Lembro-me
bem deste livro, menino e moço na casa de meus pais. La Raya de Portugal/La frontera del subdesarollo, de Antonio
Pintado e Eduardo Barrenechea, marcou uma época – o que, em si mesmo, não quer
dizer nada, mas enfim. Talvez percebamos melhor do que se trata se soubermos que
foi uma reportagem feita no início de 1972 por dois jornalistas do Informaciones Madrid, que deambularam
pela raia, entre Espanha e Portugal, e de lés a lés, de Norte a Sul. A raia de
Portugal-Espanha. Uma região mais extensa do que a Grécia, três vezes maior do
que a Dinamarca, quatro vezes mais vasta do que a Holanda ou a Bélgica. Num
livro recente, belíssimo, La España vacía, Sergio del
Molino diz-nos algo surpreendente: a Espanha é mais extensa, em superfície, do
que o Reino Unido ou do que a Alemanha. Parece mentira, mas é verdade. Quanto a
La Raya de Portugal (que bem poderia
chamar-se La Raya de España), é, como
disse, uma reportagem a quatro mãos, com duas partes, uma para cada autor.
Seleccionou-se a visita de Antonio Pintado a lavrador de Beja. Um pormenor
decisivo: o livro foi editado pelos Cuadernos para el Diálogo,
uma revista e editora que teve um papel fundamental na transição para a
democracia em Espanha. Eis o índice
e eis um grande livro – o melhor que conheço – sobre os Cuadernos para el
Diálogo, da autoria de Javier Muñoz Soro.
La Raya de Portugal seria publicado
entre nós, pela Afrontamento, em 1974. E basta de conversa, que agora vai entrar em
cena:
Um fidalgo português
Saindo
de Beja em direcção ao Norte, a estrada atravessa uma planície com suaves
ondulações, uma planície de terra negra dedicado ao cultivo extensivo de
cereais e à criação de gado, com árvores dispersas, azinheiras, sobreiros e
oliveiras que se perdem na imensidão da paisagem. O Baixo Alentejo é uma
província seca e pouco habitada, com núcleos populacionais distantes uns dos
outros, e dividido em grandes latifúndios. O «senhor» do «Monte d’Outeiro»
passara alguns anos em Angola e tinha no jardim de sua casa uma colecção de
animais exóticos: macacos, tucanos, faisões dourados, que davam ao «monte» um
certo ar colonial. A casa era uma construção de dois pisos, de aspecto
envelhecido e sem um estilo definido. Tinha divisões espaçosas, com um pé
direito muito alto, escassamente mobiladas e mal iluminadas. Na casa nada havia
de luxuoso nem nada daquela decoração senhorial com que, nos últimos anos, os
terratenentes do Sul de Espanha têm embelezado as suas quintas. Apenas nos
chamou a atenção, na sala de jantar, um aparador de estilo português, um desses
móveis vermelhos com embutidos. A casa tinha o ar sóbrio do antigo senhorio do
campo. Habitavam no «Monte» umas cinco ou seis famílias de trabalhadores e
empregados, que ocupavam umas construções de um só piso, situadas nos dois
lados da casa. Ali viviam o intendente ou encarregado, os capatazes, os moços,
pastores e outros homens que serviam como criados. Os trabalhadores do campo moravam
numa aldeia situada a três ou quatro quilómetros da herdade. A população dessa
aldeia dependia economicamente do «Monte d’Outeiro» -
uma herdade com uns 1.000 hectares – e de outras propriedades de
características idênticas situadas nas suas imediações.
