domingo, 13 de novembro de 2016

Lisboa, 1973.

 
 
         Apesar de louvado e até premiado, o romance Cinzas de Abril, do espanhol Manuel Moya (n. 1960), é bastante desconchavado. Da capa já se falou aqui. O interior nem merece crítica. No entanto, como nesta série «Estrangeiros sobre Portugal», também interessa fazer uma recensão dos clichés e dos lugares-comuns que sobre Lisboa e sobre Portugal se escreveram e escrevem, apresenta-se um trecho de Cinzas de Abril, editado em Portugal em 2012 com tradução de Henrique Tavares e Castro. Não é fácil datar a acção, sabendo-se que decorre antes do 25 de Abril de 1974. Por comodidade, colocou-se «1973», o que, de resto, não é especialmente relevante.

 

 
Lisboa, 1973
Fotografia de Arnim Schulz

 
 
         Eu acabara de fazer dezoito anos e estava farto de tudo e de todos. Depois de sucessivos fracassos escolares, procurara empregos fugazes na construção civil e, durante um par de anos, contribuí para o bem-estar da família, mas custava-me o cheiro a repolho cozido que parecia estar incrustado nas paredes da casa e decidi voar por minha conta, de tal modo que, aproveitando um trabalho perto do Estoril, mudei-me para o litoral, onde trabalhava cinquenta horas por semana, e regressava a casa quando precisava de lavar a roupa ou me chegava a saudade dos pratos de bacalhau e dos croquetes, que ninguém sabia fazer como a minha mãe. À noite, cansado como um jumento, costumava percorrer o passeio marítimo e os arredores do casino à procura de aventuras insólitas, para depois, se a coisa não pegava, me deixar arrastar pelos últimos vaivéns turísticos d’A Gata Borralheira, um restaurante de fados escondido numa ruela onde iam parar os turistas mais intrépidos e confusos quanto ao que julgavam ser a cor e o calor locais.
         Longe dos meus, A Gata transformou-se na minha outra casa, e os seus acólitos, em parte da minha família. N’A Gata cantava-se o fado até de manhã, servia-se cataplanas, vinho verde e Porto barato no meio de uma fumarada e de uma barulheira dos diabos. O dono, Miguel Cataló, era um fura-vidas que fumava cigarros Camel uns atrás dos outros e que, segundo contava, tinha percorrido o mundo nesses cruzeiros de Deus a tocar guitarra para uns mariachis e fadistas acabados que agora cantavam na sua casa por pouco mais que o jantar e um par de Macieiras. Não me lembro de como consegui ganhar a confiança do Catalão e que artimanhas usara ele para eu servir à mesa aos sábados de madrugada em troca do calor que encontrava naquelas paredes repletas de fotografias antigas e elementos marítimos. Eu, encalhado no meu velho mundo, viajava através daquelas fotografias que me falavam de portos longínquos e mares de nomes arrevesados, e com isso e quatro aventuras concluídas na praia sentia-me retribuído.
         Há uns meses já que me tornara independente e ganhava uns tostões a carregar betão num hotel em construção que uns alemães estavam a erguer entre o Estoril e Cascais. A minha vida resumia-se a um eterno rodopio em volta de um círculo vicioso em que me encontrava cada vez mais a gosto. O ambiente do Estoril nada tinha que ver com o lisboeta. A costa próxima de Lisboa era uma ilhota de luxo e despreocupação frequentada por turistas forrados de marcos que passavam as noites a cheirar o milagre da ressurreição da carne. O casino, as vivendas nobres e os hotéis de quatro estrelas estavam atestados de turistas famintos de aventuras fáceis e de um luxo que talvez nas suas terras lhes estava vedado, mas talvez por isso mesmo pareciam dispostos a deixar o pilim como se fosse areia. Nestas condições, voltar para a capital era o mesmo que voltar para um lugar ao qual um galeno houvesse administrado um antídoto eficaz contra o tempo. Porque a Lisboa a que eu voltava era purulenta e indigente, banhada numa crescente resignação. A quietude instalara-se nas suas fachadas, que assistiam impassíveis à ressaca colonial do sangue. Cada vez que submergia nas suas ruas, sentia-a mais envilecida pelos fantasmas da indolência. Enquanto entre o Estoril e Cascais tudo era limpeza, ordem, prosperidade, entusiasmo e bulício, em Lisboa vencia-me a ideia de estar a retornar ao coração do velho repolho que, de tanto cozer em fogo lento, há tempos que estava estragado.
         (…)
         O táxi atravessou o Campo das Cebolas como num sonho: de um lado, o Tejo recortado pelas palmeiras, do outro, o velho casario com os lençóis a esvoaçar ao vento. Os raros transeuntes que atravessavam a praça pareciam ter escapado de um postal antigo. Mais à frente, o eléctrico fazia soar a campainha e um vendedor ambulante atravessava a Praça do Comércio a mancar com uma caixa de cartão nos braços, indiferente à estátua de um rei que, farto da cidade, parecia afastar-se para o rio em cima da sua arrogante montada. Ao longo da Rua do Arsenal, com as suas lojas de fruta e de bacalhau, Sophia relembrou os seus dias de férias, quando vinha de Luanda e os seus pais lhe mostravam, solícitos, os meandros de uma cidade que, comparada com Luanda, parecia uma velha senhora um pouco arisca e triste. A Praça do Município surgiu de repente com o seu retorcido pelourinho e a altiva fachada da câmara municipal como num postal da infância. Uma centena de metros mais adiante, a entrada da estação do Cais do Sodré parecia animada, mas o edifício, desproporcionado, de costas para o estuário, presidido por aquele relógio excessivo, tinha toda a pinta de um edifício colonial, e nem mesmo a vendedeira de flores e as pessoas que se amontoavam na entrada conseguiam arrebatar-lhe o seu aspecto ultramarino. Depois, ao atravessar a Madragoa, antes de passar debaixo da ponte, teve a sensação de que voltava a uma cidade embalsamada e sentiu uma tristeza que tinha que ver com a decrepitude. A ponte, altiva, elevava-se como a petrificada labareda de um dragão que, tomada a sua presa, se dirigisse para os outeiros de Almada, do outro lado do estuário.
 
 
Manuel Moya
 
 

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