segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Porto, 1834.

 
 
 
Planta topográfica do Porto, 1839
 
 
 
         Simplesmente maravilhoso: Michael Patrick, professor jubilado de engenharia da Universidade de Exeter, participa actualmente numa investigação histórica que se tem dedicado a estudar a  indústria têxtil na região de Cullompton. Daí ter-se debruçado sobre as relações comerciais havidas no início do século XIX entre o industrial William Upcott e Carlos Luiz Ahrends, comerciante de origem prussiana estabelecido em Lisboa. A meio da pesquisa, o Professor Patrick «tropeçou» numa carta inédita, de John Upcott para o seu pai, William. Fez chegar uma transcrição da missiva à Ana e ao José Lopes, que a traduziram e que tiveram a generosidade imensa, inaudita, de a enviar para o Malomil. Não conheço pessoalmente a Ana e o José, nem Michael Patrick, mas agradeço-lhes – muito, muitíssimo. Partilhada em primeira mão com os estimados leitores, Porto 1834, uma carta de John Upcott para seu pai, devidamente transcrita, anotada e traduzida (note-se que, por vezes, há «saltos» no texto, correspondentes a dificuldades intransponíveis na transcrição da caligrafia do jovem inglês).  
 
 

Porto, visto das Fontainhas, gravura de Batty, 1829

 
 
