Há
pouco, saiu entre nós a tradução de um livro do inenarrável Andrew Morton sobre
as simpatias nazis dos duques de Windsor. O título não engana: 17 Cravos. A Realeza, os Nazis e o Maior Complô da História. Assim, sem tirar nem pôr. Antes dele, muito antes, fora
publicado em 1986 o livro Operation Willi. The Nazi Plot to Kidnap the Duke of Windsor, de Michael Bloch, que,
por razões misteriosas, nunca mereceu tradução portuguesa, que eu saiba. Em
contrapartida, as memórias de Walter Schellenberg (1910-1952) foram editadas em
Portugal há muitos anos, com a chancela da Ulisseia, e uma tradução algo
periclitante de Juliane Haerdter.
Walter Schellenberg foi um dos protagonistas
principais – talvez mesmo, o principal – da Operação Willi, o plano nazi para
raptar os duques de Windsor em Portugal, onde viviam na linha do Estoril, na
casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva. A vida de Schellenberg mostra
bem até que ponto os filmes de espionagem ficam a milhas da realidade: metido
em mil e uma operações das arábias, foi amante de Coco Chanel, usando-a nas
suas actividades mais que clandestinas. No final da guerra, ainda tentou
negociar a paz com os Aliados, pensa-se que sob as ordens de Himmler, tendo-se
deslocado a Estocolmo para esse efeito pacífico. Julgado em Nuremberga, foi
condenado a uma pena leve, alegadamente por razões de saúde. Na prisão,
escreveria as suas memórias, as tais que a Ulisseia publicou, com o título A Conspiração do Silêncio. É daí que se
extraiu um trecho que refere a passagem de Schellenberg por Lisboa, com o
objectivo – que, aliás, o próprio fez sabotar – de raptar o ex-rei Eduardo
VIII, que acabou a caminho das Bermudas, em gozo de merecidas férias. Para uma primeira abordagem a este episódio, recomenda-se o livro de Irene Flunser Pimentel, Espiões em Portugal Durante a II Guerra Mundial (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 83ss).
(…)
estávamos sem grandes notícias de Lisboa. Parece que o duque não manifestava
grande pressa em ir à tal caçada. Quanto mais reflectia mais à conclusão
chegava de que toda a história tivera por base algumas opiniões impulsivas, sem
grande valor, portanto. «O melhor», pensei, «era partir imediatamente para
Lisboa, onde poderia formar opinião mais segura».
Para
estar pronto a partir mandara comprar e encomendara para Lisboa um carro
americano e um outro mais rápido dos serviços secretos. Um alto funcionário
português que contava entre os meus amigos tomara todas as disposições para
que, uma vez ali, residisse em casa de uma eminente família de judeus
holandeses. No entanto, visitei primeiro o amigo japonês que encontrara
recentemente em Lisboa, quando da missão a Dacar. Recebeu-me com grandes
manifestações de amizade. Pedi-lhe que me arranjasse informações precisas
acerca da residência actual do duque de Windsor, número de entradas da casa,
andares ocupados, criadagem e medidas de segurança respeitantes ao duque. Sem
qualquer reacção a tais pedidos, o meu amigo acolheu-os com o habitual sorriso,
polido e cativante. Limitou-se a profunda vénia dizendo: «Para obsequiar um
amigo, não há tarefas demasiado pesadas.»
À
noite dei um pequeno passeio pela cidade e depois subi a colina escarpada onde
estava instalada a embaixada da Alemanha e de cujas janelas se desfrutava uma
vista maravilhosa sobre o porto e a embocadura do Tejo. O embaixador, von Huene, fora informado da minha
visita e recebeu-me cordialmente. Um tanto surpreendido com a autoridade de que
eu vinha investido, afirmou-me repetidas vezes estar inteiramente à minha
disposição. Pu-lo ao corrente da missão, acrescentando que, com toda a
honestidade, chegara à conclusão de que não poderia ser levada a bom termo.
Entretanto, tinha de tentar fazer o melhor porque, quando o Führer tomava uma
decisão desse tipo, não havia discussão possível. Pedi-lhe que me ajudasse,
arranjando-me o maior número possível de informações para que me fosse possível
fazer uma ideia do mais aproximadamente exacta da verdadeira atitude do duque.
