Em boa hora, decidiu
a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa homenagear e agradecer aos
seus benfeitores. No seu belo catálogo de edições, promoveu a publicação de
pequenos livros, biografias da «Colecção Beneméritos». Nuns casos, nomes
sonantes, fortunas vultuosas. Noutros, vidas vulgares, de pouca ou nenhuma
história, mas que nessa vulgaridade adquirem um sentido único, comovente.
Quem
foi Sidónia Ribeiro? É essa a resposta que a jornalista Ana Gomes procura, ao
longo de quase 100 páginas de um livrinho extraordinário. Sidónia dos Santos Ribeiro nasceu em 1920 e
morreu em 2003, tendo designado a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa como
herdeira de todos os seus bens. Pelo meio, há uma vida, 83 anos de existência
terrena. A vida de Sidónia Ribeiro, que nasceu em Lisboa, no ano de 1920.
Filha ilegítima, de pai incógnito, facto que, segundo parece, tê-la-á marcado
para sempre, até ao derradeiro e fulminante instante. A mãe, Luísa Aires Ribeiro, era
natural da freguesia de Alcaide, no concelho de Fundão, onde nasceu em 1900. A
mãe de Luísa (avó de Sidónia, portanto) morreu após o parto, e a menina foi entregue aos cuidados de um
casal de professores, que lhe deram algumas letras mas não duraram muito. Estando
só neste mundo, Luísa foi trabalhar como empregada para um restaurante nas
redondezas. Engravidou do dono do estabelecimento. O pai enjeitou a criança e,
perante o escândalo, Luísa veio para Lisboa, grávida de Sidónia. Ao saber da
paternidade, o homem fora lesto em desembaraçar-se do fardo indesejado: meteu
Luísa num comboio, rumo à capital, deu-lhe algum dinheiro e fim de história. É
já em Lisboa que Sidónia vê a luz do dia, no Hospital de São José ( o nome ter-se-á inspirado no Presidente-Rei?). À data, a
mãe morava perto, na freguesia da Pena, no número cinco, loja, da Travessa do
Torel. Sidónia teve dois meios-irmãos, gémeos nascidos em 1935, com os quais
aparentemente nunca teve uma relação muito próxima. Viveu em vários lugares da capital,
locais onde a mãe servia como empregada doméstica. Do resto, nada se sabe.
Em
1951, andou à roda a volta da Fortuna. Sidónia casou com Daniel Malaquias Brás,
natural da freguesia de Ferragudo, Algarve, enlace formalizado na «mais completa e absoluta
separação de bens». Sidónia vivia à época num primeiro andar da Rua da Ilha de
São Tomé, no Bairro das Colónias, em Lisboa. E Daniel Malaquias é dado, no
registo do casamento, como «empregado de escritório», sendo proprietário de uma
fábrica de estores com loja aberta ao público no Largo do Intendente, em Lisboa.
Um comerciante abastado, portanto. Ao longo da vida, Sidónia jamais teve
profissão, gerindo habilmente os seus bens, administrando com perspicácia as suas aplicações financeiras em Bolsa, ganhando onde muitos perdem. Logo após o matrimónio, o casal foi morar no número 15-A da Rua São
João de Deus, no bairro do Areeiro. Poucos meses depois de casar, Sidónia
adquire em seu nome um prédio acabado de construir no número 7 da Avenida da Igreja, ao Bairro
de Alvalade, em Lisboa, onde residiu ainda uns tempos com seu marido e de cujas
rendas fará a sua principal fonte de receita. Será esse, aliás, o único bem
imóvel que doou à Santa Casa, a par de uma quantia bastante significativa em
dinheiro bancariamente depositado. O prédio ainda lá está, na Avenida da Igreja, nº 7 e 7-A, albergando no piso
térreo a loja de confecções Princesa de Alvalade e a sociedade Rico Sol – Comida Caseira
Limitada, detentora do restaurante Prontinho. Em meados dos anos 50, o casal muda-se
para um sexto andar da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Nascida e criada na
capital, Sidónia aí viverá toda a vida, num perímetro curto, definido entre Alvalade
e Arroios/Anjos. O casal, sem filhos, habitou na Almirante Reis na companhia de
um cão, o Fidalgo, que o senhor
Daniel levava à rua a passear e que, após a morte, foi enterrado no Cemitério
dos Animais de Estimação do Jardim Zoológico de Lisboa. Subitamente, ao fim de
vários anos de vida conjugal, e sem que saibamos ao certo como nem porquê,
Sidónia e Daniel divorciam-se. Estamos no ano de 1981, quando, ao que tudo indica, Sidónia
ainda fumava, e muito. Entretanto, Sidónia – ou «dona Sid», como era conhecida
entre a vizinhança – comprara um apartamento em Cabo Ruivo, diz-se que com
piscina e tudo, mas logo se desfez dele. Teve também um imóvel a Carcavelos,
onde passava os verões. Mas, no final, sobrou-lhe apenas o prédio de rendimento à
