Pede-me o meu amigo
Álvaro de Matos que aqui diga hoje algumas palavras sobre a Contemporânea na sua relação com o
modernismo.
O convite constituiu mais
uma prova de amizade, e a aceitação um gesto temerário.
Não teria sido difícil
encontrar quem, com autoridade, coisa que me falta neste domínio, invocasse
aqui a experiência singular dessa revista. Basta pensar nos nomes de quem a
tomou como objecto de estudo, aliás, qualificados nomes dos nossos estudos
literários, da historiografia cultural e da imprensa literária. E só esse
facto, apenas ele, justifica a temeridade do propósito da reflexão que vou
partilhar com todos em mais esta iniciativa da Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Quando me foi proposto
tratar da Contemporânea, confesso que
pensei em outros títulos, cuja importância literária e política, se reconhece geralmente
haver superando a iniciativa de Pacheco.
E não obstante,
pareceu-me interessante que os organizadores deste plano de conferências,
tivessem optado por lhe dar destaque, merecido destaque, a fazer jus ao tema
geral do ciclo, ou não tivesse sido a Contemporânea
um caso prototípico de revista a um tempo literária e política.
A edição fac-similar
parcial da Contemporânea, da
responsabilidade da Contexto, facilitou no início dos anos 80 o acesso ao
título, até aí privilégio de bibliófilo, mas deve-se à Hemeroteca Municipal a
digitalização de todos os seus números e a colocação em rede no vasto e muito
rico repositório de imprensa periódica.
Aquela edição
fac-similada foi acompanhada de um estudo de José Augusto França: «”Contemporânea”
e os anos 20 portugueses», que constitui uma interessantíssima e torrencial
análise crítica da publicação, texto de máxima referência para a sua história.
Alguns anos mais tarde o
CNC, por motivo da passagem do centenário do nascimento de Almada, foi feliz ao
colocar à disposição de um seleccionado conjunto de investigadores o espólio de
José Pacheco, e de organizar com a colaboração de outros estudiosos, um livro a
vários títulos notável: Pacheko, Almada e
a “Contemporânea”, que, constituiu, nas palavras do meu Amigo Daniel Pires
– um dos responsáveis dessa obra –, desde logo, uma reavaliação do papel
desempenhado pela revista, que na prática acabou por ir bem mais longe,
transformando-se pela riqueza da investigação – que incide também sobre a
história interna da revista –, e colaborações, num documento imprescindível
para a história cultural do século XX.
E é obrigatório assinalar-se
o nome de Fernando Cabral Martins, estudioso da Contemporânea, que analisa no seu O Modernismo em Mário de Sá Carneiro ,
dedicando-lhe também atenção em estudo que destinou à edição portuguesa de Marginálias, de Ramon Gomez de la Serna,
publicação da Bedeteca de Lisboa e da Assírio & Alvim, a que ainda
voltarei, e que dirigiu o Dicionário de
Fernando Pessoa e do Modernismo Português, onde se encontram informações
importantes sobre a revista e os seus principais colaboradores.
Como é bem sabido, a Contemporânea deu-se a conhecer através
de um número espécimen, em 1915, ainda durante o governo do general Pimenta de
Castro, cuja colaboração Manuel de Arriaga implorou numa carta que faz lembrar
pelo tom, a que anos antes D. Carlos dirigira a João Franco com idêntica
finalidade. Em Março aparecera a Orpheu
recebida, como certamente os seus animadores previam, com desconsideração e
escárnio.
Anunciando-se destinada a
dar voz a quantos em Portugal se interessavam pela «elegância na arte e na
vida» e não viravam as costas à «civilização moderna», pretendia preencher uma
«deficiência do meio», organizando uma revista que «fosse rigorosamente o ponto
de reunião de quantos interesses cultos entre nós» existissem. O que se visava
era a «criação entre nós de um meio culto» e para isso anunciava como
colaboradores «as figuras mais brilhantes e variadamente individuais das nossas
modernas correntes artísticas, desde as mais simples às mais complexas – todos
quantos, desde o verso até à linha, sabem servir as curiosidades cultas e os
interesses aristocratizados».
E o programa, snob nos
seus considerandos, marcado por um toque de imodéstia, esclarecia:
«Em Contemporânea encontrará o leitor tudo quanto posas interessar uma
curiosidade elegante, desde a reportagem fotográfica escrupulosamente atenta em
colher apenas o instante feliz das ocorrências, até uma colaboração literária e
pictural que para sempre e deveras mostre que nada temos a invejar aos outros
países se nos decidirmos a conjugar os nossos esforços e a disciplinar as
nossas competências».
Se é certo que «o capricho
do artista domina sempre a sua actividade; de sorte que, quando o crítico busca
o significado de certa obra, tem de se remeter ao próprio autor e à obra em si»,
importa dizer que o número espécimen registava a direcção artística de José Pacheco,
logo indicando por rigorosa ordem alfabética a colaboração de: Alfredo Pimenta,
Antero de Figueiredo, António Cândido, António Carneiro, Conde de Sabugosa,
Domingos Guimarães, Eugénio de Castro, Guerra Junqueiro, Jaime de Magalhães
Lima, Júlio Brandão, Júlio Dantas, Luís de Magalhães, Ramalho Ortigão, Raul
Brandão, Teixeira Lopes e Teixeira de Pascoais.
Revista Contemporânea, nº 1, 1922
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Afirmados que tinham sido
propósitos ecléticos, confirmaram-nos, até certo ponto, os nomes anunciados.
Projecto contemporâneo,
talvez; muito longe do propósito modernista, sem dúvida.
De Pacheco escreveu José
Augusto França ser a mais curiosa personagem do mundo artístico lisboeta que à
volta do futurismo se criou e depois andou em tentativas de sobrevivência,
entre sonhos, polémicas, dívidas baratas – e doenças sem cura».
Só sete anos depois,
passados 27 governos e 5 presidentes da República, a Contemporânea reapareceu, animada na circunstância pela polémica
“Questão dos Novos” em
que José Pacheco se envolve.