 
Porto, 9 de Agosto de 1834
 
 
Meus queridos Pais,
 
 
         Espero que tenham recebido antes desta todas as cartas que vos escrevi até à de 2 de Agosto, na qual dou conta da minha chegada aqui. Na última que vos enviei foi-me grato responder à vossa de 22 de Julho e teria gostado de, antes de começar a escrever esta, ter recebido missiva das vossas queridas pessoas. Porém, soube esta manhã nos Escritórios que o correio ainda não tinha chegado, sendo apenas esperado para amanhã. Faço sinceros votos de que esta vos encontre de perfeita e feliz saúde e já vislumbro o prazer de um feliz reencontro dentro de três semanas ou um mês, sendo que tenho por certo que tal deliciosa sensação será mútua.
         Pela minha última carta terão ficado a saber que tencionava partir daqui na próxima segunda-feira no African Steamer. ([1]) Soube entretanto que o Royal Tar (o navio que trouxe de Lisboa a Comitiva Real) regressou a Lisboa na passada quarta-feira levando a bordo Dona Maria, D. Pedro e o séquito, tendo lá aportado na sexta-feira de manhã. De lá zarpará para Londres ([2]) no domingo ou na segunda-feira de manhã, esperando-se que por volta de terça-feira faça aqui escala para conveniência de passageiros. Como pretendo ir a Londres ver se faço algum negócio, tenho aqui uma excelente oportunidade. Trata-se de um esplêndido barco, onde se conseguem as melhores acomodações; nada que se compare aos barcos franceses, imagino… Estou, assim, a pensar chegar a Londres por volta de 20 de Agosto  (a 21 é o meu aniversário), ficar por lá só alguns dias e dar então um salto a Shortlands. ([3]) Estejam descansados que, assim que chegar a Londres, escrevo.
         Lamento dizê-lo mas, por aqui, o negócio dos lanifícios de Devonshire está praticamente de rastos. Mesmo assim, consegui ser apresentado à Casa mais influente que se propõe encomendar algumas Serafinas ou Simpitirnas ([4]) caso as consigamos adaptar a um mercado estrangeiro, o que lhe (Castro Pereira) assegurei estarmos habilitados a fazer. Ele prefere comprar aqui na Alfândega e estaria disposto a fazer uma pequena encomenda à consignação, ou seja, uma vez os artigos aqui, se não corresponderem exactamente ao que foi encomendado ficariam por nossa conta. Cresswell ([5]) não faz nada cá e há muito que desistiu. --- Consegui alguns padrões de vários artigos remetidos por Casas de Yorkshire. Algumas  Rayitas Alconcheres são por cá vendidas mas eles são tão persistentes que não vão comprar nem aceitar nada até verem os fardos das mercadorias na Alfândega a um preço que ele acabe por achar conveniente e (para me facilitar) as coisas nesta minha iniciativa poderá ser enviada uma pequena amostra de mercadorias para o Sr. Rowe, que é um tipo às direitas --- Consegui, em parte, tratar da conta do Cox e, assim que chegar, informarei o meu pai do resultado --- Depois de muitas chatices por causa do problema levantado por Ashworth a respeito das Serafinas, acabei por conseguir convencer o Sr. Wilton de que a culpa era deles dado que, até pelo que eles próprios mostraram, é evidente que deram as medidas erradas, pois as peças deveriam ter vindo com 30 polegadas em vez de 26.
         Mas chega de negócios – nos quais, mesmo sem ter  conseguido retirar grandes vantagens do facto de estar presente, tenho estado diariamente mergulhado – e vou dedicar algumas linhas a contar-lhes as distracções da semana e falar-lhes do Porto, cidade de que estou a gostar muito e que preferiria de longe  (pelo melhor clima) a Lisboa. O ar é tão salutar e saudável que me sinto retemperado e perfeitamente em casa aqui. Também estou confortavelmente instalado e na companhia de um muito inteligente, afável e educado grupo de cavalheiros ingleses, que têm sido de uma extrema cordialidade para comigo. Teria gostado de ficar por cá mais tempo mas de modo algum quereria ter perdido uma oportunidade como a que agora me foi oferecida. A cidade tem estado entusiasmadíssima com a visita da família e comitiva reais na terça-feira de manhã. Soube que pretendiam visitar a Capela e Cemitério Ingleses, local dos mais agradáveis. Logo à entrada depara-se com canteiros de flores propositadamente escolhidas e lindamente arranjados de onde emanam envolventes fragrâncias. Tudo é mantido na máxima perfeição podendo-se deambular sob frondosas árvores que proporcionam um fresco e agradável passeio. Com efeito, este Cemitério, no que ao asseio respeita, supera o de Lisboa. Às 11 horas chegou a família Real de coche (puxado por quatro mulas). D. Pedro tinha à sua direita a Rainha e à esquerda a Imperatriz, sendo esta uma mulher muito bonita e com ar inteligente. A Rainha tem muito bom aspecto e assume, por vezes, uma atitude afável, mas é, de um modo geral, bastante inexpressiva. A dignidade do seu ar confere-lhe uma certa rigidez e, em vez dos 15 anos que efectivamente tem, dir-se-ia ter pelo menos 25. Fiquei muito agradado com o Imperador, que parece ser um homem muito inteligente e com um ar caloroso e agradável, embora se apresentasse extremamente pálido devido à doença que recentemente o afligiu.
         Conversou despreocupadamente com os Clérigos – e pareceu bastante agradado com a gentil mistura de Saúde, Beleza e Moda preparada para o receber. Retiraram-se após um passeio de cerca de meia-hora, durante o qual tive excelentes oportunidades de com eles falar de perto pois foram várias as vezes que estivemos próximos. Ao entardecer entretive-me num agradável passeio à volta da cidade e a atravessar a Ponte de Madeira, a partir da qual se tem uma perspetiva de Vila Nova, no outro lado do Douro, muito bonita e até romântica em alguns sítios. Assim que o sol se põe escurece logo porque, estando mais próximos do equador, o crepúsculo é, evidentemente, mais curto. Tive, por isso, que recolher cedo. Na quarta-feira, por volta das 2 horas, família Real e comitiva embarcaram no Royal Tar com destino a Lisboa por entre bandas de música, hurras e lenços a acenar, tudo isto transpirando alegria. Com efeito, o Douro pejado de barcos com toldos coloridos, grupos de pessoas nas elevações sobranceiras e um sol brilhante a banhar tudo isto resultava num animado e agradável efeito. Eu tive a sorte de estar a bordo do Ibis (um navio mercante) quando o Royal Tar desceu lenta e graciosamente o rio. Quando passou junto a nós demos três calorosos vivas que foram correspondidos com uma mui cortês vénia do Imperador, que estava no convés acenando com o chapéu. Estava um sol deveras inclemente, mas o que eu teria dado para o ter junto de mim a apreciar este espectáculo. Jantei a bordo --- na companhia de alguns simpáticos amigos --- Como sabe, jantei no domingo em casa do Sr. Roughton, um cavalheiro deveras cortês e agradável. Depois do jantar demos uma volta para ver as várias posições e baterias das facções Miguelista e Pedrista e em todas vimos sinais evidentes de um cerco severo e da firme resposta que lhe foi dada. Com efeito, é rara a casa que não tenha tido a visita de companhias tão agradáveis como as 24 PraaderyAssim que W. K. saiu de sua casa, foi esta completamente arrasada pelos tiros e granadas das Batarias inimigas. Nunca foram alojamentos muito agradáveis mas dominavam o mais pitoresco cenário da Barra (O Sr. R. estava em Inglaterra durante o cerco) --- Tenho-me esquecido de dizer que deve ter ficado surpreendido por, ao receber a minha última carta, ter apenas pago  portes a partir de  Falmouth, mas acontece que o agente do Sr. Gage ia para Falmouth no African e ofereceu-se amavelmente para ser portador --- Acompanhei-o a remar até St. John’s, no domingo, quando ia a casa do Sr. R. No último sábado passei um serão muito agradável. Fui convidado pelo Sr. Shears Jr. para uma muito respeitável festa de aniversário do Sr. Shears. Tivemos um esplêndido jantar, com o seu quantum de Vinho (a propósito, vi-me obrigado a ser muito abstémio) durante o qual houve canções, brindes, sentimentos à solta, Discursos e cada um de nós teve que cumprir a sua parte.
