quinta-feira, 15 de maio de 2014

Os desrevolucionários.

 
 
 
Postal de 1910


 
Em 29 e 30 de Julho de 1914 reúne-se, em Bruxelas, o Secretariado Socialista Internacional, onde comparecem alguns grandes nomes do socialismo europeus. Estavam presentes, entre outros, Vandervelde, Jean Jaurès, Victor Adler, Rosa Luxemburgo e Keir Hardie. O austríaco Victor Adler deu ali a entender que o seu partido não poderia contrariar o entusiasmo com que as massas populares encaravam a guerra. Para Adler era “preferível estar errado mas ao lado da classe operária, do que estar certo contra ela”. Nenhuma acção prática foi decidida. Marcou-se novo congresso para Paris em 9 de Agosto, que, por razões óbvias, não veio a ter lugar.
    No regresso aos seus países, os socialistas alemães e franceses entraram em contacto com os respectivos governos. O alemão Hugo Haase foi recebido pelo Ministro do Interior, a solicitação deste. Jaurès tenta encontrar no Parlamento o Ministro do Interior francês e consegue ser recebido pelo Subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Abel Ferry (que será das últimas vítimas da guerra, em Setembro de 1918). Depois da audiência, Jaurès dirige-se ao jornal do partido, o L´Humanité, onde discutiu a situação política, encaminhando-se de seguida a um restaurante para jantar. Durante a refeição no Café du Croissant foi alvejado por um desequilibrado, Raoul Villain, que o acusava de traição, falecendo no local.
    Segundo o testemunho de um colega deputado, Pierre Dupuy, prestado ao Le Monde em 1958, antes de se dirigir à sede do L´Humanité  Jaurès teria conversado com uma dezena de parlamentares, tendo então revelado que fora informado de que os socialistas alemães e austríacos obedeceriam à ordem de mobilização geral, pelo que nessa mesma noite iria escrever um artigo a que daria o título “En Avant!”, no qual defenderia a posição do Governo francês. Mas Pierre Renaudel, que assistiu à audiência com Abel Ferry, relatou que, quando Jaurès afirmara que denunciaria a política de guerra, Ferry se teria limitado a responder “Mais, mon pauvre Jaurès, on vous tuera au premier coin de rue!”.


Jean Jaurès

 
   O homicídio de Jaurès gerou grande tensão nos meios socialistas e no Governo, este ansioso pela possível reacção popular. O Primeiro-Ministro Viviani emitiu então um apelo à calma: “... o governo conta com o patriotismo da classe operária e de toda a população para manter a calma” e prestou homenagem ao “republicano socialista que lutou por causas tão nobres e que, nestes dias difíceis, no interesse da paz, apoiou com a sua autoridade a acção patriótica do Governo.”
  No dia seguinte, 1 de Agosto, foi anunciada a mobilização geral. Nesse mesmo dia, no seu jornal La Guerre Sociale, o antigo defensor da insurreição operária, Gustave Hervé, apresentaria três títulos de primeira página:
 
DEFESA NACIONAL EM PRIMEIRO LUGAR

ASSASSINARAM JAURÈS

NÓS NÃO ASSASSINAREMOS A FRANÇA
 
    O funeral de Jaurès, em 4 de Agosto, teve assistência diminuta. A sua morte não gerou nenhuma manifestação nem qualquer alteração da ordem pública. Houve profunda emoção, mas esta surgiu mais como uma marca da impotência perante a evolução dos acontecimentos, já profundamente interiorizada na consciência dos franceses. As exéquias do grande tribuno, do “campeão da paz”, seriam consideradas a primeira manifestação da União Sagrada.
   O Governo compreendeu. O Ministro do Interior telegrafou aos dirigentes policiais locais, determinando que as medidas do Carnet B, que previam o encarceramento preventivo de vários líderes socialistas e sindicalistas, não fossem aplicadas, por desnecessárias.



Tropas belgas, 1914
 
 
Na Alemanha, depois de aturadas discussões em que a tudo se sobrepunha o receio de o primeiro ataque partir da Rússia, depois de uma audiência de dirigentes socialistas com o chanceler Bethmann-Helweg em 3 de Agosto, dia em que a Alemanha declarou guerra à França, depois de um enviado do S.P.D. ter atingido Paris e apurado que os seus congéneres franceses apoiariam o seu governo se a França fosse atacada pelos exércitos alemães, depois de tudo isso, enfim, no dia 4 de Agosto o S.P.D. votou a favor da proposta do Governo:
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    “... trata-se de dissipar esta ameaça, de garantir a civilização e independência do nosso país. Aplicamos um princípio sobre o qual sempre insistimos: não abandonamos a nossa pátria na iminência do perigo.”

 
  O mais poderoso partido socialista do mundo, uma organização política que programaticamente se afirmava inspirada por princípios revolucionários, juntava os seus votos aos dos outros partidos, na aprovação unânime de uma lei essencial para o esforço de guerra alemão. Curiosamente, aquelas palavras foram proferidas no Parlamento por Hugo Haase, um dos poucos sociais-democratas que queriam votar contra o novo orçamento. E bastaram para que o Governo declarasse a Burgfriedenpolitik, uma trégua que supunha a ausência de críticas à governação e à condução da guerra e a inexistência de greves.