O general Pimenta de
Castro vira-se afastado do poder na sequência dos acontecimentos de 14 de Maio
de 1915, que colocaram o Pais em clima de guerra civil e a requisição de navios
alemães surtos em portos portugueses, acabaria por espoletar a mais que
previsível (e desejada por sectores influentes da política nacional) declaração
de guerra da Alemanha. Sidónio Pais regressado de Berlim, onde desempenhava
funções de ministro de Portugal, toma o poder em Dezembro de 1917. Bernardino
Machado é destituído e colocado na fronteira. A reorientação constitucional do
Estado para um modelo presidencialista e de representação corporativa gora-se
quando Sidónio cai baleado mortalmente a 14 de Dezembro do ano seguinte.
Durante a imprevista presidência de Canto e Castro, dá-se a restauração
monárquica no Porto e a tentativa realista de Monsanto. José Relvas assume em
Fevereiro de 1919 a presidência de um gabinete de concentração republicana. A
instabilidade política potenciada pela limitação dos poderes presidenciais, faz
o país assistir estupefacto à matança de 19 de Outubro de 1921. Desaparecem
fundadores da República: Machado Santos; António Granjo; Carlos da Maia.
Na Ilustração Portuguesa, em artigo não assinado, mas atribuível a
António Ferro – que havia dias assumira a direcção dessa revista com o
propósito declarado de contribuir para «estilizar a raça» –, lia-se:
«O número de hoje […] é
um número revolucionário, um número que não teve tempo de se arranjar, de se
vestir, um número sem cor, um número sem “rouge”, um número alvoraçado que
atira fotografias, como argumentos, que esquece o “baton”, que esquece a
frivolidade, que se esquece de ser “magazine” para chorar, para chorar bem
alto, sem receio de que venham proibir-lhe as lágrimas, a morte desses três portugueses
de lei, esses três homens que cometeram o nefando crime de por as suas vidas ao
serviço da Pátria».
Poucos meses passados
sobre esses graves acontecimentos, foi dada à publicidade a Contemporânea.
Se já vinha de trás a
incompreensão (dos “novos”) pelo cânone artístico dos salões da Sociedade
Nacional de Belas Artes, a desconsideração em 1921 da obra de Eduardo Viana,
fez estalar um movimento crítico que encontra eco nas páginas da Ilustração Portuguesa através da pena de
António Ferro e coloca Pacheco (aliás sócio da SNBA) à testa de uma campanha
que visava os chamados «consagrados». Essa campanha inseria-se numa estratégia
mais ampla, qual era a de tomada de influência na Sociedade Nacional de Belas
Artes, através da entrada de novos sócios. O conflito aberto acabaria por
estalar em reunião da assembleia-geral da Sociedade, confrontados que foram “os
novos” com uma alteração estatutária que teve a intenção de os excluir. Perdida
essa batalha, nem por isso havia razão para se darem por “vencidos”. Pelo
contrário, o impacto público da polémica abria uma janela de oportunidade à
afirmação dos “novos”, que teve eco no comentado comício do Chiado Terrasse
realizado em Novembro de 1922.
Curiosamente, já em 1909,
Veiga Simões, que seria colaborador da Contemporânea,
escrevera num livro sugestivamente intitulado, Nova Geração, página que importa relembrar:
«Auguste Rodin domina o
seu tempo porque praticou essa coisa estranha na escultura moderna que se chama
a criação pessoal através dum conceito pessoal de estética. As suas figuras são
por vezes mitológicas e actuais: e entretanto nunca Rodin procurou seguir o
classicismo que faz ver na figura determinado personagem de certo episódio
mitológico, nem vai atrás desse realismo que o conceito burguês da arte teima
em reclamar para ela».
«Como há quinhentos anos,
acordando dum sono, de novo o homem acorda –, mas agora para sentir-se liberto
de todas as forças humanas, liberto das próprias forças da natureza».
«A inquietação do nosso
tempo é a inquietação de Rodin, trabalhando sempre em busca de certo ideal que
o persegue, para no final encontrar a técnica do movimento erguendo uma forma
artística material a essa altura de imaterialidade e expressão que o Balzac nos
mostra. Que importa que a Academia reagisse, surpresa ante o desconcerto das
proporções e da maneira externa? As figuras do artista erguiam através das suas
desproporções o conjunto harmónico resultante do exagero de certas partes na
mesma relação proporcional com as outras, deixando ressaltar por completo o
carácter dominante da figura. Que importa que essa Societè des gens de lettres, indignada, recusasse o Balzac?
Dessa estranha cabeça ala-se o romancista da Comédie Humaine, dominando-nos.
A crítica burguesa das
proporções! Como se a arte tivesse apenas por fim fixar o comprimento dos
braços, sacrificando a expressão total da obra a certo centímetro a mais que o
autor deixou cair junto das falsas costelas!...»
Não cabe naturalmente nos
meus propósitos “contar” a história da Contemporânea,
mas é meu desejo centrar-me em duas questões e ensaiar para ela respostas que
colocarei à consideração de quem me ouve.
Noto que a Contemporânea inscreve no seu primeiro
número de Maio de 1922, antes de tudo o mais, como registo que não pode deixar
de considera-se intencionalmente prioritário, a declaração de que o director da
revista [José Pacheco] propusera em assembleia geral da Sociedade Nacional de
Belas Artes realizada dias antes a fundação da Sociedade dos Amigos de Espanha
e como sócio honorário o Conde de Romanones, presidente da Sociedade dos Amigos
de Portugal.
Com esta declaração que
terminava significativamente com quatro exclamações: «Pela Sociedade dos Amigos
de Espanha!; Pela Sociedade dos Amigos de Portugal!, Por Portugal! Por Espanha!»,
a Contemporânea afirmava
inequivocamente, e como verdadeiro registo programático, a sua espanofilia. Mas
interrogo-me: poderá afirmar-se que a revista encerrava um qualquer projecto
(político) de unidade peninsular por detrás da camaradagem “modernista”
sobretudo de Almada e Ferro com Ramon Gomez de la Serna?
