alvoraçado que atira fotografias, como argumentos, que esquece o “baton”, que esquece a frivolidade, que se esquece de ser “magazine” para chorar, para chorar bem alto, sem receio de que venham proibir-lhe as lágrimas, a morte desses três portugueses de lei, esses três homens que cometeram o nefando crime de por as suas vidas ao serviço da Pátria».
Poucos meses passados sobre esses graves acontecimentos, foi dada à publicidade a Contemporânea.
Se já vinha de trás a incompreensão (dos “novos”) pelo cânone artístico dos salões da Sociedade Nacional de Belas Artes, a desconsideração em 1921 da obra de Eduardo Viana, fez estalar um movimento crítico que encontra eco nas páginas da Ilustração Portuguesa através da pena de António Ferro e coloca Pacheco (aliás sócio da SNBA) à testa de uma campanha que visava os chamados «consagrados». Essa campanha inseria-se numa estratégia mais ampla, qual era a de tomada de influência na Sociedade Nacional de Belas Artes, através da entrada de novos sócios. O conflito aberto acabaria por estalar em reunião da assembleia-geral da Sociedade, confrontados que foram “os novos” com uma alteração estatutária que teve a intenção de os excluir. Perdida essa batalha, nem por isso havia razão para se darem por “vencidos”. Pelo contrário, o impacto público da polémica abria uma janela de oportunidade à afirmação dos “novos”, que teve eco no comentado comício do Chiado Terrasse realizado em Novembro de 1922.
Curiosamente, já em 1909, Veiga Simões, que seria colaborador da Contemporânea, escrevera num livro sugestivamente intitulado, Nova Geração, página que importa relembrar:
«Auguste Rodin domina o seu tempo porque praticou essa coisa estranha na escultura moderna que se chama a criação pessoal através dum conceito pessoal de estética. As suas figuras são por vezes mitológicas e actuais: e entretanto nunca Rodin procurou seguir o classicismo que faz ver na figura determinado personagem de certo episódio mitológico, nem vai atrás desse realismo que o conceito burguês da arte teima em reclamar para ela».
«Como há quinhentos anos, acordando dum sono, de novo o homem acorda –, mas agora para sentir-se liberto de todas as forças humanas, liberto das próprias forças da natureza».
«A inquietação do nosso tempo é a inquietação de Rodin, trabalhando sempre em busca de certo ideal que o persegue, para no final encontrar a técnica do movimento erguendo uma forma artística material a essa altura de imaterialidade e expressão que o Balzac nos mostra. Que importa que a Academia reagisse, surpresa ante o desconcerto das proporções e da maneira externa? As figuras do artista erguiam através das suas desproporções o conjunto harmónico resultante do exagero de certas partes na mesma relação proporcional com as outras, deixando ressaltar por completo o carácter dominante da figura. Que importa que essa Societè des gens de lettres, indignada, recusasse o Balzac? Dessa estranha cabeça ala-se o romancista da Comédie Humaine, dominando-nos.
A crítica burguesa das proporções! Como se a arte tivesse apenas por fim fixar o comprimento dos braços, sacrificando a expressão total da obra a certo centímetro a mais que o autor deixou cair junto das falsas costelas!...»

 
 
 
 
