1. Entre 1972 e 1973 as relações
pessoais e políticas entre Marcelo Caetano, Presidente do Conselho, e António
de Spínola, Governador da Guiné, agravaram-se progressiva e irremediavelmente.
Em meados de 1970, para a
redacção final da proposta de revisão constitucional, Marcelo Caetano retirara-se
para o Buçaco e apenas trocou opiniões com Spínola, que, das termas do Luso, o
visitara para cumprimentos. Escrevendo anos depois, já ambos afastados do poder
e em conflito intelectual, apresentaram versões diferentes da conversa. Spínola
afirma ter exposto a sua visão quanto à solução do problema ultramarino e
entregue, a pedido, um trabalho intitulado “Algumas ideias sobre a estruturação
política da Nação”, que depois viria a constituir a base do seu livro Portugal e o Futuro [1]. Marcelo Caetano
declara ter tido necessidade de dar uma lição de Ciência Política e Direito
Constitucional e penitencia-se «de ter imprudentemente metido oficiais de
cavalaria em esferas de conhecimento onde facilmente podem desvairar»[2].
2. Em 1971, aprovada a revisão, as
relações entre ambos ainda eram de grande convivência e convergência, embora as
ambições de Spínola fossem crescentes. Por carta de Bissau, de 11 de Julho de 1971,
expressara o seu «mais vivo aplauso» sobre a revisão, apesar do «difícil quadro
conjuntural criado à volta de tão importante como inadiável passo», afirmando a
sua «total identificação» com o pensamento de Marcelo Caetano [3].
Renovado o seu mandato como Governador da Guiné, e na sequência de vária
correspondência, informou Marcelo Caetano, por carta de 18 de Junho de 1972,
que decidira recusar uma proposta de candidatura à Presidência da República,
sobre a qual, aliás, haviam falado aquando de anterior estadia de Spínola em
Lisboa [4]. Mas,
na verdade, antes disso já Almeida Bruno – que dirigira e preparara o processo
dessa eventual candidatura – obtivera vários aliados e falara pessoalmente com
Marcelo Caetano[5]. Logo de seguida, este escreveu
a Spínola aconselhando-o a não se candidatar porque «com os apoios que lhe eram
oferecidos, estaria a tomar uma atitude antipatriótica»[6]. E,
por cartão de 22 de Junho, recebida a carta de Spínola sobre a desistência,
congratulou-o por não se ter prestado «a ser bandeira de uma oposição sem êxito
eleitoral», que só o apoiaria «para criar um clima revolucionário» [7].
Fracassara, no ovo, a eventual “coligação” Spínola- Marcelo Caetano.
3. Na sequência da revisão
constitucional, a Lei Orgânica do Ultramar foi publicada em meados de 1972. As
divisões no regime eram evidentes. Os próprios autores materiais quer da
reforma constitucional quer da proposta dessa Lei Orgânica reconheceram que as
coisas não tinham corrido bem, tinham provocado «certa celeuma» e sido «objecto
de críticas contraditórias» [8].
A construção jurídica do novo regime de
autonomia concluiu-se, depois de ouvidas as províncias e o Conselho
Ultramarino, com a outorga do Estatuto de cada uma das sete províncias
ultramarinas, em Dezembro de 1972. Sobre o Estatuto da Guiné levantou-se uma
grave divergência entre Spínola e Marcelo Caetano, envolvendo também o Ministro
do Ultramar, Silva Cunha, a quem cabia a aprovação do respectivo decreto. Além
deste caso, duas outras questões opuseram Marcelo Caetano, Silva Cunha e
Spínola: a eventual abertura de conversações com o PAIGC e as entrevistas
concedidas por Spínola aos jornais Diário
de Lisboa e República, cujas
publicações não foram autorizadas.
4. Tudo somado, no fim de 1972
Spínola estava politicamente desiludido [9].
As diligências para a
abertura de negociações directas com o PAIGC ocorreram primeiro em Maio e
depois em Outubro, e foram rejeitadas pelo Conselho Superior de Defesa Nacional
e por Marcelo Caetano. O seu desenrolar é bem conhecido e não cabe neste texto.
As referidas entrevistas merecem
uma referência, limitada à abordagem da questão da autodeterminação. Em Julho,
usando pela primeira vez tal terminologia, Spínola havia sustentado
expressamente não serem de temer «os riscos de autodeterminação quando esta
seja determinada no seu puro sentido e se tenha confiança na capacidade
própria»; mais, era através dela que se contruía a autêntica unidade nacional e
a política de continuidade de Portugal em África. Mas se, com o conceito de
autodeterminação, se pretendesse porventura referir a autonomia, também não
havia motivos para receios pois ela era indispensável à continuidade e unidade
da nação portuguesa. Por sua vez, a “livre opção” era corolário do princípio da
autodeterminação e Spínola aceitava que teria de objectivar-se pela via formal
do plebiscito. Contudo, na conjuntura, não era, de forma alguma, o caso da
Guiné, pois esta não só constituía parte integrante de uma Nação independente
como sobretudo «as suas populações vinham demonstrando à evidência, com o peso
iniludível da vontade da esmagadora maioria, a sua inequívoca adesão à actual
política da Administração Portuguesa» [10].