O embaixador admitiu ter ouvido dizer que o duque não estava satisfeito com a
situação que lhe fora criada, mas que os boatos exageravam muito.
Combinámos
alguns pormenores sobre as comunicações com a Repartição Central de Berlim e
discutimos depois problemas gerais de Portugal. A influência britânica era
grande, mas, por outro lado, temia-se que os Estados Unidos decidissem
servir-se do país como testa de ponte para uma invasão mediterrânica, da África
especialmente. A agitação no país era ainda grande, embora Salazar tomasse
medidas muito enérgicas e pertinentes para equilibrar a economia. E também não
devia subestimar-se a influência soviética nas grandes cidades, especialmente
em Lisboa. O potencial do exército português aumentara, mas não podia
considerar-se um factor determinante, salvo talvez no que dizia respeito às defesas
costeiras, objecto de cuidados atentos, A polícia portuguesa trabalhava com
método e contava com extensa rede de informadores. Havia competição entre
ingleses e alemães para adquirirem influência dominante junto dela.
Quando
o embaixador von Huene se sentiu mais
confiante disse-me que se sentira tranquilizado ao compreender que a minha
missão não consistia em tornar mais tensas as relações entre Portugal e a
Alemanha. Falámos depois do incidente de Venlo. Disse-me ter recebido sobre o
assunto informações inteiramente dignas de crédito e muito interessantes. A
Grã-Bretanha e a França acreditaram realmente na existência de uma séria
conspiração dentro do exército alemão, o que influenciara a respectiva política
de maneira muito mais decisiva do que queriam admitir. Principalmente a França,
cujo governo chegara à ridícula conclusão de que a Alemanha estava de tal modo
enfraquecida interiormente pela oposição ao regime nazi que não podia
considerar-se um inimigo de temer.
No
dia seguinte voltei a casa do meu amigo japonês. Graças à sua organização
fizera trabalho excelente. Deu-me um desenho detalhado da casa, com o número de
criados e de guardas fornecido pela polícia portuguesa. Esclareceu-me também
acerca das forças de segurança britânicas e sobre detalhes da vida rotineira da
casa.
À
noite tive longa conversa com o meu outro amigo, o português, Sabia que estava
em dificuldades financeiras e por isso ofereci-lhe imediatamente uma boa soma
em troca de um quadro completo da situação entre os altos funcionários
portugueses. Passada uma hora tinha comigo as informações pedidas. A influência
britânica, baseada em tradição e experiência antigas, era incontestavelmente
maior; mas, por outro lado, o terreno ganho recentemente pela Alemanha era
surpreendente. Senhor de todas essas informações e gastando dinheiro à larga,
desenvolvi então uma considerável actividade subterrânea.
Lisboa, 1938
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Em
dois dias estabeleci estreita rede de informações em volta da residência do
duque. Conseguira substituir a guarda da polícia portuguesa por gente da minha
confiança. Também arranjara informadores entre os criados, de tal modo que ao
fim de cinco dias estava ao facto dos mínimos incidentes e de todas as palavras
pronunciadas na casa do duque, Também o meu amigo japonês trabalhava à sua maneira,
discreta e eficaz, e a sociedade portuguesa constituiu uma terceira fonte de
informações, Ao fim de seis dias tinha um quadro completo da situação; o duque
de Windsor já não tinha ideias de ir à tal caçada; andava muitíssimo aborrecido
com a estreita vigilância de que era alvo por parte dos serviços secretos
britânicos; a nomeação para governador das Bermudas não lhe agradava e preferia
nitidamente poder ficar na Europa. Contudo, não tinha a mínima intenção de ir
viver para um país neutro ou inimigo. Segundo o que pude obter, limitara-se a
afirmar, certo dia, num círculo de amigos portugueses, que preferia ir viver em
qualquer país da Europa que ir para as Bermudas.