 
Não cabe naturalmente nos meus propósitos “contar” a história da Contemporânea, mas é meu desejo centrar-me em duas questões e ensaiar para ela respostas que colocarei à consideração de quem me ouve.
Noto que a Contemporânea inscreve no seu primeiro número de Maio de 1922, antes de tudo o mais, como registo que não pode deixar de considera-se intencionalmente prioritário, a declaração de que o director da revista [José Pacheco] propusera em assembleia geral da Sociedade Nacional de Belas Artes realizada dias antes a fundação da Sociedade dos Amigos de Espanha e como sócio honorário o Conde de Romanones, presidente da Sociedade dos Amigos de Portugal.
Com esta declaração que terminava significativamente com quatro exclamações: «Pela Sociedade dos Amigos de Espanha!; Pela Sociedade dos Amigos de Portugal!, Por Portugal! Por Espanha!», a Contemporânea afirmava inequivocamente, e como verdadeiro registo programático, a sua espanofilia. Mas interrogo-me: poderá afirmar-se que a revista encerrava um qualquer projecto (político) de unidade peninsular por detrás da camaradagem “modernista” sobretudo de Almada e Ferro com Ramon Gomez de la Serna?
Logo no n.º 2, sugeria a revista o dever de os portugueses corresponderem ao entusiasmo e simpatia com que o povo espanhol os acolhia, pelo que perguntavam se seria muito dar a uma praça de Lisboa o nome de Cervantes, registando ainda o projecto do Diário de Notícias de, com organização de Magalhães Lima, reunir um Congresso Jornalístico Luso-Hispânico. Mas nesse número da revista estaria reservado a António Sardinha tratar do Pan-Hispanismo. Nesse texto, o autor considera um «equívoco secular», que mal já resistia ao «exame da inteligência», fora responsável por se ter vincado «um longo e doloroso divórcio entre as duas prestigiosas pátrias da Península». E propunha que se escutassem bem «as vozes profundas» da tradição, para se ver «que as lutas de Portugal com Castela são lutas de família, que em família sempre se resolveram». Mas Sardinha não deixava de apontar um «engano»: o de supor-se que a unidade moral duma civilização que tem na Península o seu berço original, exigia «uma consequente unidade política», e propunha que Espanha e Portugal executassem um plano de acção, constituindo-se como verdadeiro laço de união entre a Europa e a América e África. No entender de António Sardinha devia opor-se, como primeiro passo, o peninsularismo ao que considerava «desacreditado iberismo», que dizia, de marca «maçónica e revolucionária». O segundo passo seria o pan-hispanismo, avaliado como revestindo «significado actualíssimo», o qual surgia como «conclusão lógica», constituído por dois elementos estruturais: o espanholismo e o lusitanismo, de modo a opor-se ao pan-americanismo. Sobre a fórmula política – dir-se-ia hoje – a arquitectura política desse projecto, Sardinha não adiantou ideias, convidando Portugal, pela sua parte, a reorganizar-se como nação forte, e a estreitar «os vínculos da sua amizade» com Espanha e com o Brasil, para que se abrissem as pétalas do «internacionalismo hispânico».
O tema não era novo entre os versados pelo autor, que se exilara em Espanha depois do naufrágio da restauração monárquica, em 1919, e aí criara um círculo de relações, onde pontuavam personalidades da direita monárquica, contra-revolucionária – caso de Vasquez de Mella; o duque de Maura e os marqueses de Quintanar e Lozoya  e o mais heterodoxo Ramiro de Maesztu (todos prefaciadores de edições de A Questão Peninsular) – orientação essa sobre a questão peninsular que foi sempre marcada pela pulsão anexionista. E sendo assim, não deixa de ser significativo, que já em Maio de 1920, Sardinha escrevesse em Madrid, que caminhavam no melhor terreno os propósitos de «aproximação peninsular», pois que, explicava, «as “direitas” dos dois países, que o sejam verdadeiramente por afinidade e por doutrina não tardarão a encontrar-se numa grande festa comum – alicerce para outros empreendimentos de mais larga significação»…


António Sardinha

 
 
No mesmo número da Contemporânea, Rogelio Buendía, poeta e prosador de vasta produção literária, assinava “Cancion de España a Portugal”, composição poética assinalavelmente sintonizada com o discurso de Sardinha.
Conforme logo foi reconhecido, passara a ser voz corrente que a Contemporânea estava vendida a Espanha, havendo sido reclamada mudança de «atitude». Em resposta aos contestatários da direcção da revista, ficou registado:
 
«Mais inteligência e mais sinceridade! Esfarrapem de vez o papão de Castela, porque a Espanha de hoje, se por um erro político pensasse em invadir-nos, não pensava decerto em dominar-nos».
Martinho Nobre de Melo ocupou-se também das relações luso-espanholas, e colocava a questão sobre o necessário prisma jurídico: a dúvida residia em saber se se trataria de um tratado comercial bilateral ou antes de lançar as bases de «um vastíssimo sistema de entente luso-hispano-americana».
Tal como Sardinha, refutava o iberismo, uma mentira desfeita, nas suas palavras, lembrando as conferências da Liga Naval sobre a questão ibérica, que o integralismo tinha reunido em 1914 e citava Reclus como argumento de autoridade a favor da «doutrina separatista». Ficando a possibilidade de um arranjo económico, a Nobre de Melo, parecia-lhe inconveniente; ressuscitar-se-ia sob o aspecto económico e financeiro o iberismo através da absorção pacífica de Portugal, pelo que ficava apenas como solução explorar um quadro de solidariedade económica luso-hispânica. Outra face do problema era o da comparticipação de Portugal e Espanha numa vasta comunidade de ideias e de interesses com as nações latinas da América. Mas também aí sublinhava um problema. Nada poderia ser feito sem «um entendimento completo e prévio entre Portugal e o Brasil».
Desencontrava-se, assim, Nobre de Melo de António Sardinha quanto à resposta política a dar questão por este levada às páginas da Contemporânea.
Alfredo Pimenta não deixaria também de comentar o livro de Sardinha, A Aliança Peninsular (1924), que contribuiu para consagrar o seu autor, aos olhos de Ramiro de Maeztu, como «um dos grandes profetas da Hispanidade». Do livro escreveu Pimenta ser «infeliz, histórica e portuguesmente considerado», e mais, «perigoso, não tanto pelo que diz como pelo que facilita que se diga».
A Contemporânea iria manter-se-ia fiel às directrizes do seu apostolado “peninsularista”.



Ramon Gómez de la Serna, 1928

 
E para isso em muito contribuiu a personalidade de Ramon Gomez de la Serna, o qual justifica uma referência muito especial, ou não tivesse sido primeira figura do modernismo espanhol, que nas páginas da revista Prometeo, fundada por seu pai e depois por ele dirigida, recepcionara Marinetti, o qual aí assinou em 1910 a “Proclama futurista a los españoles”.
         Mas Ramon Gomez de la Serna, assumiria um papel de relevo muito particular na criação da ambiência modernista em Portugal, pela afeição que o ligava ao nosso país, que visitou pela primeira vez em 1915, do que daria magnífica notícia na Contemporânea, Augusto D’Esaguy.
 
