Começaremos
por enunciar uma banalidade: não é possível ou é, pelo menos, muito difícil
fazer história sem arquivos ou sem acesso aos arquivos.
A
história da justiça do período subsequente ao 25 de Abril tem começado,
lentamente, a fazer o seu caminho.
Porém,
a sua concretização neste domínio não é fácil pela disseminação arquivística do
sector por vários locais e pólos diferenciados que não proporciona aos
investigadores um acesso linear às fontes documentais.
Mas
o que ora nos importa não é a dimensão
física das dificuldades mas a sua vertente legal, ou seja, reflectir sobre
a adequação da legislação arquivística existente, nomeadamente, na que
regulamenta o acesso aos processos individuais de saneamento, sem os quais
dificilmente se terá uma imagem fiel dessa realidade.
Nessa
matéria, vigora o regime geral da inacessibilidade da documentação respeitante
aos processos individuais de saneamento, abrangidos, no entendimento seguido no
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, pelo estipulado no célebre n.º 2 do art.º
17º da Lei Geral de Arquivos, Decreto-Lei n.º 16/93 de 23 de Janeiro de 1993,
que refere “2 - Não são comunicáveis os
documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou
clínico, bem como os que contenham dados pessoais que não sejam públicos, ou de
qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou a
intimidade da sua vida privada e familiar e a sua própria imagem, salvo se os
dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contém, sem perigo de
fácil identificação, se houver consentimento unânime dos titulares dos
interesses legítimos a salvaguardar ou desde que decorridos 50 anos sobre a
data da morte da pessoa a que respeitam os documentos ou, não sendo esta data
conhecida, decorridos 75 anos sobre a data dos documentos”.
Este
dispositivo legal foi inspirado pela Lei do Património Histórico Espanhol – Lei
16/85, de 25 de Junho, que previa um prazo de 25 anos sobre a data da morte, ou
no desconhecimento desta data, 50 anos sobre a data do documento, quando este
encerra dados de carácter pessoal, ou seja, a nossa lei acrescentou, de forma
inexplicável, 25 anos à sua congénere ibérica. Refira-se também a
subjectividade de vários conceitos presentes neste normativo (conceitos
subjectivos de honra e intimidade aferidos por um terceiro…) e o escasso
funcionamento da cláusula de salvaguarda do expurgo, apenas possível desde que,
mesmo assim, não exista perigo de fácil
identificação. Ou seja, na dúvida tenderá a desconfiar-se do investigador e
recusar-se a consulta (aliás, o expurgo pode ser trabalhoso e a mão de obra não
abunda…).
Importaria
ter um quadro legal razoável e equilibrado, conciliador dos vários interesses
em presença, potenciador da transparência de procedimentos, da previsibilidade
dos comportamentos normativos, com a possibilidade de reacção recursiva simples
e adequada no caso de preterição da lei.
Nada
disso parece estar assegurado nesta matéria vital.
A
norma em causa foi objecto, em tempos, de muita crítica, manifestando
avisadamente Fernando Rosas a sua oposição a tal dispositivo, ao defender que “os investigadores não pretendem devassar a
vida privada de ninguém a troco de desígnios obscuros”, pretendendo a
restrição do “campo da subjectividade
decisória” nesta matéria e preconizando “regras gerais de restrição de acesso de 20 ou 30 anos e rodeando a
classificação das excepções de mecanismos de consulta aos utentes e de meios de
recurso das decisões tomadas” «Política de arquivos: crime sem castigo» in História n.º 7, Abril de 1995, p. 9.
Recentemente,
na qualidade de investigador, solicitei por escrito ao Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, o acesso aos processos de saneamento na área da justiça. Tal
acesso foi-me negado reiterando aquela entidade, através da invocação genérica
da supra citada norma, que só poderão ser consultados “se houver autorização do próprio titular do processo ou desde que
decorridos 50 anos sobre a data da morte da pessoa a que respeitam os
documentos ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos sobre a data
dos documentos”.
Com
este dispositivo que, supomos, esteja a ser aplicado igual e uniformemente a
todos, é bom de ver, que dificilmente esta geração terá ainda hipótese de
consultar estes documentos.
E,
na verdade, o seu acesso seria fundamental para analisar, nomeadamente, o tipo
de imputações efectuadas e a defesa dos visados nos processos de saneamento:
que argumentos foram invocados e esgrimidos. E poderia facilmente
estabelecer-se, se necessário, o compromisso de não identificação das pessoas
concretas visadas nesses autos nos trabalhos a publicar.
A
comparação deste regime, altamente restritivo, com a liberdade de consulta e
publicitação de conteúdos de processos judiciais, não sujeitos a segredo de
justiça, muitas vezes com vastas e ponderosas informações sobre a vida privada
de cidadãos em plenitude de vida torna-se completamente incongruente e absurda.
A lógica do ferrolho sobre o passado e da porta escancarada e da devassa
autorizada para a actualidade é certamente um triste sinal dos tempos sobre o
qual importará reflectir.
Embora
não fazendo parte da agenda mediática, seria importante rever, com brevidade, o
regime legal que potencia o fechamento arquivístico injustificado de uma fatia significativa
da nossa história ou o enviesamento da sua acessibilidade.
Só
dessa forma poderemos ter os arquivos como um património colectivo, potenciador
de conhecimento e de leituras plurais e diversas sobre o passado.
Luís
Eloy Azevedo
O D.-L. 16/93, Lei Geral dos Arquivos, espelha bem os pontos de vista pessoalíssimos do então director da Torre do Tombo, o historiador Jorge Borges de Macedo. Aos novos prazos introduzidos por essa lei lei acresciam ainda, por política interna do director, estúpidas restrições em matéria de reprodução dos documentos. Podia-se ler certos documentos, mas não se podia pedir fotocópias deles. Claro, alguns investigadores mais bem equipados passaram a usar scanners portáteis para digitalizar os documentos à socapa, olhando à esquerda e à direita, como quem rouba laranjas no quintal do vizinho. A este respeito conto uma história. No Arquivo da PIDE/DGS encontrei uma longa carta que me tinha sido enviada por um familiar, mas que eu, então a residir no estrangeiro, nunca recebi. Tinha sido confiscada por essa tal corporação de voyeurs e ladrões, que diariamente abria e palmava o correio de pacatos cidadãos. Quando pedi fotocópia da carta, que tinha mais de dez páginas, foi-me recusada. Mandei então um recado ao senhor director Borges de Macedo através da responsável da sala de leitura: ou me forneciam uma fotocópia da carta, que era MINHA, ou eu ia para tribunal exigir a devolução de toda a correspondência que me foi endereçada e que a PIDE/DGS ilegalmente desviou e confiscou. Passados uns minutos lá veio a fotocópia.
ResponderEliminarJosé Barreto