Logo no n.º 2, sugeria a
revista o dever de os portugueses corresponderem ao entusiasmo e simpatia com
que o povo espanhol os acolhia, pelo que perguntavam se seria muito dar a uma
praça de Lisboa o nome de Cervantes, registando ainda o projecto do Diário de
Notícias de, com organização de Magalhães Lima, reunir um Congresso
Jornalístico Luso-Hispânico. Mas nesse número da revista estaria reservado a António Sardinha tratar
do Pan-Hispanismo. Nesse texto, o autor considera um «equívoco secular», que
mal já resistia ao «exame da inteligência», fora responsável por se ter vincado
«um longo e doloroso divórcio entre as duas prestigiosas pátrias da Península».
E propunha que se escutassem bem «as vozes profundas» da tradição, para se ver
«que as lutas de Portugal com Castela são lutas de família, que em família
sempre se resolveram». Mas Sardinha não deixava de apontar um «engano»: o de
supor-se que a unidade moral duma civilização que tem na Península o seu berço
original, exigia «uma consequente unidade política», e propunha que Espanha e
Portugal executassem um plano de acção, constituindo-se como verdadeiro laço de
união entre a Europa e a América e África. No entender de António Sardinha devia
opor-se, como primeiro passo, o peninsularismo ao que considerava
«desacreditado iberismo», que dizia, de marca «maçónica e revolucionária». O
segundo passo seria o pan-hispanismo, avaliado como revestindo «significado
actualíssimo», o qual surgia como «conclusão lógica», constituído por dois
elementos estruturais: o espanholismo e o lusitanismo, de modo a opor-se ao
pan-americanismo. Sobre a fórmula política – dir-se-ia hoje – a arquitectura
política desse projecto, Sardinha não adiantou ideias, convidando Portugal,
pela sua parte, a reorganizar-se como nação forte, e a estreitar «os vínculos
da sua amizade» com Espanha e com o Brasil, para que se abrissem as pétalas do
«internacionalismo hispânico».
O tema não era novo entre
os versados pelo autor, que se exilara em Espanha depois do naufrágio da
restauração monárquica, em 1919, e aí criara um círculo de relações, onde
pontuavam personalidades da direita monárquica, contra-revolucionária – caso de
Vasquez de Mella; o duque de Maura e os marqueses de Quintanar e Lozoya e o mais heterodoxo Ramiro de Maesztu (todos
prefaciadores de edições de A Questão
Peninsular) – orientação essa sobre a questão peninsular que foi sempre
marcada pela pulsão anexionista. E sendo assim, não deixa de ser significativo,
que já em Maio de 1920, Sardinha escrevesse em Madrid, que caminhavam no melhor
terreno os propósitos de «aproximação peninsular», pois que, explicava, «as
“direitas” dos dois países, que o sejam verdadeiramente por afinidade e por
doutrina não tardarão a encontrar-se numa grande festa comum – alicerce para
outros empreendimentos de mais larga significação»…
No mesmo número da Contemporânea, Rogelio Buendía, poeta e
prosador de vasta produção literária, assinava “Cancion de España a Portugal”,
composição poética assinalavelmente sintonizada com o discurso de Sardinha.
Conforme logo foi
reconhecido, passara a ser voz corrente que a Contemporânea estava vendida
a Espanha, havendo sido reclamada mudança de «atitude». Em resposta aos
contestatários da direcção da revista, ficou registado:
«Mais inteligência e mais
sinceridade! Esfarrapem de vez o papão de Castela, porque a Espanha de hoje, se
por um erro político pensasse em invadir-nos, não pensava decerto em
dominar-nos».
Martinho Nobre de Melo
ocupou-se também das relações luso-espanholas, e colocava a questão sobre o
necessário prisma jurídico: a dúvida residia em saber se se trataria de um
tratado comercial bilateral ou antes de lançar as bases de «um vastíssimo
sistema de entente luso-hispano-americana».
Tal como Sardinha,
refutava o iberismo, uma mentira desfeita, nas suas palavras, lembrando as
conferências da Liga Naval sobre a questão ibérica, que o integralismo tinha
reunido em 1914 e citava Reclus como argumento de autoridade a favor da
«doutrina separatista». Ficando a possibilidade de um arranjo económico, a
Nobre de Melo, parecia-lhe inconveniente; ressuscitar-se-ia sob o aspecto
económico e financeiro o iberismo através da absorção pacífica de Portugal,
pelo que ficava apenas como solução explorar um quadro de solidariedade económica
luso-hispânica. Outra face do problema era o da comparticipação de Portugal e
Espanha numa vasta comunidade de ideias e de interesses com as nações latinas
da América. Mas também aí sublinhava um problema. Nada poderia ser feito sem
«um entendimento completo e prévio entre Portugal e o Brasil».
Desencontrava-se, assim,
Nobre de Melo de António
Sardinha quanto à resposta política a dar questão por este
levada às páginas da Contemporânea.
Alfredo Pimenta não
deixaria também de comentar o livro de Sardinha, A Aliança Peninsular (1924), que contribuiu para consagrar o seu
autor, aos olhos de Ramiro de Maeztu, como «um dos grandes profetas da
Hispanidade». Do livro escreveu Pimenta ser «infeliz, histórica e
portuguesmente considerado», e mais, «perigoso, não tanto pelo que diz como
pelo que facilita que se diga».
A Contemporânea iria manter-se-ia fiel às directrizes do seu
apostolado “peninsularista”.
E para isso em muito
contribuiu a personalidade de Ramon Gomez de la Serna, o qual justifica uma
referência muito especial, ou não tivesse sido primeira figura do modernismo
espanhol, que nas páginas da revista Prometeo,
fundada por seu pai e depois por ele dirigida, recepcionara Marinetti, o qual
aí assinou em 1910 a “Proclama futurista a los españoles”.
Mas Ramon Gomez de la Serna,
assumiria um papel de relevo muito particular na criação da ambiência
modernista em Portugal, pela afeição que o ligava ao nosso país, que visitou
pela primeira vez em 1915, do que daria magnífica notícia na Contemporânea, Augusto D’Esaguy.
Da mesma geração de
Almada, uns anos mais velho que Ferro, foi com ambos que estreitou mais forte
relação, mas também com José Pacheco, o que explica que tenha sido o orador
principal no banquete de homenagem a Pacheco, onde também discursou Rogerio
Garcia Perez.