 

 
 

Da mesma geração de Almada, uns anos mais velho que Ferro, foi com ambos que estreitou mais forte relação, mas também com José Pacheco, o que explica que tenha sido o orador principal no banquete de homenagem a Pacheco, onde também discursou Rogerio Garcia Perez.
Nessa ocasião, Ramon Gomez de la Serna sublinhou a sua amizade por António Ferro que em 1923 lhe prefacia A Ruiva. Seis anos mais tarde, será Ramon a prefaciar a edição definitiva da novela Leviana, onde reflecte sobre a sua concepção de arte:
«El arte es lo inconcebible, lo inconstante, lo improbado. Conservemos siempre nuestra estética en plena incerteza y reforma […] Solo el azar artístico es agradable y definitivo y solo en el hay placer y se pude encontrar algun atisbo de libertad imperecedora».
Nesse prefácio, Ramon Gomez de la Serna alude à ironia da dedicatória impressa por Ferro no seu Teoria da Indiferença, obra, em estilo próximo ao da sua Greguerías, ambos os autores, acrobatas de frases e de ideias.
As relações de cumplicidade intelectual, estética e interventiva de Ramón e Ferro, talvez possam ter contribuído para que aquele tivesse escolhido o Estoril para seu refúgio, seu e da sua companheira sentimental Cármen de Burgos (Colombine), numa casa aberta sobre o oceano a que deu o nome de “El Ventanal”.


Almada Negreiros
 

 
Tal como privou intimamente com Ferro, Ramon Gomez de la Serna, fez de Almada um seu amigo, acolhendo-o em Madrid.
          Na Gaceta Literária – fundada em Madrid por outra figura singularíssima, Ernesto Gimenez Caballero –, haveria de escrever em 1927:
«Almada Negreiros es el ser impar en medio de la pintura y de la literatura portuguesa, sobre las que salta de trapecio en trapecio».
A proximidade e influência de Ramon Gomez de la Serna, que se tornou um interlocutor da “novíssima geração” pode bem ter sido decisiva na afirmação da Contemporânea como um espaço de diálogo e mútuo conhecimento, não só peninsular, mas de ambição ibero-americana, que justificaram terem sido depois escolhidos subtítulos para a revista, assim: Portugal, Ibero-Americanismo, Arte, e depois, Portugal, Brasil, Ibero-Americanismo, Arte.
Essa orientação da Contemporânea teve tradução num projectado “Concurso de Peças Teatrais em I Acto abrangendo Portugal e Espanha”, cujo regulamento previa que fossem premiadas duas peças, uma de cada nacionalidade, que seriam representadas em Portugal, Espanha, Brasil e Argentina.
Mas não só: Celestino Soares, comentou a política ibero-americana, sustentando uma perspectiva crítica do pan-americanismo, e a resistência a ele, através do reforço do bloco ibero-americano, que, defendia, devia passar a pesar na Comunidade das Nações como «bloco único». E considerou oportuno lembra que fora o reaparecimento da Contemporânea que permitira encetar, «no campo das letras e por forma ponderável, a apresentação, lado a lado, dos intelectuais do mundo ibérico».
A atestar a importância dada pela revista à problemática ibero-americana, a Contemporânea publicou conferências de dois professores de Direito da Universidade de São Paulo, Noé Azevedo e Spencer Vampré, defensores de uma confederação luso-brasileira, como primeira etapa da criação de um bloco, influente no plano internacional, luso-hispano-americano.
 