Apesar
disso, todos os meus informadores eram de opinião de que talvez fosse possível
influenciar o duque, principalmente se se conseguisse aumentar a aversão, já
então viva, contra a guarda secreta. Por isso consegui que um alto funcionário
da polícia portuguesa prevenisse o duque da necessidade de reforçar a polícia
por causa da vigilância exercida pelo serviço de informações inglês ou pelo
inimigo. Como Portugal não sabia de qual deles se tratava, preferia tomar as
suas precauções. Nessa mesma noite organizei um incidente no jardim da casa:
pedras atiradas contra os vidros, e a seguir uma busca minuciosa à casa, o que
criou, naturalmente, certo clima de agitação. Foi o momento de lançar entre a
criadagem o boato de que o incidente fora suscitado pelos serviços secretos
britânicos, que desejavam tornar a estadia do duque o menos agradável possível,
para o forçarem a seguir para as Bermudas. Quatro dias depois entregaram à
porta da casa um ramo de flores acompanhado de um bilhete: «Tome cuidado com as
maquinações do serviço secreto britânico – Um
amigo português que muito zela os vossos interesses!»
Tudo
isto, é certo, não tinha grande importância mas contribuía para criar uma
atmosfera de suspeita e mal-estar. Tinha de agir de uma maneira ou de outra,
pois de Berlim reclamavam notícias a toda a hora, e esses incidentes, um tanto
dramatizados, serviam de alimento aos relatórios que tinha de enviar.
Ao
fim de uma semana o meu amigo japonês recomendou-me a maior prudência, pois
estava convencido de que os serviços secretos britânicos estavam atentos. De
facto, tivera a sensação de ser seguido por dois agentes britânicos e fizera o
possível por os despistar. (Quando, em 1945, fui interrogado pelos serviços
secretos britânicos percebi que na altura nada sabiam dos meus planos e
ignoravam até a minha presença em Portugal).
As
respostas de Berlim eram cada vez mais frias. E de repente, ao fim de uma
quinzena, um telegrama de Ribbentrop: «O Führer ordena que o rapto seja
organizado imediatamente.» Era um golpe inesperado e, tendo o duque intenções
tão pouco conformes aos nossos objectivos, um rapto seria acaba loucura. Que
fazer? Estava convencido de que fora Ribbentrop quem provocara a ordem. Via a
situação de um ponto de vista falso e provavelmente – mais que provavelmente –
falsificara os meus relatórios para melhor persuadir Hitler a sancionar esta última
loucura.
O
embaixador ficou tão aborrecido como eu, embora lhe desse a garantia imediata
de que não tinha qualquer intenção de cumprir a ordem. À noite discuti a
questão com o amigo japonês. Pareceu-me ler-lhe no olhar uma ponta de desprezo.
Ficou muito tempo silencioso e depois disse-me: «Uma ordem é uma ordem e deve
ser executada. E, afinal, não deve ser assim tão difícil. Terá todo o apoio e a
ajuda de que necessitar e o elemento surpresa jogará a seu favor. O seu
«Führer», prosseguiu, depois de outra pausa, «sabem com certeza porque quer ter
o duque de Windsor na mão. Que quer realmente de mim? Saber como cumprir a
ordem ou como desembaraçar-se dela?»
Surpreendido
e ferido por o meu amigo ter julgado necessário chamar-me ao cumprimento do
dever, tentei explicar-lhe que Hitler tomara a decisão baseado em informações
falsas.
Com
um leve gesto, respondeu: «A maneira como há-de justificar.se perante o seu
Führer não é, precisamente, da minha conta. Não percamos tempo; vejamos antes
como poderá iludir a ordem. Você não pode ficar mal – quer dizer, temos de
arranjar as coisas de maneira a que a sua acção se torne completamente
impossível. Nesse ponto não posso ajudá-lo, pois não tenho qualquer influência
sobre os responsáveis pela segurança do duque, mas a guarda deve ser reforçada
de tal modo que qualquer recurso à força seja impossível. Acuse, se quiser, um
funcionário da polícia portuguesa dizendo suspeitar que trabalha para os
ingleses. Pode mesmo ir ao ponto de organizar uma pequena fuzilaria que, naturalmente,
a nada conduzirá. E talvez, se tiver um bocadinho de sorte, o duque perca o
domínio dos nervos e acuse os seus!»