         Recolhi por volta das 11 horas, deveras deliciado com o programa da noite. Entre outros Cavalheiros, tivemos a presença do Sr. Clark, um cavalheiro que viajou bastante pela América do Sul e está ligado ao Comércio com o Brasil. É muito inteligente e divertido e passámos vários serões agradáveis desfrutando a mútua companhia. Visitei o Sr. Willey que foi de uma cortesia extrema ao dar-se conta de que partirei em breve; tivesse ele sabido que eu estava no Porto, ter-me-ia convidado para jantar com o Duque de Terceira, que tinha jantado com ele um ou dois dias antes -- fez-me um convite para sábado, que eu aceitei. A Srª W. é uma mulher muito bonita com quem foi fácil conversar. Fiquei à conversa com eles cerca de uma hora e, como deve calcular, falámos um pouco de tudo.
         Na sexta-feira, pela manhã, fiz um muito agradável passeio, ou antes -escalada, até ao convento da Serra, de onde se desfruta uma vista de todo o Porto e uma bastante romântica e rural perspectiva dos campos envolventes. Ainda há pouco era um Convento muito rico, estando agora (depois de ter servido como guarnição militar durante o último cerco) quase totalmente deitado abaixo, tantas foram as ameaças de fogo, os tiros, os tremores que sobre ele diariamente se abateram. Estava na posse da facção dos Pedristas. Tivessem-no os Miguelistas tomado e o Porto teria muito provavelmente caído, tal é o valor estratégico do ponto onde o Convento se encontra.
         Levantei-me e observei durante algum tempo a cena inédita que me rodeava, e posso garantir-lhe que se me apresentou como verdadeiramente inédita. No sopé do monte podiam ver-se bandos – bandos não; multidões – de camponeses com os seus novos modelos de fatos (um chapéu imenso e pequeno saiote) a atravessarem descalços a Ponte de Madeira a caminho do mercado da fruta; vistos cá de cima, pareciam do tamanho de crianças. Os barqueiros a navegarem para cima e para baixo. Todas estas cenas são de molde a divertir um estrangeiro e, mesmo vistos daqui, surgem muito diferentes, no trajar e nos modos, dos de Lisboa – refiro-me aos camponeses. Atente-se na cidade e o que nos é dado ver é, efectivamente, muito bonito. É tocante ver, nas várias colinas, uma casa por cima da outra e, nos sopés, uma permanentemente verde quietude rural que é um descanso e uma alegria para a vista. Quanto ao outro lado da elevação bastará dizer que o cenário é muito bonito, é-se presenteado com uma deliciosa perspectiva que combina um cenário Campestre simultaneamente rural e romântico, várias moradias que espreitam entre mangais e pinhais captam-nos o olhar com impressões tão agradáveis que deveriam ser retidas para sempre. Por um instante pensa-se na nossa casa e deseja-se que os amigos estivessem ali connosco para também desfrutarem daquelas cenas. Na descida foram-me proporcionadas várias vistas muito bonitas pois a paisagem é tão variada e impressionante que surge sempre um motivo de interesse em cada lado para onde se olhe. A Ponte de Madeira é, como o meu Irmão se há-de lembrar, bastante bonita vista do Convento e está assente em Barcas de um modo muito curioso mas seguro. O resto desse dia foi dedicado a compras. (Ontem pela manhã, tal como tínhamos combinado, eu e um grupo navegámos rio acima  cerca de 6 milhas. O cenário que se nos ia apresentando à medida que íamos subindo o rio é, garanto-vos, tão delicioso e ---- que os meus fracos dotes são totalmente inadequados para o descrever: limito-me a um mero esboço pois nem me atrevo a tentar fazer justiça a tão agradável paisagem. Saímos por volta das 11 horas tendo-nos abastecido com cerveja, carne, fruta e um pouco de vinho. O dia estava delicioso, com uma agradável e fresca Brisa que nos foi suavemente empurrando rio acima a cerca de 6 nós por hora (com condições destas poderiam bem ter vindo connosco) e estivemos sempre todos muito animados. O rio vai serpenteando e ao desfazer de cada curva algo de novo e irresistível aparece para deleite da nossa imaginação. Maravilhosas Quintas cujo verde se estende até à beirinha de água. À distância vêm-se Conventos e Palácios espreitando por cima de altos --- e --- árvores com muito bom porte. Mas o mais interessante de tudo são as Barcas, sempre para cima e para baixo, de tal modo carregadas de Vinho que os bordos roçam o nível da água e, se não forem dextramente manobradas, afundam. Têm uma enorme vela que é mantida imaculada. Desfraldada esta, a galante Barca navega lentamente rio acima: uma visão maravilhosa. Quanto aos outros aspectos da paisagem, são, como já referi, tão agradavelmente variados, que a cada volta surge um novo motivo de interesse.
         Escolhemos um sítio confortável para onde apontámos e fundeámos e estando, como devem calcular, esfomeados, partilhámos um bom repasto, passámos a tarde em boa harmonia e alegria e demos-lhe bem no Vinho. Estando a maré alta saltámos para o nosso barco e metemo-nos a caminho de casa. Continuávamos alegres e, neste regresso, acompanhavam-nos alguns barcos que começaram a tentar ultrapassar-nos. Como não conseguíamos velejar mas podíamos remar e estávamos dispostos a dar luta --- eu ajudei a remar e, de tanto puxar, estou a sentir as dores --- sentindo-me um bocado partido, mas há-de passar rápido.
         Tenho agora, queridos Pais, que pedir licença para terminar (já não tenho muito tempo para me vestir e ir a casa do Sr. Wiltons) e também pedir que desculpem todas as imperfeições desta e das anteriores cartas, pois sei que devem ter grande dificuldade na análise do seu conteúdo. Creio que não haverá grandes alterações ao meu programa e só espero ter o prazer de brevemente estar junto de Vós e dos meus Caros amigos, embora aqui me sinta perfeitamente em casa, tal como se estivesse sentado na Sala de Shortlands, só que sem a vossa agradável companhia. Fui objecto de grande civilidade e de muitas atenções e estou certo de que se cá ficasse mais um mês conseguiria ser apresentado às mais respeitáveis famílias - isto se houver muitas. Na realidade, o estilo inglês está aqui muito mais presente do que poderiam imaginar. Nunca dei por mim aborrecido nem necessitado de respeitável sociedade,  pois esta nunca me faltou.
         Muitas vezes me pergunto como irá a labuta diária em Shortlands e dou comigo a imaginar o que o meu querido Pai terá para fazer, mas espero estar em breve consigo. Para todos os meus Caros amigos, saibam -----  as minhas calorosas saudações, e para a minha querida Irmã  e meu querido Irmão, o meu grande amor; que gozem sempre de Saúde e Alegria é a mais sincera e ardente Oração do vosso devotado e sinceramente afeiçoado Irmão.
(Adeus e que Deus vos abençoe)
                                                                                     John 
 