E, colheu até a revista depoimentos sobre o ibero-americanismo, de figuras como Bettencourt-Rodrigues, Afonso Lopes Vieira, Augusto de Castro, de Mendes Cabeçadas e de Gomes da Costa – ao tempo, este, instalado no palácio de Belém, num momento em que desaparecera já do mundo dos vivos António Sardinha, cujo pensamento, porém não deixou de integrar os depoimentos, através de citações várias do seu livro Aliança Peninsular.
A vocação ibérica da Contemporânea, espelha-se nas suas páginas, onde se exprimiram, entre outros, também, José Frances, novelista, dramaturgo e crítico de arte espanhol e Adriano del Valle, fundador da revista Grécia, de Sevilha, iniciadora do movimento ultraísta.
Do mesmo modo o pintor, Daniel Vasquez Diaz, sobretudo retratista, influenciado por Renoir, Cézanne, Gauguin, que expôs em Lisboa, em iniciativa da Contemporânea, apresentou-se a Portugal na revista.
De Juan de Contreras y Lopez de Ayala, marquês de Lozoya, historiador, crítico de arte, que viria a ser durante o franquismo e por largos anos, director geral de belas artes, publicou a revista a composição poética: “El Monasterio” dedicada a António Sardinha.
E vários outros nomes de Espanha: Antonio Rey Soto e o marquês de Quintanar e conde Santibanez del Rio
Também de ibero-americanos: os cubanos António Iraizoz e Eduíno Mora, à época diplomatas colocados em Lisboa, o primeiro autor de uma vastíssima obra literária, e de investigação histórica, que haveria de ser embaixador do seu País em Madrid em 1952, dado como amigo da Espanha franquista. E o mexicano Jose Frias.
E entre os brasileiros, figuras com a importância de Oswald de Andrade, do qual a revista arquivou uma interessantíssima carta por ele dirigida a António Ferro, um “ponto de situação”, cheio de interesse sobre a arte e a literaturas novas no Brasil, e também sobre Portugal, com uma curiosa alusão ao modernismo de Aquilino. Do Brasil, igualmente Tarsila do Amaral, pintora da «vanguarda independente», no dizer de Oswald, a quem Ferro dedicou um belíssimo texto quando a Contemporânea se aproximava do fim.
A segunda reflexão que proponho prende-se com o que, sem pretender antecipar conclusões, eu designaria o paradoxo neo-integralista da Contemporânea.
Como assinalou Fernando Cabral Martins, a Contemporânea «obedece ao espírito modernista mas irá tentar compreender escolas tão díspares como o Integralismo ou o Saudosismo». Deixando de lado o saudosismo, perguntamo-nos sobre a compatibilidade entre, por um lado, a utopia regressiva do integralismo, tradicionalista na sua essência, e, por outro, o apelo modernista da Contemporânea, assinalável desde logo nas palavras preliminares de Afonso de Bragança, em texto intitulado: “Carta a um Esteta”, assim:
«Ah! meu caro amigo! Não sabe você o trabalho que dá esta coisa simples – viver a própria vida. Todos nós, de há muitas gerações para cá, vimos para o mundo sem nos desligarmos da vida que nos precedeu. Esquecemo-nos todos, artisticamente – de cortar o cordão umbilical. A minha geração está realizando esse trabalho»
Ou mais adiante:
«Vê você porque não é «contemporâneo»? […] Você vive a olhar para traz, esquecido de si e do tempo e do espaço que rola à sua volta, do mundo de Beleza nova, movediça, crepitante, estuante e viril, que gira em torno de si. Ou se vê, espera. Espera, como aquele ébrio, que ao ver andar as casas à roda tirou a chave do bolso para abrir a porta, quando passasse a sua…
Mas, meu caro amigo, o que passou não volta mais. Quer isto dizer que o Passado para Nós não existe? Existe. Mas como ponto de referência para sabermos exactamente onde estamos».
 



Em 1915 o número espécimen da Contemporânea não iludira a sua simpatia política pela ditadura de Pimenta de Castro. Num texto curto de dez linhas, “Na Política e nas Igrejas”, em página de “Actualidades”, com registo fotográfico cujas legendas são relevantíssimas de conteúdo político, lê-se:
«Pode dizer-se que a Política e a Igreja, até aqui malavindas, têm entrado, ultimamente, num campo de reconciliação e de mútuas concessões. E assim, enquanto a Semana Santa nos trouxe a certeza de que a fé religiosa aumenta, pejando as igrejas de fieis, as manifestações de simpatia ao governo, têm por seu turno, provado que, em volta do Sr. Pimenta de Castro, não tem também deixado de crescer a fé dos que crêem nas soluções da sua política, e pejam as ruas a aclamá-la».
As soluções da política de Pimenta de Castro, assentaram desde a sua designação como chefe do governo na alegada observância de um “programa” da responsabilidade do presidente Arriaga.
Sendo discutível no plano constitucional a designação de Pimenta de Castro, a orientação do seu executivo caracterizou-se por visar politicamente o partido democrático de Afonso Costa. Encerrando o parlamento pela força armada, o governo que agia à margem da Constituição passou a governar contra ela. O período que decorre entre 25 de Janeiro e 14 de Maio de 1915, que foi o da duração do gabinete Pimenta de Castro, é de reorientação total da política interna sobretudo em relação aos monárquicos – que viram regressar a Lisboa, Paiva Couceiro, abrangido por uma polémica amnistia –e se reorganizaram, usufruindo a imprensa realista de total liberdade de publicação e circulação. Também no domínio das relações do Estado com a igreja católica, a acção do governo se fez sentir, sobretudo através da política do ministro da Justiça que desconsiderou a aplicação de certas normas da lei de separação do Estado das igrejas, sobretudo as mais directamente relacionadas com as “cultuais”.
Compreende-se que esse quadro político tivesse suscitado a simpatia da revista que incluiu entre os seus primeiros colaboradores António Sardinha, Hipólito Raposo, Vasco de Carvalho, de filiação integralista. E foi naturalmente significativo que as obras de Antero de Figueiredo e de Sardinha, respectivamente Doida de Amor e Valor da Raça, tenham estado entre as logo objecto de recensão na revista.
Tendo em consideração o programa da Contemporânea, dado a conhecer em 1915, e sobretudo o conteúdo do número espécimen, não perturba o envolvimento no projecto daquelas personalidades integralistas.
Reaparecida a publicação em 1922, melhor entrando em publicação a Contemporânea, a verdade é que a publicação, sem que tenha expressamente procedido à adequação do programa originário, (re) orientou-se no plano editorial no sentido de afirmar a sua “estilo” contemporâneo, também no grafismo.