Nessa ocasião, Ramon
Gomez de la Serna sublinhou a sua amizade por António Ferro que em 1923 lhe
prefacia A Ruiva. Seis anos mais
tarde, será Ramon a prefaciar a edição definitiva da novela Leviana, onde reflecte sobre a sua
concepção de arte:
«El arte es lo
inconcebible, lo inconstante, lo improbado. Conservemos siempre nuestra
estética en plena incerteza y reforma […] Solo el azar artístico es agradable y
definitivo y solo en el hay placer y se pude encontrar algun atisbo de libertad
imperecedora».
Nesse prefácio, Ramon
Gomez de la Serna alude à ironia da dedicatória impressa por Ferro no seu Teoria da Indiferença, obra, em estilo
próximo ao da sua Greguerías, ambos
os autores, acrobatas de frases e de ideias.
As relações de cumplicidade
intelectual, estética e interventiva de Ramón e Ferro, talvez possam ter
contribuído para que aquele tivesse escolhido o Estoril para seu refúgio, seu e
da sua companheira sentimental Cármen de Burgos (Colombine), numa casa aberta
sobre o oceano a que deu o nome de “El Ventanal”.
Almada Negreiros
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Tal como privou
intimamente com Ferro, Ramon Gomez de la Serna, fez de Almada um seu amigo,
acolhendo-o em Madrid.
Na Gaceta Literária – fundada em Madrid por outra figura
singularíssima, Ernesto Gimenez Caballero –, haveria de escrever em 1927:
«Almada Negreiros es el
ser impar en medio de la pintura y de la literatura portuguesa, sobre las que
salta de trapecio en trapecio».
A proximidade e
influência de Ramon Gomez de la Serna, que se tornou um interlocutor da “novíssima
geração” pode bem ter sido decisiva na afirmação da Contemporânea como um espaço de diálogo e mútuo conhecimento, não
só peninsular, mas de ambição ibero-americana, que justificaram terem sido
depois escolhidos subtítulos para a revista, assim: Portugal, Ibero-Americanismo, Arte, e depois, Portugal, Brasil, Ibero-Americanismo, Arte.
Essa orientação da Contemporânea teve tradução num
projectado “Concurso de Peças Teatrais em I Acto abrangendo Portugal e
Espanha”, cujo regulamento previa que fossem premiadas duas peças, uma de cada
nacionalidade, que seriam representadas em Portugal, Espanha ,
Brasil e Argentina.
Mas não só: Celestino
Soares, comentou a política ibero-americana, sustentando uma perspectiva
crítica do pan-americanismo, e a resistência a ele, através do reforço do bloco
ibero-americano, que, defendia, devia passar a pesar na Comunidade das Nações
como «bloco único». E considerou oportuno lembra que fora o reaparecimento da Contemporânea que permitira encetar, «no
campo das letras e por forma ponderável, a apresentação, lado a lado, dos
intelectuais do mundo ibérico».
A atestar a importância
dada pela revista à problemática ibero-americana, a Contemporânea publicou
conferências de dois professores de Direito da Universidade de São Paulo, Noé
Azevedo e Spencer Vampré, defensores de uma confederação luso-brasileira, como
primeira etapa da criação de um bloco, influente no plano internacional,
luso-hispano-americano.
E, colheu até a revista
depoimentos sobre o ibero-americanismo, de figuras como Bettencourt-Rodrigues,
Afonso Lopes Vieira, Augusto de Castro, de Mendes Cabeçadas e de Gomes da Costa
– ao tempo, este, instalado no palácio de Belém, num momento em que
desaparecera já do mundo dos vivos António Sardinha , cujo pensamento, porém não deixou
de integrar os depoimentos, através de citações várias do seu livro Aliança Peninsular.
A vocação ibérica da Contemporânea, espelha-se nas suas
páginas, onde se exprimiram, entre outros, também, José Frances, novelista,
dramaturgo e crítico de arte espanhol e Adriano del Valle, fundador da revista Grécia, de Sevilha, iniciadora do
movimento ultraísta.
Do mesmo modo o pintor,
Daniel Vasquez Diaz, sobretudo retratista, influenciado por Renoir, Cézanne,
Gauguin, que expôs em Lisboa, em iniciativa da Contemporânea , apresentou-se
a Portugal na revista.
De Juan de Contreras y
Lopez de Ayala, marquês de Lozoya, historiador, crítico de arte, que viria a
ser durante o franquismo e por largos anos, director geral de belas artes,
publicou a revista a composição poética: “El Monasterio” dedicada a António
Sardinha.
E vários outros nomes de
Espanha: Antonio Rey Soto e o marquês de Quintanar e conde Santibanez del Rio
Também de
ibero-americanos: os cubanos António Iraizoz e Eduíno Mora, à época diplomatas
colocados em Lisboa, o primeiro autor de uma vastíssima obra literária, e de
investigação histórica, que haveria de ser embaixador do seu País em Madrid em
1952, dado como amigo da Espanha franquista. E o mexicano Jose Frias.
E entre os brasileiros,
figuras com a importância de Oswald de Andrade, do qual a revista arquivou uma
interessantíssima carta por ele dirigida a António Ferro, um “ponto de
situação”, cheio de interesse sobre a arte e a literaturas novas no Brasil, e
também sobre Portugal, com uma curiosa alusão ao modernismo de Aquilino. Do
Brasil, igualmente Tarsila do Amaral, pintora da «vanguarda independente», no
dizer de Oswald, a quem Ferro dedicou um belíssimo texto quando a Contemporânea se aproximava do fim.
A segunda reflexão que
proponho prende-se com o que, sem pretender antecipar conclusões, eu designaria
o paradoxo neo-integralista da Contemporânea.