Não
tardámos muito a dar-nos conta do tipo de relações que prevalecia entre os
proprietários e os trabalhadores rurais. Deve salientar-se que a pessoa de que
estamos a falar era um homem culto, engenheiro de profissão e que tinha o que
agora se chama uma concepção social da propriedade agrária. Tratava os seus
empregados com uma cortesia afectuosa e notava-se que gostavam dele, sobretudo
quando pensavam no que lhes podia ter saído em sorte numa região latifundiária
e senhorial como o Baixo Alentejo. O nosso amigo era a antítese de um
proprietário absentista. Renunciara a uma brilhante carreira em Lisboa para
tomar conta da propriedade que herdara dos seus pais. Homem de uns cinquenta e
cinco anos, solteiro, estudioso das técnicas agrícolas mais avançadas,
administrava primorosamente a sua herdade. Tinha, por exemplo, gráficos
completíssimos da pluviosidade nas suas terras, na zona agrícola onde se encontrava
e em toda a região do Alentejo, e fizera estudos aprofundados sobre a produção
cerealífera da Península Ibérica, em comparação com outros países europeus.
Politicamente, tinha opiniões políticas «abertas» e censurava o autocratismo
salazarismo e o «imobilismo» que este trouxera. Dizia que o actual governo
começava a ter consciência de que, por exemplo, criticar o plano estatal de
regadio «não significa atacar a essência do regime» e, nos últimos tempos,
tolerava certa «crítica», por forma a promover a «participação» (direi, entre
parêntesis, que a participação é algo
parecido ao «contamos contigo» português. Uma análise certeira da mais recente
campanha [eleitoral?] levou João Martins Pereira a dizer, no seu comentadíssimo
livro Pensar Portugal hoje, que «o
jogo da “participação” está viciado desde a base na medida em que hoje se manda
participar, tal como ontem se mandava estar calado»).
Mas,
e esse é o ponto que interessa, este senhor ilustrado que visitámos
personificava, digamos assim, a possibilidade óptima do sistema de latifúndios
do Baixo Alentejo. Talvez com esta advertência se possa compreender melhor os
episódios que vou contar sobre a nossa visita à aldeia vizinha. Depois de
mostrar-nos minuciosamente a herdade, dando um grande passeio de automóvel, o
nosso anfitrião quis mostrar-nos a casa de um dos seus trabalhadores. Entrámos
com o automóvel pelas ruas tortuosas da aldeia e encontrámos uma multidão de
homens que, à nossa passagem, tiravam respeitosamente os chapéus. Depois de
darmos várias voltas, fomos parar diante de uma casinha de um só piso, daquelas
que têm uma porta que chega quase ao telhado. Chamámos e saiu a abrir-nos a porta
uma mulher de meia idade, com um lenço na cabeça, que nos convidou a entrar com
grandes demonstrações de cortesia enquanto limpava afanosamente as mãos no
avental. O fidalgo explicou-lhe que éramos estrangeiros e que queria
mostrar-nos o interior da casa de um trabalhador alentejano. Virando-se para
nós, dizia, com meias palavras: «verão que limpa está a casa», «verão que bem está
arranjada». A mulher falava muito depressa, desfazendo-se em mesuras.
Sentámo-nos na sala de jantar, uma divisão de dimensões reduzidas, pintada de
verde, com a Última Ceia, e repleta de móveis de cores escuras. Pouco depois,
entraram a filha da dona da casa e uma amiga. Segundo nos disseram, Maria
Virgínia, assim se chamava a filha, tinha trabalhado até há poucos dias no
escritório do «Monte d’Outeiro» e agora ia casar-se com um «rapaz» de outra
aldeia. O rapaz propôs que vivessem no «monte» onde trabalhava, mas a Maria
Virgínia horrorizava-a tal ideia – e não era para menos –, conseguindo que,
entre as duas famílias, comprassem uma casinha na aldeia. Mostraram-nos o
vestido de noiva que Maria Virgínia tinha feito, e o fidalgo olhava para nós,
como que dizendo: «estão a ver? Vestido de noiva e tudo!». A outra rapariga,
amiga da filha da casa, uma jovem cheia de graça e muito vivaz que se chamava
Maria Aurélia, troçava um pouco da situação e do mal dissimulado espanto que tudo
aquilo nos causava. Quando o fidalgo e a dona da casa nos levaram à cozinha, ao
quarto de dormir e ao curral para que víssemos quão limpa e asseada estava a
casa, Maria Aurélia ria-se, dizendo: «aqui há de tudo, tudo, tudo».