Pessoa, por Almada
 
 
 
Não se tratou apenas, naturalmente, da mensagem preliminar de Afonso de Bragança, mas da entrada em cena redactorial de Fernando Pessoa, com “O Banqueiro Anarchista”; de Almada com a “Histoire du Portugal par Coeur” – consagrado logo como o grande ilustrador da Contemporânea –, de António Botto, e de Mário de Sá Carneiro, de quem o director da publicação fora intimo amigo e publicava agora «Do Livro de Versos Deixado Inédito […]», “Poemas de Paris”.
Logo no segundo número da Contemporânea, António Sardinha juntava-se aos colaboradores da revista, por sinal coincidindo com Judith Teixeira que ofereceu para utilizar as palavras de José Augusto França, um «sonetilho […] acabando em “orgias de morfina”, subpoesia da época a que Pacheco não resistia». E pela primeira vez aparecia o nome de Raul Leal que entregou à revista as palavras ditas no comício do Chiado Terrasse, a par do de João Ameal – que se associava assim, e só uma vez, ao projecto de Pacheco –, e de Mário Saa, com o perturbador “Mario O Inculto”, onde escrevia:
«Ser novo é sepultar o Passado; o contrário é ser velho, é ser o próprio Lázaro ressuscitado; é ser Lázaro e toda a miséria de Lázaro».
E também António Ferro, com um fragmento da “Arte de Bem Morrer”, conferência a realizar no Rio de Janeiro, e Homem Christo Filho em diálogo com Rachilde [Marguerite Eymery] – mulher de François Vallette, director da Mercure de France –, sua amiga e protectora parisiense, juntamente com a “Conferência cubista sobre a esquizofrenia”. de Corpus Barga [pseudónimo de Andrés Gomez de la Serna, tio de Ramón] e Vergílio Correia que cuidou da ausência de historiografia da arte em Portugal.
Fernanda de Castro registou nas suas memórias a viagem ao Brasil em 1922, onde por sinal casou, apadrinhados por Gago Coutinho, com António Ferro por então mobilizado na apresentação da sua peça teatral “Mar Alto”, que correu em São Paulo e no Rio – e haveria de criar burburinho em Lisboa, no ano seguinte –, e em conferências. Além da já referida, também “A Idade do Jazz-band”, lidas ambas em digressão triunfal pelo Brasil, com acolhimento de Oswald de Andrade, que Fernanda de Castro (igualmente colaboradora da Contemporânea) diria ser doido, completamente doido, apesar de tudo, diferente do seu marido que considerava, apenas, atrevido e ousado.
De Oswald, considerado como o primeiro “importador” do futurismo no Brasil, haveria de dizer o escritor e diplomata [um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922] José Graça Aranha, na Academia Brasileira de Letras, onde expôs sobre “O Espírito Moderno”, que o seu espírito estava «sôfrego de demolição e construção» [1]. 
“António Botto e o ideal estético em Portugal” de Fernando Pessoa constituiu o texto central do terceiro número da Contemporânea, no qual entra também colaboração de Veiga Simões; de novo de Almada, de Mário de Saa, Botto e de Sardinha, e pela primeira vez de Alfredo Pimenta – com “Soneto da Decadência” –, o qual só voltará a colaborar no n.º 13 da revista, com um texto sobre Amadis.
De entre os integralistas, Luís Almeida Braga colabora também, apenas uma vez, no n.º 7, assim como Alberto de Monsaraz e Afonso Lopes Vieira.
António Sardinha, é, de entre todos, o que deixa colaboração mais numerosa na revista.
E a par de outros nomes da direita ideológica, ressaltam os de Martinho Nobre de Melo e de João de Castro Osório, por sinal duas figuras que acalentaram pretensões de chefia política.
Ao abrir-se à colaboração continuada de personalidades ideologicamente tão marcadas, a revista situou-se politicamente, no que terá constituído uma opção de Pacheco que José Augusto França, no entanto, essencialmente desvaloriza, por não identificar «um corpo ideológico definido no seu pensamento por natureza divagante, de idealista em dificuldades de quotidiano», justificando-a, antes, pela posição mundana e «snobismo aristocrático» do director da Contemporânea.
Na verdade só um quadro de indefinição ideológica de Pacheco pode explicar que por um lado tenha pretendido afirmar na revista os valores estéticos do modernismo – convocando para o efeito, entre outros, os nomes de Marinetti e de Ramon Gomez de la Serna –, e, por outro, acolhesse nela, como aconteceu, o núcleo duro do integralismo lusitano, mesmo que sobretudo como colaboradores meramente literários. Mas convirá não esquecer que nas páginas da Contemporânea, não se regatearam elogios a Sardinha; João Ameal e Luís de Almeida Braga, registando-se o primeiro como «historiador, poeta e ensaísta», que apesar da sua «intransigência histórica e dos seu ódio aos judeus» – assim mesmo escrito no 1.º Suplemento de março de 1925 – a Espanha seleccionara entre os «modernos poetas portugueses».
Na Alma Portugueza, primeiro periódico do integralismo, publicado em Lovaina em 1913, Luís de Almeida Braga declarara a sua preferência pela filosofia anti-intelectualista, defendendo a «Arte pela Vida» contra o que considerou ser a «monstruosa teoria da Arte pela Arte».
Por sinal, António Ferro haveria de escrever na Teoria da Indiferença:
«A Vida é-me indiferente. Só a Arte me interessa por ser diferente da Vida».