 
Com a bênção da infalível Providência espero voltar a escrever-vos já de Londres.
 
 
(tradução de Ana e José Lopes)
 
 
 
 
 






[1]          PORTUGAL: (Do nosso correspondente) FALMOUTH, 4 de Agosto. O African, navio a vapôr, zarpou esta manhã para Lisboa com o correio para Portugal. O conde Cabo de S. Vicente  (Almirante Napier) e o Sr. Mendizabel seguiram como passageiros. O Almirante, sendo um Par do Reino de Portugal, foi para estar presente na abertura das Cortes e  pensa-se que o Sr. Mendizabel tenha ido para prestar perante a Câmara uma declaração a propósito da sua conta financeira. Morning Post - Quinta-feira 07 de Agosto de 1834

 


[2]          "O vapôr Royal Tar chegou a Plymouth vindo de Lisboa, de onde saiu a 13 do corrente. Cartas e outra documentação ainda não foram distribuídos mas sabemos que não traz  nenhumas notícias políticas de vulto. A cidade estava tranquila." London Evening Standard - Sexta-feira 22 de Agosto de 1834

 


[3]          Shortlands - A casa e a fábrica da família Upcott em Cullompton.

            .


[4]          Provavelmente variedades de roupas de lã.

 


[5]          Um comerciante concorrente de Exeter.

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