Nada
mais tínhamos a dizer. Deixei, vagarosamente, a casa do amigo japonês. Estava
uma noite esplêndida, clara e estrelada, mas eu não conseguia encontrar a paz.
Tinha de resolver uma situação das mais espinhosas, tanto mais que era
impossível sondar a atitude dos dois guarda-costas que Heydrich me impusera
ridiculamente.
Nessa
noite jantei num restaurante com o meu amigo português. Estava estafado e com
pouca vontade de falar do assunto, mas só para ver a reacção disse: «Amanhã
tenho de fazer o duque de Windsor atravessar a fronteira à força. E o plano tem
de ficar, totalmente, em ordem esta noite.»
O
amigo saiu do seu habitual torpor quando me ouviu dizer: «Com quantas pessoas,
que devem sair do país logo a seguir, posso contar? E quanto poderá custar
tudo?»
O
português pareceu-me aterrorizado: «Mas não posso ser responsável por um
incidente desses. Pode haver morte de homem. E seria extremamente difícil, não
só aqui, mas na fronteira…» Desenhava nervosamente figuras geométricas na
toalha utlizando a faca. Depois de um longo silêncio, deu-me a resposta
definitiva: «Não, não posso servi-lo se levar o duque pela força. A coisa
sabe-se inevitavelmente e acho que o prestígio do seu país sofrerá. Além disso
a ordem não fala na mulher. Tem razão, por detrás de tudo isto está, com
certeza, Ribbentrop. Mas sejamos realistas: se acha que deve executar a ordem
não lhe criarei dificuldades, mas não posso ajudá-lo!»
Respondi
então que partilhava da mesma opinião. Ficou visivelmente aliviado e foi com
entusiasmo, pode dizer-se, que examinou comigo a maneira de iludir a ordem. No
outro dia de manhã tomou as disposições necessárias para que à guarda da casa
fossem acrescentados mais vinte agentes. O caso provocou imediato aumento das
forças de segurança inglesas. Dei parte dos dois factos a Berlim e pedi
instruções complementares.
Durante
dois dias de verdadeira ansiedade deixaram-me sem notícias. Por fim recebi uma
resposta lacónica: «É responsável pelas medidas adaptadas à situação.»
Mensagem, na verdade, pouco amena, mas provando que Berlim começava a encarar o
assunto de modo um pouco mais sensato.
Entretanto
o tempo passava e aproximava-se a data da partida do duque de Lisboa. Sir Walter Monckton, manifestamente
funcionário dos serviços secretos britânicos, chegou de Londres para se
assegurar de que o duque partiria na data marcada.
Para
salvar as aparências comuniquei a Berlim, através de um relatório, as seguintes
informações que me teriam sido fornecidas por um funcionário da polícia que
trabalhava – sabíamos – para os ingleses: entre o duque e os serviços secretos
britânicos levantara-se grande tensão nos últimos dias: o duque estava decidido
a ficar na Europa mas havia forte pressão contrária. O serviço secreto
britânico, com o objectivo de provar o perigo que o duque corria, por causa dos
serviços secretos estrangeiros, tencionava colocar uma bomba ao retardador no
navio, bomba que devia explodir horas antes da partida para as Bermudas,
tomando-se naturalmente todas as medidas para que o duque não fosse vítima.
Dados estes alarmes, a polícia portuguesa andava enervada, cheia de agitação e
actividade. As medidas de segurança tinham sido reforçadas, o que me levava a
insistir, uma vez mais, na impossibilidade do rapto.
No
dia da partida do duque estava no salão da torre da embaixada alemã observando
a cena com o meu binóculo. O barco parecia tão próximo que tinha a sensação que
lhe poderia tocar. O duque e a duquesa subiram para bordo à hora marcada e vi
também Monckton. Certa agitação em torno das bagagens de mão, pois a polícia
portuguesa, no seu zelo, queria também revistá-las. Por fim, o navio levantou
ferro e desceu o grande estuário do Tejo. Voltei lentamente a casa. Estava
encerrado mais um capítulo.
Walter
Schellenberg
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