Diferentemente, Fernando Pessoa, confrontado com a questão, começaria por confessar a Armando Côrtes-Rodrigues, estar confrontado com «um conflito entre as partes superficiais e estéticas» do seu «ser de alma, e outras partes religiosas e profundas dele», para em carta posterior, de 19 de Janeiro de 1915, declarar reconhecer em Côrtes-Rodrigues, «um espírito religioso», e nesse sentido capaz de o compreender, e confessou-lhe a sua crise, assim:
«Dos que de perto me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da terrível importância, da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade».
A ideia central do integralista Luís Almeida Braga, era a de que a regeneração artística do país só podia fazer-se pelo culto da tradição e do amor da pátria, sendo esta a ideia geradora que haveria de dar consciência ao pensamento contemporâneo.
E sobre o modernismo João Ameal escreveu em As Directrizes da Nova Geração, citando F. Jean-Desthieux, que o moderno, a maior parte das vezes era o estranho, o bárbaro. E referindo-se à sua geração notou que a «barbárie moderna» exercia uma «fascinadora sedução do ineditismo, da decoração e da sensualidade». Em seu entender não era possível definir o modernismo, podendo, quando muito, apontar-se dele, «alguns sintomas nítidos». Os resultados traduziam-se, nas suas palavras, «em desvios psicológicos, em aberrações sensoriais, em depravações requintadas, em superficialidades cenográficas – numa palavra, em anarquismo mental, paralisando e esterilizando a força criadora». Era então necessário “acabar” com o «preconceito modernista», julgado «o pior de todos os preconceitos». Sendo uma ficção, não incarnava o modernismo uma doutrina nem exprimia uma orientação, tratava-se de uma «tabuleta de cabotinos e tarados».
Os integralistas, assumidos nostálgicos da Idade Média, imaginavam que o mundo lhe pedisse: «o poderoso e completo modelo duma ordem total, eficaz». Não se tratava de «voltar ao passado», mas de reintegração na linha de avanço humano aceitando do passado o que se mostrara de substância eterna. Um «pessimismo entusiástico», como, quem sabe se com ironia, definiu Maeztu o integralismo lusitano.
O insuspeito Fidelino de Figueiredo haveria de notar que o sentimento verdadeiramente inspirador do integralismo era o «desânimo das democracias» e que a ideia fundamental constituía no regresso às antigas base das sociedades, a tradição e a autoridade.
Faziam portanto «tábua rasa de mais de um século de história pátria, acordando serodiamente o paradoxo de Joseph de Maistre, tornando mais cerrado e severo o pensamento de Maurras, seu pai espiritual, como se fosse possível voltar atrás, para reviver o tempo que passou, mesmo aquele que foi mal vivido». E acrescentava em registo crítico:
«O tradicionalismo, ainda o mais sólido, falseia-se no momento em que se volve em filosofia política da imobilidade» [2].
Por sinal, Fidelino de Figueiredo referiu-se – sem os identificar – a «alguns jovens romancistas, formados já no ambiente posterior à Primeira Grande Guerra» que se haviam «deixado seduzir por tendências de moda: a superficial dispersão geográfica do entrecho, a difusão psicológica e erótica das personagens, um tom geral de diletantismo meio céptico, prematuramente céptico, todas as formas de empobrecimento contemporâneo da personalidade». Em síntese, tratava-se em sua opinião de «uma literatura fácil que desempenha a mesma função que um cigarro suave: arder e distrair». 
Também Artur Ribeiro Lopes escreveu no seu ensaio, A Inteligência na Literatura Nacional, sob o título “Os “Contemporâneos””, que a multidão e precocidade caracterizavam a vida literária portuguesa, observando que as pessoas que escreviam em Portugal eram «uma legião constituída, na maior parte, por mulheres e adolescentes».
«Todos os dias, os jornais de grande circulação anunciam o aparecimento dum grande livro do moço escritor, do jovem romancista, do novelista bizarro, do estilista nervoso, do debuchista estranho, ou então, da jovem poetisa ou da notável escritora». Mas mais, Ribeiro Lopes sugeria que se elaborava no âmago dessa legião interminável, a «fermentação de miséria e de loucura, de analfabetismo e de vaidade, de charlatanismo e de estupidez»:
«Toda a sua energia é consumada na arte de mistificar a galeria, simulando interioridades intensas, complicações patológicas, e perdem-se, e isto quanto aos melhores, numa espécie de histeria auditiva que os conduz à manipulação duma fraseologia incongruente e tão precária de sentido que parece, por vezes, estarmos lendo os monólogos dum idiota.
É a levedação de todas as ideias falsas, de todas as sensações de efeito, de todos os caprichos de linguagem, de todos os artifícios, de todos os orgulhos estéreis que caracterizaram ainda as obras dos seus progenitores […].
É a mentira dos grandes homens, levando já a sua força corrosiva até ao âmago da sociedade portuguesa, infiltrando-se na própria vida doméstica, e impondo o princípio do menino precoce não ter conseguido o quinto ano dos liceus pela simples razão de já ser um homem de génio.
São diletantes, na sua maior parte, rebuscadores, simuladores, na impossibilidade de escrever por temperamento, mentem por vaidade».
 