Avenida da Igreja, a fonte de sustento daquilo que mais gostava de fazer:
viajar. Viajou muito, especialmente quando casada com Daniel, correndo mundo
atrás de lugares exóticos, incluindo as Cataratas do Niágara, o Peru e a Argentina,
a Rússia e até, pasme-se, o Extremo do Oriente. Desconhece-se que educação
formal teve Sidónia, sabendo-se apenas, por testemunho de vizinhas e porteiras,
que era muito organizada nas contas, impecavelmente arrumada no seu lar, bem cuidada
no trajar. Serviu-a a empregada Judite, anos a fio. Não tinha amigos chegados, excepto talvez um casal que a acompanhou – a ela
e ao marido – em algumas das suas viagens. Tratava-se do senhor Fonseca e da dona Elisa, que moravam na Praça de Alvalade e tinham armazéns que vendiam grão, milho, feijão; gente também abastada, e do comércio. Quanto ao mais, Sidónia ficava os dias em casa, a fazer tricot e a juntar peças de puzzles monumentais, daqueles com três
mil peças, ou mais. Foi tudo o que de mais relevante se encontrou em sua casa,
depois do falecimento. Além disso, jóias preciosas, cautelosamente guardadas
numa gaveta falsa de um móvel com esconderijo. Em 1981, no ano em que se
divorciou, Sidónia filiou-se na Associação Protectora dos Diabéticos de
Portugal (à Rua do Salitre), a única actividade cívica que se lhe conhece. Na
esfera pública, sabe-se das suas saídas à rua, sempre impecavelmente penteada,
descendo de casa para ir almoçar a restaurantes das imediações, onde decerto beneficiava de um atendimento eficiente e bastante personalizado. Em 1984, com 63
anos, casa com Vasco Almiro Simões, natural de Nandufe, concelho de Tondela, cerca
de dez anos mais novo, empresário da União Panificadora de Cascais. O
casamento, porém, não dura mais de três anos. Divorciam-se por razões que a
memória não regista. Sidónia ficou só de novo, e para sempre, na companhia das
suas contas, escrupulosíssimas, e dos puzzles
monumentais, alguns com 3.000 peças, ou talvez mais. Em 1986, morre a sua mãe, Luísa.
Dona
Sid tinha pavor de morrer sozinha, pois sozinha viveu muitas horas da sua existência
obscura. Fez testamento doando todos os seus bens à Santa Casa, pedindo tão-só
que dela cuidassem se acaso ficasse inválida e que a acompanhassem na hora do
seu passamento. Aos 81 anos, foi até ao Largo Trindade Coelho, à sede da Santa
Casa, para iniciar as conversações do contrato, sendo o testamento celebrado em
2002, no Quarto Cartório Notarial de Lisboa. Cerca de um ano depois, Celeste Barata, a porteira do prédio onde morava
estranhou a sua prolongada ausência. Encontraram-na já morta, aos 83 anos.
Tombada no chão da casa, com o telefone na mão, porventura em busca de socorro.
Sidónia morreu só, como temia. Veio ainda o 112, mas Sidónia já estava extinta. A
certidão regista, como causa do falecimento, enfarte de miocárdio motivado por
aterosclerose generalizada. Antes disso, sempre previdente, comprara aos 74
anos um terreno no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, para aí acolher a
sepultura perpétua nº 104. Nessa ocasião, encomendou à firma Sociedade de
Mármores Central da Boa-Hora, à Ajuda, uma sepultura rasa de mármore. É nela
que Sidónia manda inscrever as singelas palavras «À memória de Emídio Rogério
Aires Cabrita», o seu-meio irmão, falecido em 1990. Sidónia far-lhe-á companhia
eterna a partir de 2003. Ao velório afluiu pouca gente: a porteira, uns
inquilinos, meia-dúzia de vizinhos. Dela se despediram na Igreja de São Jorge
de Arroios, onde foi velada a 9 de Outubro de 2003. Depois, no dia seguinte, o
cortejo subiu a Morais Soares e fez-se o funeral, junto à campa nº 1940 no Alto
de São João. «Socialmente, acho que não foi uma pessoa muito feliz»,
confidencia a porteira, testemunho corroborado Gracinda Cabrita, inquilina do
rés-do-chão do prédio de Alvalade: «no fundo, acho que era uma pessoa muito
só». A sobrinha recorda que a tia, quando mais nova, gostava de envergar um
vistoso fato de cabedal vermelho, composto por calças e blusão. Para os
serviços fúnebres, foi convocada a empresa A Funerária Cristã dos Anjos, Lda.,
situada no mesmo quarteirão onde vivia a falecida. Os familiares mais chegados ficaram
algo surpreendidos quando souberam que os bens de Sidónia, e a sua razoável
fortuna, de mais de 500 mil euros, foram legados em exclusivo à Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa.
No apartamento onde morreu Sidónia, além de puzzles e jóias, havia muitos álbuns com
fotografias de viagens.
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