terça-feira, 8 de novembro de 2016

Portugal, 1972.

 
 


 
 
 
 
Lembro-me bem deste livro, menino e moço na casa de meus pais. La Raya de Portugal/La frontera del subdesarollo, de Antonio Pintado e Eduardo Barrenechea, marcou uma época – o que, em si mesmo, não quer dizer nada, mas enfim. Talvez percebamos melhor do que se trata se soubermos que foi uma reportagem feita no início de 1972 por dois jornalistas do Informaciones Madrid, que deambularam pela raia, entre Espanha e Portugal, e de lés a lés, de Norte a Sul. A raia de Portugal-Espanha. Uma região mais extensa do que a Grécia, três vezes maior do que a Dinamarca, quatro vezes mais vasta do que a Holanda ou a Bélgica. Num livro recente, belíssimo, La España vacía, Sergio del Molino diz-nos algo surpreendente: a Espanha é mais extensa, em superfície, do que o Reino Unido ou do que a Alemanha. Parece mentira, mas é verdade. Quanto a La Raya de Portugal (que bem poderia chamar-se La Raya de España), é, como disse, uma reportagem a quatro mãos, com duas partes, uma para cada autor. Seleccionou-se a visita de Antonio Pintado a lavrador de Beja. Um pormenor decisivo: o livro foi editado pelos Cuadernos para el Diálogo, uma revista e editora que teve um papel fundamental na transição para a democracia em Espanha. Eis o índice e eis um grande livro – o melhor que conheço – sobre os Cuadernos para el Diálogo, da autoria de Javier Muñoz Soro. La Raya de Portugal seria publicado entre nós, pela Afrontamento, em 1974. E basta de conversa, que agora vai entrar em cena:
 
Um fidalgo português
 
Saindo de Beja em direcção ao Norte, a estrada atravessa uma planície com suaves ondulações, uma planície de terra negra dedicado ao cultivo extensivo de cereais e à criação de gado, com árvores dispersas, azinheiras, sobreiros e oliveiras que se perdem na imensidão da paisagem. O Baixo Alentejo é uma província seca e pouco habitada, com núcleos populacionais distantes uns dos outros, e dividido em grandes latifúndios. O «senhor» do «Monte d’Outeiro» passara alguns anos em Angola e tinha no jardim de sua casa uma colecção de animais exóticos: macacos, tucanos, faisões dourados, que davam ao «monte» um certo ar colonial. A casa era uma construção de dois pisos, de aspecto envelhecido e sem um estilo definido. Tinha divisões espaçosas, com um pé direito muito alto, escassamente mobiladas e mal iluminadas. Na casa nada havia de luxuoso nem nada daquela decoração senhorial com que, nos últimos anos, os terratenentes do Sul de Espanha têm embelezado as suas quintas. Apenas nos chamou a atenção, na sala de jantar, um aparador de estilo português, um desses móveis vermelhos com embutidos. A casa tinha o ar sóbrio do antigo senhorio do campo. Habitavam no «Monte» umas cinco ou seis famílias de trabalhadores e empregados, que ocupavam umas construções de um só piso, situadas nos dois lados da casa. Ali viviam o intendente ou encarregado, os capatazes, os moços, pastores e outros homens que serviam como criados. Os trabalhadores do campo moravam numa aldeia situada a três ou quatro quilómetros da herdade. A população dessa aldeia dependia economicamente do «Monte d’Outeiro» - uma herdade com uns 1.000 hectares – e de outras propriedades de características idênticas situadas nas suas imediações.
 
 
 
 
 