5. A proposta (governamental) de
Estatuto da Guiné foi analisada e discutida na sessão conjunta do Conselho
Legislativo e do Conselho do Governo realizada em Bissau a partir de 16 de Outubro
de 1972. No discurso inaugural, Spínola, após expor a sua análise do contexto,
desenvolveu aqueles que considerava serem os três pontos fundamentais da
evolução política: i) ampla autonomia dos territórios ultramarinos, que tinha
de consubstanciar-se na consagração dos órgãos electivos de governo próprio e
na descentralização da competência legislativa; ii) adequada representatividade
com exclusão de sentimentos paternalistas, apontando para a institucionalização
dos Congressos do Povo e, a nível central, uma proporcionalidade adequada;
iii)- necessidade de conferir a todos os territórios ultramarinos «estruturas
coerentes com o espírito comunitário do todo em construção, para que este seja
efectivamente aceite pelas comunidades a integrar»[11].
Na sequência de seis
sessões conjuntas do Conselho Legislativo com o Governo da Província foram
apresentadas 34 propostas de alteração (que, essencialmente, conformavam um
novo projecto), mas as principais sugestões não foram atendidas pelo Ministro
do Ultramar na redacção final do Estatuto: a designação honorífica de Estado, a
criação de Secretarias Provinciais, a eleição por sufrágio directo dos vogais
da Assembleia Legislativa e o alargamento da competência da Assembleia
Legislativa[12].
Efectivamente, perante o projecto
de Estatuto enviado de Bissau, Spínola foi expressamente chamado Lisboa por o
Governo entender que tais alterações violavam o disposto na Constituição e na
Lei Orgânica do Ultramar ou, como disse Marcelo Caetano em tom depreciativo,
para «lhe ser explicada a hierarquia constitucional das formas jurídicas
(Constituição, Lei Orgânica, Estatutos…)» [13].
Também num tom algo ressabiado, Spínola escreve que «o manifesto propósito»
desta chamada a Lisboa e da controvérsia criada era demiti-lo do cargo, demissão
essa que estivera “iminente” [14].
A discussão entre ambos
vai decorrer por via epistolar, envolvendo as três causas de divergência antes
referidas, em termos que, em grande medida, anteciparam a polémica originada
pela publicação, um ano depois, do livro Portugal
e o Futuro [15].
6. Em 26 de Fevereiro de 1973,
Marcelo Caetano escreveu a Spínola, começando por anotar alguns elementos sobre
o mal-estar deste último relativamente ao Governo e, sobretudo, recriminando-o
pelas alterações na proposta de Estatuto da Província e pelas entrevistas que
havia concedido, sem a sua autorização nem o seu conhecimento[16].
A resposta de Spínola foi
quase imediata e bastante extensa, pois aproveitou a oportunidade para
«esclarecer posições» e, também, justificar as declarações através de discursos
e entrevistas. Na parte relativa ao seu pensamento, recordou os dois documentos
reservados que havia “depositado” nas mãos de Marcelo Caetano: o primeiro, de
1970, em que propunha «uma solução política de tipo federativo em clima de gradual
transformação de estruturas, fundamentada na vontade nacional»; o segundo, de
Maio de 1972, referente ao «aproveitamento da porta que então foi aberta pelo
Presidente Senghor para um cessar-fogo na Guiné». Reiterava, portanto e em
suma, ser na fórmula de autonomia progressiva radicada na comparticipação
crescente das massas africanas – tal como, aliás, «em boa hora» fora anunciada
pelo próprio Marcelo Caetano – que se encontrava «a única solução ainda
possível», a qual não podia «deixar de ser a outorga do estatuto de estados
federados aos territórios ultramarinos, de forma harmónica e progressiva, mas
desde já admitida e revelada, em ordem a criar um clima de aceitação
internacional que nos permita comandar a evolução dos acontecimentos» [17].
Na carta subsequente,
Marcelo Caetano considerou esta correspondência «necessária e oportuna».
Passando à questão de fundo, destacou os seus esforços para encontrar uma
solução política para o problema ultramarino, sublinhando não acreditar que ela
passasse por negociações com o inimigo. Não só este estava «apostado em
expulsar os brancos de África» como não se podia abrir qualquer precedente,
pois que era na África Austral que se jogava verdadeiramente o destino
ultramarino português e se fosse só na Guiné tudo seria «muito mais fácil».