Hugo Haase
 
    Também os socialistas austríacos apoiaram o seu Governo, aproveitando esse momento para declarar a sua solidariedade com os operários de todo o mundo e mesmo para “com os sociais democratas da Sérvia”. A S.F.I.O., por seu turno, não hesitou quando se tratou de votar o orçamento de guerra. Logo após o início da guerra, quatro dirigentes socialistas franceses, Jules Guesde (este, que era radical e gostava de se apelidar marxista, o que levou Karl Marx a afirmar, em 1883, “o que é certo é que eu não sou marxista”, acabou Ministro sem pasta em 1914), Marcel Sembat (ministro de 1914 a 1916, o seu chefe de gabinete foi um tal Léon Blum), Jean Longuet (neto de Marx, Charles Maurras chamava-o de “quarto de boche”) e Édouard Vaillant, aos quais se juntou o belga Émile Vandervelde, enviaram ao Secretariado Socialista Internacional um manifesto:
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    “Os trabalhadores, destituídos de qualquer pensamento de agressão, estão certos de defender a independência e a autonomia da nação contra o imperialismo alemão, de defender o direito dos povos a disporem de si mesmos (...). Consideram que o progresso social passa previamente pela defesa da pátria.”


Ramsay Macdonald


 
     Em 1 de Agosto, a secção britânica da Segunda Internacional pedia, em manifesto, que se realizassem “amplas manifestações contra a guerra” e acrescentava que  “a vitória da Rússia, no momento atual, seria uma maldição para o mundo”. Poucos dias depois, a 5 de Agosto, realizou-se de emergência uma conferência  das organizações operárias britânicas, que se limitou a “tomar uma série de resoluções sobre as medidas destinadas a diminuir a miséria que a guerra iria trazer à classe operária”. O Partido Trabalhista apoiaria maioritariamente a guerra. A 24 de Agosto de 1914 os trabalhistas ingleses anunciaram “tréguas industriais” e a 29 a direcção do partido aprovou uma resolução que importava a participação na campanha de recrutamento. Entretanto, o seu líder Ramsay Macdonald, encontrando-se em minoria, demitiu-se, sendo substituído por um defensor do esforço de guerra, Arthur Henderson. Mais tarde, MacDonald seria Primeiro-Ministro em dois governos trabalhistas e num National Government, de 1931 a 1935, totalmente dominado pelos conservadores, onde se limitava a ser uma presença simbólica. O novo líder, Henderson, viria a ser, em 1916, o primeiro trabalhista com um cargo governamental, como ministro sem pasta. No entanto, em Agosto de 1917 passou-lhe pela cabeça propor ao Cabinet que fosse permitido enviar delegados ingleses a uma conferência de paz internacional que se iria realizar em Estocolmo. O Primeiro-Ministro Lloyd George opôs-se ferozmente, forçando-o a demitir-se. Em 1934 seria compensado com a atribuição do Prémio Nobel da Paz.
   Apenas na Sérvia e na Rússia os socialistas, sem qualquer peso parlamentar, se mantiveram intransigentemente pacifistas e condenaram a ação dos seus governos. Lenine chegou a defender posições “derrotistas”, entendendo que tudo era preferível à vitória da Rússia, que seria, inevitavelmente, um sucesso do czarismo. Mesmo assim, na Rússia houve algumas excepções notáveis, como a de Plekhanov, o pai do marxismo russo (mais tarde, viu na revolução de Fevereiro a antecâmara de um regime democrático burguês, que anunciava a vitória do socialismo, e instaria Kerensky a tomar fortes medidas repressivas contra os bolcheviques que deitariam tudo a perder por querer a revolução já contra todas as leis do materialismo histórico).


Pietr Kroptokine
 

 
    Também o velho anarquista Kropotkine, nascido em 1840, depois de um intensa vida de combate revolucionário, acabou apoiando a intervenção russa, mas em 1917, quando foi convidado para integrar o Governo provisório como Ministro da Educação, recusou por tal ser contrário aos princípios anarquistas. Veio a falecer em 1921. No seu funeral proferiu um discurso uma sua grande amiga, a americana Ema Goldman, que em 1917 tinha organizado no seu país a No Conscription League, porque “os anarquistas opõem-se à conscrição: somos internacionalistas, antimilitaristas e opomo-nos a todas as guerras dos governos capitalistas”. Assim, também o movimento anarquista se dividiu: o momento mais grave surge quando Kropotkine, o francês Jean Grave, o holandês Christiaan Cornelissen, o japonês Sanshiro Ishikawa assinam o Manifeste des Seize em 1916, advogando a vitória dos Aliados em nome do movimento anarquista. Para tornar a iniciativa ainda mais difícil de engolir para muitos correlegionários, o manifesto foi publicado num jornal socialista pró-guerra, o La Bataille.
    Como foi isto possível? Como foi possível que estes revolucionários, quantos deles perseguidos e encarcerados por muitos anos pelos Estados cujo direito a fazer a guerra agora defendiam, pudessem ter mudado assim de posição? Acontece que, desde há muitos anos, esses Estados estavam, nas palavras de Eric Hobsbawm, a “travar uma guerra silenciosa pelo controlo dos símbolos e dos ritos da raça humana no interior das fronteiras nacionais”. E estavam a ganhar essa guerra.
 
 
José Luís Moura Jacinto
 
 
 
 

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