Como assinalou Fernando
Cabral Martins, a Contemporânea «obedece
ao espírito modernista mas irá tentar compreender escolas tão díspares como o
Integralismo ou o Saudosismo». Deixando de lado o saudosismo, perguntamo-nos
sobre a compatibilidade entre, por um lado, a utopia regressiva do integralismo,
tradicionalista na sua essência, e, por outro, o apelo modernista da Contemporânea, assinalável desde logo
nas palavras preliminares de Afonso de Bragança, em texto intitulado: “Carta a
um Esteta”, assim:
«Ah! meu caro amigo! Não
sabe você o trabalho que dá esta coisa simples – viver a própria vida. Todos
nós, de há muitas gerações para cá, vimos para o mundo sem nos desligarmos da
vida que nos precedeu. Esquecemo-nos todos, artisticamente – de cortar o cordão
umbilical. A minha geração está realizando esse trabalho»
Ou mais adiante:
«Vê você porque não é
«contemporâneo»? […] Você vive a olhar para traz, esquecido de si e do tempo e
do espaço que rola à sua volta, do mundo de Beleza nova, movediça, crepitante,
estuante e viril, que gira em torno de si. Ou se vê, espera. Espera, como
aquele ébrio, que ao ver andar as casas à roda tirou a chave do bolso para
abrir a porta, quando passasse a sua…
Mas, meu caro amigo, o
que passou não volta mais. Quer isto dizer que o Passado para Nós não existe?
Existe. Mas como ponto de referência para sabermos exactamente onde estamos».
Em 1915 o número
espécimen da Contemporânea não
iludira a sua simpatia política pela ditadura de Pimenta de Castro. Num texto
curto de dez linhas, “Na Política e nas Igrejas”, em página de “Actualidades”,
com registo fotográfico cujas legendas são relevantíssimas de conteúdo
político, lê-se:
«Pode dizer-se que a
Política e a Igreja, até aqui malavindas, têm entrado, ultimamente, num campo
de reconciliação e de mútuas concessões. E assim, enquanto a Semana Santa nos
trouxe a certeza de que a fé religiosa aumenta, pejando as igrejas de fieis, as
manifestações de simpatia ao governo, têm por seu turno, provado que, em volta do Sr. Pimenta
de Castro, não tem também deixado de crescer a fé dos que crêem nas soluções da
sua política, e pejam as ruas a aclamá-la».
As soluções da política
de Pimenta de Castro, assentaram desde a sua designação como chefe do governo
na alegada observância de um “programa” da responsabilidade do presidente
Arriaga.
Sendo discutível no plano
constitucional a designação de Pimenta de Castro, a orientação do seu executivo
caracterizou-se por visar politicamente o partido democrático de Afonso Costa.
Encerrando o parlamento pela força armada, o governo que agia à margem da
Constituição passou a governar contra ela. O período que decorre entre 25 de
Janeiro e 14 de Maio de 1915, que foi o da duração do gabinete Pimenta de
Castro, é de reorientação total da política interna sobretudo em relação aos
monárquicos – que viram regressar a Lisboa, Paiva Couceiro, abrangido por uma
polémica amnistia –e se reorganizaram, usufruindo a imprensa realista de total
liberdade de publicação e circulação. Também no domínio das relações do Estado
com a igreja católica, a acção do governo se fez sentir, sobretudo através da
política do ministro da Justiça que desconsiderou a aplicação de certas normas
da lei de separação do Estado das igrejas, sobretudo as mais directamente
relacionadas com as “cultuais”.
Compreende-se que esse
quadro político tivesse suscitado a simpatia da revista que incluiu entre os
seus primeiros colaboradores António Sardinha , Hipólito Raposo, Vasco de
Carvalho, de filiação integralista. E foi naturalmente significativo que as
obras de Antero de Figueiredo e de Sardinha, respectivamente Doida de Amor e Valor da Raça, tenham estado entre as logo objecto de recensão na
revista.
Tendo em consideração o
programa da Contemporânea, dado a
conhecer em 1915, e sobretudo o conteúdo do número espécimen, não perturba o
envolvimento no projecto daquelas personalidades integralistas.
Reaparecida a publicação em
1922, melhor entrando em publicação a Contemporânea ,
a verdade é que a publicação, sem que tenha expressamente procedido à adequação
do programa originário, (re) orientou-se no plano editorial no sentido de
afirmar a sua “estilo” contemporâneo, também no grafismo.
Não se tratou apenas,
naturalmente, da mensagem preliminar de Afonso de Bragança, mas da entrada em
cena redactorial de Fernando Pessoa, com “O Banqueiro Anarchista”; de Almada
com a “Histoire du Portugal par Coeur” – consagrado logo como o grande ilustrador
da Contemporânea –, de António Botto,
e de Mário de Sá Carneiro, de quem o director da publicação fora intimo amigo e
publicava agora «Do Livro de Versos Deixado Inédito […]», “Poemas de Paris”.
Logo no segundo número da
Contemporânea, António Sardinha
juntava-se aos colaboradores da revista, por sinal coincidindo com Judith
Teixeira que ofereceu para utilizar as palavras de José Augusto França, um
«sonetilho […] acabando em “orgias de morfina”, subpoesia da época a que
Pacheco não resistia». E pela primeira vez aparecia o nome de Raul Leal que
entregou à revista as palavras ditas no comício do Chiado Terrasse, a par do de
João Ameal – que se associava assim, e só uma vez, ao projecto de Pacheco –, e
de Mário Saa, com o perturbador “Mario O Inculto”, onde escrevia:
«Ser novo é sepultar o
Passado; o contrário é ser velho, é ser o próprio Lázaro ressuscitado; é ser
Lázaro e toda a miséria de Lázaro».
E também António Ferro,
com um fragmento da “Arte de Bem Morrer”, conferência a realizar no Rio de
Janeiro, e Homem Christo Filho em diálogo com Rachilde
[Marguerite Eymery] – mulher de François Vallette, director da Mercure de France –, sua amiga e
protectora parisiense, juntamente com a “Conferência cubista sobre a
esquizofrenia”. de Corpus Barga [pseudónimo de Andrés Gomez de la Serna, tio de
Ramón] e Vergílio Correia que cuidou da ausência de historiografia da arte em
Portugal.