Quanto à sugestão federalista também ele pensara, em 1961, que seria uma
solução aceitável pela opinião internacional. Hoje, sabia que não era e a
experiência francesa, e mesmo britânica, mostravam, «de facto, ter sido apenas
um estádio para a independência»[18]. Em
Agosto, Spínola regressou a Portugal (e ao seu futuro).
7. Entretanto, o Estatuto
Político-Administrativo da Província da Guiné entrara em vigor a 1 de Janeiro
de 1973. Como nas demais províncias, as eleições dos órgãos de governo próprio
realizaram-se em Março de 1973. Com escassa representatividade e consequência,
criticadas pela imprensa estrangeira e repudiadas pelos movimentos de
libertação[19]. De nada valeram, porque
em 24 de Setembro desse ano foi proclamada unilateralmente a República da
Guiné-Bissau. Já nascera, então, em Bissau, o Movimento das Forças Armadas
(MFA). Seguindo Spínola, também a sua equipa foi regressando a Portugal e o
“spinolismo” desaparecendo da Guiné.
António Duarte Silva
[1] António
de Spínola, País sem Rumo, Lisboa,
Editora Scire, 1978, pp. 65/66. Ver Luís Nuno Rodrigues, Spínola, Lisboa, A Esfera dos livros, 2010, pp. 149 e segs.
[2]
Marcelo Caetano, “Notas à margem do livro de António de Spínola País Sem Rumo,
Lisboa, 1978” apud Joaquim Veríssimo Serrão, Marcelo Caetano – Confidências no exílio, Lisboa, Verbo, 1985, p.
362.
[3] In José Freire Antunes
(org.), Cartas Particulares a Marcello
Caetano, 1.º Volume, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, p. 151.
[4] Ibidem, pp. 153/154.
[5]
“Entrevista com o General Almeida Bruno”, in Manuel Bernardo, Marcello e Spínola, a ruptura, Lisboa,
Edições Margem, 1994, pp. 322/323.
[6] Cfr. Mário
Matos e Lemos, O 25 de Abril, uma
síntese, uma perspectiva, Lisboa, Editorial Notícias, 1986, p. 27.
[7] In Luís Nuno Rodrigues, Spínola, cit., p. 159.
[8] Silva Cunha, O Ultramar, a Nação e o “25 de Abril”,
Coimbra, Atlântida, 1977, pp.
282/287.
[9] Maria
Inácia Rezola, Fotobiografias do Século
XX – António de Spínola, Círculo de Leitores, 2002, p. 79.
[10]
António de Spínola, “Autêntica Unidade Nacional”, entrevista concedida ao
jornalista Avelino Rodrigues, do Diário
de Lisboa, em 26 de Julho de 1972, apud Por
uma Portugalidade Renovada, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1973. Ver,
sobre a posterior reportagem do mesmo jornalista e nova entrevista, em 9 de
Setembro de 1972, do mesmo teor, Mário Beja Santos, História(s) da Guiné Portuguesa, V. N. Famalicão, Editora Húmus,
2015, pp. 208/214.
[11] António de Spínola, “O
fundo do problema”, in Por uma
Portugalidade Renovada, cit. pp. 163/169.
[12] “O que a Guiné pediu e
obteve em matéria de estatutos”, in Expresso,
n.º 1, 6 de Janeiro de 1973, p. 2.
[13]
Marcelo Caetano, “Notas à margem…”, cit., p. 362.
[14] António de Spínola, País sem Rumo, cit., p. 66.
[15] A
correspondência foi arquivada por Spínola numa capilha intitulada “Charutada.
Parada e Resposta (Pres. do Conselho)” – cfr. Luís Nuno Rodrigues, Spínola, cit., p. 675, nota 257.
[16]
“Carta do presidente do Conselho ao general Spínola, governador da Guiné, 26 de
Fevereiro de 1973”, apud Marcelo Caetano, O
25 de Abril e o Ultramar – Três entrevistas e alguns documentos, cit., pp.
99/105.
[17]
“Carta do General Spínola, Governador da Guiné, ao Presidente do Conselho – 6
de Março de 1973”, apud loc. cit.,
pp. 106/116.
[18]
“Carta do presidente do Conselho ao general Spínola, governador da Guiné – 22
de Março de 1973”, apud loc. cit.,
pp. 117/123. Era a primeira vez que Marcelo Caetano referia (e avocava)
expressamente este “Parecer” de 1961.
[19] Ver Silva Cunha, O Ultramar, A Nação e o “25 de Abril”,
cit., pp. 284/286
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