E Alfredo Pimenta que colaborou episodicamente com a Contemporânea, ajustou contas com o passado, desviando-se de um esboço crítico da poesia de Eugénio de Castro, para proclamar que não levava «a sério» essa «camada de poetastros que se dizem modernistas», «poetastros que a galeria da crítica fácil ou à jorna proclama génios, não passam de ridículos sensaborões, sem nada, absolutamente nada que se aproveite».
Se no plano rigorosamente ideológico não se aceita a possibilidade cooperativa com o modernismo por parte dos integralistas, a verdade é que ela se verificou, paradoxalmente, na Contemporânea. Mas tem por certo pertinência perguntarmo-nos com Cabral Martins, se efectivamente a Contemporânea não se terá inclinando «para representar e fomentar uma versão do Modernismo alheia e resistente às vanguardas – que na Europa, sem esmorecer, se desenvolviam num segundo fôlego com o Surrealismo».
NNNNÉ o que nos parece, na verdade. A falta de vertebração ideológica da sua direcção acabaria por condenar a revista à descaracterização inevitável, da qual constitui desde logo exemplo a presença integralista, como também do saudosismo, através de Pascoaes, ou do simbolismo, com Eugénio de Castro, ambos presentes no número de Natal de 1922.
E não pode deixar de se apontar, como sintomática da moderada pulsão modernista da Contemporânea, a concessão a Reinaldo dos Santos de liberdade para fazer o elogio de Eduardo Viana em crítica à arte contemporânea, que tentara em seu dizer, «com meios diferentes, menos estilo e num espírito efémero de modernismo, o que o cubismo bizantino realizara com génio». E congratulava-se o crítico com o facto de Viana não se ter deixado «contaminar» pelas extravagâncias em que degenerara a arte moderna.
E impressionou também Cabral Martins, não sem razão, que as páginas da Contemporânea se tivessem aberto a Álvaro Maia, que disse nunca se ter visto em «tamanha atarantação» para visar Pessoa a propósito de António Botto, num artigo que ficou arquivado no n.º 4 da Contemporânea sob o significativo título: “Literatura de Sodoma, O Sr. Fernando Pessoa e o ideal estético em Portugal”.
«Sequioso de ineditismo – escreveu Álvaro Pinto referindo-se a Pessoa –, pescou do justo esquecimento um livro [trata-se de Canções] sem arte nem beleza e como, nessa miséria impressa, fosse claramente feita a apologia daquelas aberrações sexuais que levaram Deus a sepultar Sodoma e Gomorra sob o dilúvio de fogo e enxofre, o sr. Fernando Pessoa, sacudiu de sobre o livro a poeira espessa que o encobria, pendurou-o nas primeiras protuberâncias lunares que se lhe antolharam, falou-nos do culto da Beleza entre os Gregos e, com toda a imponência que lhe dá a admiração que todos os novos lhe dedicam – proclamou ore rotundo, que o autor daquela escorrência literária é o único entre os portugueses a quem o título de esteta pode caber».
Por sinal, Pessoa notara que Botto se havia afastado naquela obra, «de toda a moralidade no modo porque canta a beleza física» e que igualmente «no modo por que canta o prazer», e perguntou:
«De que modo canta ele o prazer? Que modo há de cantar o prazer que, sem ser moral (porque se o fosse estaríamos fora do caso estético), se afaste da imoralidade?».
Álvaro de Campos entraria na polémica em carta dirigida a José Pacheco, para lhe observar que muitas vezes criticara Pessoa, por aquela mania que tantas vezes lhe havia censurado de julgar que as coisas se provam, e perguntando-se pelo sentido de ideal estético, dizia ter lido o livro de Botto e ter gostado dele e explicava:
 
«A arte do Botto é integralmente imoral. Não há célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não hipocrisia, uma não complicação».
E devendo concluir,
O juízo de Ramon em relação à Contemporânea foi expressivo, ao reconhecer que José Pacheco tinha conseguido que a sua revista figurasse ao lado das «revistas ultra-modernas», e sublinhou:
«Pero lo que ha hecho de más maravilloso Contemporânea y su director, su hallazgo, su apostacion al movimiento moderno del arte, su misturácion original ha sido el unir cubismo al rusticismo, el cerrar el circulo, el que de nuevo la cabeza se muerda la cola».
E acrescentou ainda, saudando Pacheco nessa ocasião memorável da história da revista:
«Lo inaudito de Contemporânea es que ha promovido la union de lo rústico y de lo ultramoderno y de la pintoresca privanza del espiritu nacional a la mas audaz de las novedades».
 