 
Não tardámos muito a dar-nos conta do tipo de relações que prevalecia entre os proprietários e os trabalhadores rurais. Deve salientar-se que a pessoa de que estamos a falar era um homem culto, engenheiro de profissão e que tinha o que agora se chama uma concepção social da propriedade agrária. Tratava os seus empregados com uma cortesia afectuosa e notava-se que gostavam dele, sobretudo quando pensavam no que lhes podia ter saído em sorte numa região latifundiária e senhorial como o Baixo Alentejo. O nosso amigo era a antítese de um proprietário absentista. Renunciara a uma brilhante carreira em Lisboa para tomar conta da propriedade que herdara dos seus pais. Homem de uns cinquenta e cinco anos, solteiro, estudioso das técnicas agrícolas mais avançadas, administrava primorosamente a sua herdade. Tinha, por exemplo, gráficos completíssimos da pluviosidade nas suas terras, na zona agrícola onde se encontrava e em toda a região do Alentejo, e fizera estudos aprofundados sobre a produção cerealífera da Península Ibérica, em comparação com outros países europeus. Politicamente, tinha opiniões políticas «abertas» e censurava o autocratismo salazarismo e o «imobilismo» que este trouxera. Dizia que o actual governo começava a ter consciência de que, por exemplo, criticar o plano estatal de regadio «não significa atacar a essência do regime» e, nos últimos tempos, tolerava certa «crítica», por forma a promover a «participação» (direi, entre parêntesis, que a participação é algo parecido ao «contamos contigo» português. Uma análise certeira da mais recente campanha [eleitoral?] levou João Martins Pereira a dizer, no seu comentadíssimo livro Pensar Portugal hoje, que «o jogo da “participação” está viciado desde a base na medida em que hoje se manda participar, tal como ontem se mandava estar calado»).
Mas, e esse é o ponto que interessa, este senhor ilustrado que visitámos personificava, digamos assim, a possibilidade óptima do sistema de latifúndios do Baixo Alentejo. Talvez com esta advertência se possa compreender melhor os episódios que vou contar sobre a nossa visita à aldeia vizinha. Depois de mostrar-nos minuciosamente a herdade, dando um grande passeio de automóvel, o nosso anfitrião quis mostrar-nos a casa de um dos seus trabalhadores. Entrámos com o automóvel pelas ruas tortuosas da aldeia e encontrámos uma multidão de homens que, à nossa passagem, tiravam respeitosamente os chapéus. Depois de darmos várias voltas, fomos parar diante de uma casinha de um só piso, daquelas que têm uma porta que chega quase ao telhado. Chamámos e saiu a abrir-nos a porta uma mulher de meia idade, com um lenço na cabeça, que nos convidou a entrar com grandes demonstrações de cortesia enquanto limpava afanosamente as mãos no avental. O fidalgo explicou-lhe que éramos estrangeiros e que queria mostrar-nos o interior da casa de um trabalhador alentejano. Virando-se para nós, dizia, com meias palavras: «verão que limpa está a casa», «verão que bem está arranjada». A mulher falava muito depressa, desfazendo-se em mesuras. Sentámo-nos na sala de jantar, uma divisão de dimensões reduzidas, pintada de verde, com a Última Ceia, e repleta de móveis de cores escuras. Pouco depois, entraram a filha da dona da casa e uma amiga. Segundo nos disseram, Maria Virgínia, assim se chamava a filha, tinha trabalhado até há poucos dias no escritório do «Monte d’Outeiro» e agora ia casar-se com um «rapaz» de outra aldeia. O rapaz propôs que vivessem no «monte» onde trabalhava, mas a Maria Virgínia horrorizava-a tal ideia – e não era para menos –, conseguindo que, entre as duas famílias, comprassem uma casinha na aldeia. Mostraram-nos o vestido de noiva que Maria Virgínia tinha feito, e o fidalgo olhava para nós, como que dizendo: «estão a ver? Vestido de noiva e tudo!». A outra rapariga, amiga da filha da casa, uma jovem cheia de graça e muito vivaz que se chamava Maria Aurélia, troçava um pouco da situação e do mal dissimulado espanto que tudo aquilo nos causava. Quando o fidalgo e a dona da casa nos levaram à cozinha, ao quarto de dormir e ao curral para que víssemos quão limpa e asseada estava a casa, Maria Aurélia ria-se, dizendo: «aqui há de tudo, tudo, tudo».
         Não sei porquê, durante o passeio pela herdade começámos a falar do folclore espanhol e perguntámos se existia no Alentejo algo parecido à música de Huelva ou da Estremadura. O que fomos dizer! A amabilidade do nosso «fidalgo» não tinha limites. Quando passávamos pelas ruas da aldeia, parou o carro ao lado de um grupo de homens e encarregou um deles, um tal Costas, de organizar uma velada de canto alentejano. Costas pareceu entusiasmar-se com a ideia. Gesticulando aparatosamente, disse algo como «assim, está bem» e foi logo buscar os homens que integravam o coro. Reunimo-nos à noite no chamado «Centro da Alegria no Trabalho», o único edifício público existente na aldeia. O Centro de Alegria no Trabalho, uma instituição corporativista – se é que existem – tinha o aspecto de uma taberna. O fidalgo ofereceu-se a Costas para pagar um par de garrafas, o que não deve ter chegado, pois reuniram-se ali uns dez ou doze trabalhadores. Estavam lá também Maria Virgínia e Maria Aurélia e outras pessoas, bem como muitas crianças que não queriam perder aquela festa improvisada. Ao fundo da sala, não atrevendo a aproximar-se, encontrava-se um grupo de mulheres vestidas de luto, para quem entrar na taberna deveria ser pouco menos do que um acontecimento. Quando chegámos, os homens, dirigidos por Costas, já estavam a cantar. O canto alentejano é, em geral, triste, solene como a paisagem da planície imensa, e é cantado em coro, ainda que por vezes se destaque a voz de um solista, que não é sempre o mesmo, antes variando entre os membros do grupo coral. Há também canções alegres e festivas que, todavia, parecem menos puras e musicalmente inferiores às outras. Costas e os seus companheiros entusiasmaram-se de tal forma que a velada durou mais de três horas, durante as quais cantaram ininterruptamente. Ao terminar uma canção, um dos homens sugeria logo outra e todos exclamavam: «Essa é boa! Essa sim, que é boa!». Ensaiavam-na durante uns momentos em voz baixa e começavam a cantá-la a plenos pulmões, Pedi a uma das raparigas que copiasse a letra de uma das canções festivas no meu caderno:
        
Ó Rita arredonda a saia
         Ó Rita arredonda-a bem
         Que a saia bem redonda
         em qualquer mulher está bem.
 
         Em qualquer mulher está bem
         seja alta ou baixinha
         Ó Rita arredonda a saia
         redondinha, redondinha.
 
         Redondinha, redondinha
         redondinha aos caracóis
         Esta é que é a moda nova
         que trouxeram os espanhóis.
 
         Que trouxeram os espanhóis
         Que trouxeram os franceses
         Esta é que é a moda nova
         dos soldados portugueses.
 
         Aqueles homens sentiam-se felizes por poderem mostrar como era o canto da sua região aos amigos vindos de fora do senhor das terras que cultivavam. Era cerca da meia-noite quando nos despedimos deles e do nosso anfitrião e nos dirigimos a Beja, a partir da qual, na manhã seguinte, continuámos viagem até ao posto fronteiriço de Vila Verde de Ficalho, passando pela amuralhada Serpa, e entrando em Espanha por Rosal de la Frontera, atravessando de uma ponta à outra a serra de Aracena.
 
 
Antonio Pintado
 
(tradução de António Araújo)
 
 

2 comentários:

  1. Um documento muito interessante!
    Parabéns pela sua partilha.

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    1. Muito obrigado pelas suas palavras, tão generosas e simpáticas.

      Cordialmente,

      António Araújo

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