Não sei porquê, durante o passeio pela
herdade começámos a falar do folclore espanhol e perguntámos se existia no
Alentejo algo parecido à música de Huelva ou da Estremadura. O que fomos dizer!
A amabilidade do nosso «fidalgo» não tinha limites. Quando passávamos pelas
ruas da aldeia, parou o carro ao lado de um grupo de homens e encarregou um deles,
um tal Costas, de organizar uma velada de canto alentejano. Costas pareceu
entusiasmar-se com a ideia. Gesticulando aparatosamente, disse algo como «assim,
está bem» e foi logo buscar os homens que integravam o coro. Reunimo-nos à
noite no chamado «Centro da Alegria no Trabalho», o único edifício público
existente na aldeia. O Centro de Alegria no Trabalho, uma instituição corporativista
– se é que existem – tinha o aspecto de uma taberna. O fidalgo ofereceu-se a
Costas para pagar um par de garrafas, o que não deve ter chegado, pois
reuniram-se ali uns dez ou doze trabalhadores. Estavam lá também Maria Virgínia
e Maria Aurélia e outras pessoas, bem como muitas crianças que não queriam
perder aquela festa improvisada. Ao fundo da sala, não atrevendo a
aproximar-se, encontrava-se um grupo de mulheres vestidas de luto, para quem
entrar na taberna deveria ser pouco menos do que um acontecimento. Quando chegámos,
os homens, dirigidos por Costas, já estavam a cantar. O canto alentejano é, em
geral, triste, solene como a paisagem da planície imensa, e é cantado em coro,
ainda que por vezes se destaque a voz de um solista, que não é sempre o mesmo,
antes variando entre os membros do grupo coral. Há também canções alegres e
festivas que, todavia, parecem menos puras e musicalmente inferiores às outras.
Costas e os seus companheiros entusiasmaram-se de tal forma que a velada durou
mais de três horas, durante as quais cantaram ininterruptamente. Ao terminar
uma canção, um dos homens sugeria logo outra e todos exclamavam: «Essa é boa! Essa
sim, que é boa!». Ensaiavam-na durante uns momentos em voz baixa e começavam a
cantá-la a plenos pulmões, Pedi a uma das raparigas que copiasse a letra de uma
das canções festivas no meu caderno:
Ó Rita arredonda a saia
Ó
Rita arredonda-a bem
Que
a saia bem redonda
em
qualquer mulher está bem.
Em
qualquer mulher está bem
seja
alta ou baixinha
Ó
Rita arredonda a saia
redondinha,
redondinha.
Redondinha,
redondinha
redondinha
aos caracóis
Esta
é que é a moda nova
que
trouxeram os espanhóis.
Que
trouxeram os espanhóis
Que
trouxeram os franceses
Esta
é que é a moda nova
dos
soldados portugueses.
Aqueles homens sentiam-se felizes por
poderem mostrar como era o canto da sua região aos amigos vindos de fora do
senhor das terras que cultivavam. Era cerca da meia-noite quando nos despedimos
deles e do nosso anfitrião e nos dirigimos a Beja, a partir da qual, na manhã
seguinte, continuámos viagem até ao posto fronteiriço de Vila Verde de Ficalho,
passando pela amuralhada Serpa, e entrando em Espanha por Rosal de la Frontera,
atravessando de uma ponta à outra a serra de Aracena.
Antonio
Pintado
(tradução
de António Araújo)
Um documento muito interessante!
ResponderEliminarParabéns pela sua partilha.
Muito obrigado pelas suas palavras, tão generosas e simpáticas.
EliminarCordialmente,
António Araújo