Com estas palavras, Ramon valorizava o ecletismo já notável na Contemporânea em 1923 e acabaria por caracterizar a revista ao longo de toda a sua vida, e aceitava deste modo a “via original” de Pacheco, concedendo até que a revista fosse posta ao lado das «revistas ultra-modernas».
Jorge de Sena dizia não sem razão que os conceitos em literatura o afligiam e o repugnavam pelo que neles se podia insinuar ou ser insinuado quanto a uma idealística legitimidade ou uma permanente significação.
Há sabedoria nesta precaução. E à luz dela escusamo-nos à discussão sobre se a Contemporânea foi uma revista modernista, apenas contemporânea (no sentido de ser um magazine do seu tempo) ou se porventura até, ao menos nalgumas das suas páginas, e em alguma das suas publicações (lembro A Cena de Ódio, de Almada) ela não terá sido contagiada pelo espírito de vanguarda.
Mas houve vanguarda em Portugal; o chamado “modernismo” português foi vanguardista, no sentido de ter rompido (mas ruptura absoluta, radical), com a tradição?
A perplexidade que está expressa na primeira interrogação que coloquei tem a ver com o que designei por neo-integralismo da Contemporânea, que posso talvez, até à luz das palavras ditas por Ramon Gomez de la Serna no banquete a Pacheco – e em jeito conclusivo – concluir que representou o «inaudito» da revista, correspondendo àquela «pintoresca privanza del espiritu nacional», sublinhada por Ramon. Em todo o caso pelos motivos que exprimi, paradoxal «privanza», até porque convirá não esquecer que os «novíssimos» da direita política, jovens integralistas que também foram, se encarregaram de organizar um auto de fé, com fogo e tudo, queimando obras de Raul Leal e Judith Teixeira. E que só a memória de Ferro haveria de compensar Pessoa do critério de um júri, que intimamente não se havia libertado do prejuízo intelectual e clínico de Max Nordau, e eram admiradores literários do autor da Ceia dos Cardeais, que Almada desfeiteara no ano do número espécimen da Contemporânea.
E quanto a segunda questão que suscitei, e sobre a qual tenho a intenção de continuar a reflectir, queria afirmar que devendo concluir-se em face da prova – que é a própria Contemporânea –, que não resulta (ou não nos parece resultar) dela qualquer indicação cabal, de que a revista possa ter-se movido na prossecução de qualquer finalidade política que pressupusesse a alteração do estatuto de independência dos dois estados peninsulares.
Mas esta conclusão, provisória como todas as que fazemos em história, só pode ter o sentido de valorizar, além do debate sobre o pan-hispanismo, singular das seculares desinteligências sobre o relacionamento peninsular, a experiência singular da revista na divulgação em Portugal de expressões da cultura espanhola e ibero-americana, desde logo da personalidade e obra de Gomez de la Serna, e a dos brasileiros Tarsila do Amaral e Oswaldo de Andrade.
Para esse fim contribui decisivamente, como vimos, António Sardinha, e ocorre-me que talvez possa ter constituído o seu peninsularismo, o apontamento, uma nota de modernidade, porventura a nota do seu pensamento activo. É tema a merecer reflexão.
No seu assumido e paradoxal ecletismo, a Contemporânea arquiva colaborações notáveis, a maioria de autores portugueses, demonstrando a complexidade e riqueza da nossa vida cultural dos anos 20.
Em 1925, Mendes Correia foi à sala dos capelos da Universidade de Coimbra falar sobre “A Antroplogia nas suas relações com a arte”. E aí disse palavras com as quais gostava de encerrar estas minhas considerações:
 
«Eu não ouso condenar o artista que deturpa a realidade, desde que ele não obedeça a um mero capricho cubista mas seja guiado por um grande ideal de beleza. Se os nossos olhos e o nosso cérebro nos dão um panorama euclidiano, sabe-se lá se a realidade é euclediana ou se é apenas euclediana!? E não há o direito de arrasar os palácios encantados de sonho em que vivem almas eleitas que, perante a brutalidade material, se abrasam em transcendentes ideais de emancipação moral e física».
 
Luís Bigotte Chorão
 
 
 
 
(Intervenção no Museu da República e Resistência, Ciclo Revistas Literárias, Lisboa, 24 de Abril de 2012).
 
 
 
 
 
 
 
 





[1] Oswald de Andrade haveria de “zombar” da Estética da Vida, e do postulado da “integração no cosmos” que dizia ser, com a habitual irreverência, «integração no cosmético», alusão ao facto de Graça Aranha pintar os cabelos.
[2] Fidelino de Figueiredo, As Duas Espanhas, 209
 

1 comentário:

  1. Caro Luís, o programa de 1915 da Contemporânea que você considera snob e imodesto foi redigido por Fernando Pessoa. É só uma curiosidade.
    Um abraço
    Zé Barreto

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