Fernanda de Castro
registou nas suas memórias a viagem ao Brasil em 1922, onde por sinal casou, apadrinhados
por Gago Coutinho, com António Ferro por então mobilizado na apresentação da
sua peça teatral “Mar Alto”, que correu em São Paulo e no Rio – e haveria de
criar burburinho em Lisboa, no ano seguinte –, e em conferências. Além da já
referida, também “A Idade do Jazz-band”, lidas ambas em digressão triunfal pelo
Brasil, com acolhimento de Oswald de Andrade, que Fernanda de Castro
(igualmente colaboradora da Contemporânea)
diria ser doido, completamente doido, apesar de tudo, diferente do seu marido
que considerava, apenas, atrevido e ousado.
De Oswald, considerado
como o primeiro “importador” do futurismo no Brasil, haveria de dizer o
escritor e diplomata [um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de São
Paulo em 1922] José Graça Aranha, na Academia Brasileira de Letras, onde expôs
sobre “O Espírito Moderno”, que o seu espírito estava «sôfrego de demolição e
construção» [1].
“António Botto e o ideal
estético em Portugal” de Fernando Pessoa constituiu o texto central do terceiro
número da Contemporânea, no qual
entra também colaboração de Veiga Simões; de novo de Almada, de Mário de Saa, Botto
e de Sardinha, e pela primeira vez de Alfredo Pimenta – com “Soneto da
Decadência” –, o qual só voltará a colaborar no n.º 13 da revista, com um texto
sobre Amadis.
De entre os
integralistas, Luís Almeida Braga colabora também, apenas uma vez, no n.º 7, assim
como Alberto de Monsaraz e Afonso Lopes Vieira.
E a par de outros nomes
da direita ideológica, ressaltam os de Martinho Nobre de Melo e de João de
Castro Osório, por sinal duas figuras que acalentaram pretensões de chefia política.
Ao abrir-se à colaboração
continuada de personalidades ideologicamente tão marcadas, a revista situou-se
politicamente, no que terá constituído uma opção de Pacheco que José Augusto
França, no entanto, essencialmente desvaloriza, por não identificar «um corpo
ideológico definido no seu pensamento por natureza divagante, de idealista em
dificuldades de quotidiano», justificando-a, antes, pela posição mundana e
«snobismo aristocrático» do director da Contemporânea.
Na verdade só um quadro
de indefinição ideológica de Pacheco pode explicar que por um lado tenha
pretendido afirmar na revista os valores estéticos do modernismo – convocando para
o efeito, entre outros, os nomes de Marinetti e de Ramon Gomez de la Serna –,
e, por outro, acolhesse nela, como aconteceu, o núcleo duro do integralismo lusitano,
mesmo que sobretudo como colaboradores meramente literários. Mas convirá não
esquecer que nas páginas da Contemporânea,
não se regatearam elogios a Sardinha; João Ameal e Luís de Almeida Braga,
registando-se o primeiro como «historiador, poeta e ensaísta», que apesar da
sua «intransigência histórica e dos seu ódio aos judeus» – assim mesmo escrito
no 1.º Suplemento de março de 1925 – a Espanha seleccionara entre os «modernos
poetas portugueses».
Na Alma Portugueza, primeiro periódico do integralismo, publicado em
Lovaina em 1913, Luís de Almeida Braga declarara a sua preferência pela filosofia
anti-intelectualista, defendendo a «Arte pela Vida» contra o que considerou ser
a «monstruosa teoria da Arte pela Arte».
Por sinal, António Ferro
haveria de escrever na Teoria da
Indiferença:
«A Vida é-me indiferente.
Só a Arte me interessa por ser diferente da Vida».
Diferentemente, Fernando
Pessoa, confrontado com a questão, começaria por confessar a Armando Côrtes-Rodrigues,
estar confrontado com «um conflito entre as partes superficiais e estéticas» do
seu «ser de alma, e outras partes religiosas e profundas dele», para em carta
posterior, de 19 de Janeiro de 1915, declarar reconhecer em Côrtes-Rodrigues,
«um espírito religioso», e nesse sentido capaz de o compreender, e
confessou-lhe a sua crise, assim:
«Dos que de perto me
cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas,
propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é
quotidiana) da terrível importância, da Vida, essa consciência que nos
impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um
dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade».
A ideia central do
integralista Luís Almeida Braga, era a de que a regeneração artística do país
só podia fazer-se pelo culto da tradição e do amor da pátria, sendo esta a
ideia geradora que haveria de dar consciência ao pensamento contemporâneo.
E sobre o modernismo João
Ameal escreveu em As Directrizes da Nova
Geração, citando F. Jean-Desthieux, que o moderno, a maior parte das vezes
era o estranho, o bárbaro. E referindo-se à sua geração notou que a «barbárie
moderna» exercia uma «fascinadora sedução do ineditismo, da decoração e da
sensualidade». Em seu entender não era possível definir o modernismo, podendo,
quando muito, apontar-se dele, «alguns sintomas nítidos». Os resultados
traduziam-se, nas suas palavras, «em desvios psicológicos, em aberrações
sensoriais, em depravações requintadas, em superficialidades cenográficas –
numa palavra, em anarquismo mental, paralisando e esterilizando a força
criadora». Era então necessário “acabar” com o «preconceito modernista»,
julgado «o pior de todos os preconceitos». Sendo uma ficção, não incarnava o
modernismo uma doutrina nem exprimia uma orientação, tratava-se de uma
«tabuleta de cabotinos e tarados».
Os integralistas,
assumidos nostálgicos da Idade Média, imaginavam que o mundo lhe pedisse: «o
poderoso e completo modelo duma ordem total, eficaz». Não se tratava de «voltar
ao passado», mas de reintegração na linha de avanço humano aceitando do passado
o que se mostrara de substância eterna. Um «pessimismo entusiástico», como,
quem sabe se com ironia, definiu Maeztu o integralismo lusitano.
O insuspeito Fidelino de
Figueiredo haveria de notar que o sentimento verdadeiramente inspirador do
integralismo era o «desânimo das democracias» e que a ideia fundamental
constituía no regresso às antigas base das sociedades, a tradição e a
autoridade.
Faziam portanto «tábua
rasa de mais de um século de história pátria, acordando serodiamente o paradoxo
de Joseph de Maistre, tornando mais cerrado e severo o pensamento de Maurras,
seu pai espiritual, como se fosse possível voltar atrás, para reviver o tempo
que passou, mesmo aquele que foi mal vivido». E acrescentava em registo
crítico:
«O tradicionalismo, ainda
o mais sólido, falseia-se no momento em que se volve em filosofia política da
imobilidade» [2].
Por sinal, Fidelino de
Figueiredo referiu-se – sem os identificar – a «alguns jovens romancistas,
formados já no ambiente posterior à Primeira Grande Guerra» que se haviam «deixado
seduzir por tendências de moda: a superficial dispersão geográfica do entrecho,
a difusão psicológica e erótica das personagens, um tom geral de diletantismo
meio céptico, prematuramente céptico, todas as formas de empobrecimento
contemporâneo da personalidade». Em síntese, tratava-se em sua opinião de «uma
literatura fácil que desempenha a mesma função que um cigarro suave: arder e
distrair».
Também Artur Ribeiro
Lopes escreveu no seu ensaio, A
Inteligência na Literatura Nacional, sob o título “Os “Contemporâneos””,
que a multidão e precocidade caracterizavam a vida literária portuguesa,
observando que as pessoas que escreviam em Portugal eram «uma legião
constituída, na maior parte, por mulheres e adolescentes».
«Todos os dias, os
jornais de grande circulação anunciam o aparecimento dum grande livro do moço escritor, do jovem romancista, do novelista
bizarro, do estilista nervoso, do
debuchista estranho, ou então, da jovem poetisa ou da notável escritora». Mas mais, Ribeiro Lopes sugeria que se
elaborava no âmago dessa legião interminável, a «fermentação de miséria e de
loucura, de analfabetismo e de vaidade, de charlatanismo e de estupidez»:
«Toda a sua energia é
consumada na arte de mistificar a galeria, simulando interioridades intensas,
complicações patológicas, e perdem-se, e isto quanto aos melhores, numa espécie
de histeria auditiva que os conduz à manipulação duma fraseologia incongruente
e tão precária de sentido que parece, por vezes, estarmos lendo os monólogos
dum idiota.
É a levedação de todas as
ideias falsas, de todas as sensações de efeito, de todos os caprichos de
linguagem, de todos os artifícios, de todos os orgulhos estéreis que
caracterizaram ainda as obras dos seus progenitores […].
É a mentira dos grandes
homens, levando já a sua força corrosiva até ao âmago da sociedade portuguesa,
infiltrando-se na própria vida doméstica, e impondo o princípio do menino
precoce não ter conseguido o quinto ano dos liceus pela simples razão de já ser
um homem de génio.
São diletantes, na sua
maior parte, rebuscadores, simuladores, na impossibilidade de escrever por
temperamento, mentem por vaidade».
E Alfredo Pimenta que
colaborou episodicamente com a Contemporânea,
ajustou contas com o passado, desviando-se de um esboço crítico da poesia de
Eugénio de Castro, para proclamar que não levava «a sério» essa «camada de
poetastros que se dizem modernistas», «poetastros que a galeria da crítica
fácil ou à jorna proclama génios, não passam de ridículos sensaborões, sem
nada, absolutamente nada que se aproveite».
Se no plano rigorosamente
ideológico não se aceita a possibilidade cooperativa com o modernismo por parte
dos integralistas, a verdade é que ela se verificou, paradoxalmente, na Contemporânea. Mas tem por certo pertinência
perguntarmo-nos com Cabral Martins, se efectivamente a Contemporânea não se terá inclinando «para representar e fomentar
uma versão do Modernismo alheia e resistente às vanguardas – que na Europa, sem
esmorecer, se desenvolviam num segundo fôlego com o Surrealismo».
NNNNÉ o que nos parece, na verdade. A
falta de vertebração ideológica da sua direcção acabaria por condenar a revista
à descaracterização inevitável, da qual constitui desde logo exemplo a presença
integralista, como também do saudosismo, através de Pascoaes, ou do simbolismo,
com Eugénio de Castro, ambos presentes no número de Natal de 1922.
E não pode deixar de se
apontar, como sintomática da moderada pulsão modernista da Contemporânea, a concessão a Reinaldo dos Santos de liberdade para
fazer o elogio de Eduardo Viana em crítica à arte contemporânea, que tentara em
seu dizer, «com meios diferentes, menos estilo e num espírito efémero de
modernismo, o que o cubismo bizantino realizara com génio». E congratulava-se o
crítico com o facto de Viana não se ter deixado «contaminar» pelas
extravagâncias em que degenerara a arte moderna.
E impressionou também
Cabral Martins, não sem razão, que as páginas da Contemporânea se tivessem aberto a Álvaro Maia, que disse nunca se
ter visto em «tamanha atarantação» para visar Pessoa a propósito de António
Botto, num artigo que ficou arquivado no n.º 4 da Contemporânea sob o
significativo título: “Literatura de Sodoma, O Sr. Fernando Pessoa e o ideal
estético em Portugal”.
«Sequioso de ineditismo –
escreveu Álvaro Pinto
referindo-se a Pessoa –, pescou do justo esquecimento um livro [trata-se de Canções] sem arte nem beleza e como,
nessa miséria impressa, fosse claramente feita a apologia daquelas aberrações
sexuais que levaram Deus a sepultar Sodoma e Gomorra sob o dilúvio de fogo e
enxofre, o sr. Fernando Pessoa, sacudiu de sobre o livro a poeira espessa que o
encobria, pendurou-o nas primeiras protuberâncias lunares que se lhe
antolharam, falou-nos do culto da Beleza entre os Gregos e, com toda a
imponência que lhe dá a admiração que todos os novos lhe dedicam – proclamou
ore rotundo, que o autor daquela escorrência literária é o único entre os
portugueses a quem o título de esteta pode caber».
Por sinal, Pessoa notara
que Botto se havia afastado naquela obra, «de toda a moralidade no modo porque
canta a beleza física» e que igualmente «no modo por que canta o prazer», e
perguntou:
«De que modo canta ele o
prazer? Que modo há de cantar o prazer que, sem ser moral (porque se o fosse
estaríamos fora do caso estético), se afaste da imoralidade?».
Álvaro de Campos entraria
na polémica em carta dirigida a José Pacheco, para lhe observar que muitas
vezes criticara Pessoa, por aquela mania que tantas vezes lhe havia censurado
de julgar que as coisas se provam, e perguntando-se pelo sentido de ideal
estético, dizia ter lido o livro de Botto e ter gostado dele e explicava:
«A arte do Botto é
integralmente imoral. Não há célula nela que esteja decente. E isso é uma força
porque é uma não hipocrisia, uma não complicação».
E devendo concluir,
O juízo de Ramon em relação à Contemporânea foi
expressivo, ao reconhecer que José Pacheco tinha conseguido que a sua revista
figurasse ao lado das «revistas ultra-modernas», e sublinhou:
«Pero lo que ha hecho de
más maravilloso Contemporânea y su
director, su hallazgo, su apostacion al movimiento moderno del arte, su
misturácion original ha sido el unir cubismo al rusticismo, el cerrar el
circulo, el que de nuevo la cabeza se muerda la cola».
E acrescentou ainda,
saudando Pacheco nessa ocasião memorável da história da revista:
«Lo inaudito de Contemporânea es que ha promovido la union
de lo rústico y de lo ultramoderno y de la pintoresca privanza del espiritu
nacional a la mas audaz de las novedades».
Com estas palavras, Ramon
valorizava o ecletismo já notável na Contemporânea
em 1923 e acabaria por caracterizar a revista ao longo de toda a sua vida, e aceitava
deste modo a “via original” de Pacheco, concedendo até que a revista fosse
posta ao lado das «revistas ultra-modernas».
Jorge de Sena dizia não sem
razão que os conceitos em literatura o afligiam e o repugnavam pelo que neles
se podia insinuar ou ser insinuado quanto a uma idealística legitimidade ou uma
permanente significação.
Há sabedoria nesta
precaução. E à luz dela escusamo-nos à discussão sobre se a Contemporânea foi uma revista
modernista, apenas contemporânea (no sentido de ser um magazine do seu tempo)
ou se porventura até, ao menos nalgumas das suas páginas, e em alguma das suas
publicações (lembro A Cena de Ódio,
de Almada) ela não terá sido contagiada pelo espírito de vanguarda.
Mas houve vanguarda em
Portugal; o chamado “modernismo” português foi vanguardista, no sentido de ter
rompido (mas ruptura absoluta, radical), com a tradição?
A perplexidade que está
expressa na primeira interrogação que coloquei tem a ver com o que designei por
neo-integralismo da Contemporânea,
que posso talvez, até à luz das palavras ditas por Ramon Gomez de la Serna no
banquete a Pacheco – e em jeito conclusivo – concluir que representou o
«inaudito» da revista, correspondendo àquela «pintoresca privanza del espiritu
nacional», sublinhada por Ramon. Em todo o caso pelos motivos que exprimi,
paradoxal «privanza», até porque convirá não esquecer que os «novíssimos» da
direita política, jovens integralistas que também foram, se encarregaram de
organizar um auto de fé, com fogo e tudo, queimando obras de Raul Leal e Judith
Teixeira. E que só a memória de Ferro haveria de compensar Pessoa do critério
de um júri, que intimamente não se havia libertado do prejuízo intelectual e
clínico de Max Nordau, e eram admiradores literários do autor da Ceia dos Cardeais, que Almada
desfeiteara no ano do número espécimen da Contemporânea.
E quanto a segunda
questão que suscitei, e sobre a qual tenho a intenção de continuar a reflectir,
queria afirmar que devendo concluir-se em face da prova – que é a própria Contemporânea –, que não resulta (ou não
nos parece resultar) dela qualquer indicação cabal, de que a revista possa
ter-se movido na prossecução de qualquer finalidade política que pressupusesse
a alteração do estatuto de independência dos dois estados peninsulares.
Mas esta conclusão,
provisória como todas as que fazemos em história, só pode ter o sentido de
valorizar, além do debate sobre o pan-hispanismo, singular das seculares
desinteligências sobre o relacionamento peninsular, a experiência singular da
revista na divulgação em Portugal de expressões da cultura espanhola e
ibero-americana, desde logo da personalidade e obra de Gomez de la Serna, e a
dos brasileiros Tarsila do Amaral e Oswaldo de Andrade.
Para esse fim contribui
decisivamente, como vimos, António
Sardinha , e ocorre-me que talvez possa ter constituído o seu
peninsularismo, o apontamento, uma nota de modernidade, porventura a nota do
seu pensamento activo. É tema a merecer reflexão.
No seu assumido e
paradoxal ecletismo, a Contemporânea
arquiva colaborações notáveis, a maioria de autores portugueses, demonstrando a
complexidade e riqueza da nossa vida cultural dos anos 20.
Em 1925, Mendes Correia
foi à sala dos capelos da Universidade de Coimbra falar sobre “A Antroplogia
nas suas relações com a arte”. E aí disse palavras com as quais gostava de
encerrar estas minhas considerações:
«Eu não ouso condenar o
artista que deturpa a realidade, desde que ele não obedeça a um mero capricho
cubista mas seja guiado por um grande ideal de beleza. Se os nossos olhos e o
nosso cérebro nos dão um panorama euclidiano, sabe-se lá se a realidade é
euclediana ou se é apenas euclediana!? E não há o direito de arrasar os palácios
encantados de sonho em que vivem almas eleitas que, perante a brutalidade
material, se abrasam em transcendentes ideais de emancipação moral e física».
Luís Bigotte Chorão
(Intervenção no Museu da República e Resistência, Ciclo Revistas Literárias, Lisboa, 24 de Abril de 2012).
[1] Oswald de Andrade haveria de “zombar” da Estética da
Vida, e do postulado da “integração no cosmos” que dizia ser, com a habitual
irreverência, «integração no cosmético», alusão ao facto de Graça Aranha pintar
os cabelos.
[2]
Fidelino de Figueiredo, As Duas Espanhas,
209
Caro Luís, o programa de 1915 da Contemporânea que você considera snob e imodesto foi redigido por Fernando Pessoa. É só uma curiosidade.
ResponderEliminarUm abraço
Zé Barreto