Tenho
a sorte – e o privilégio – de ser amigo de um dos filhos do autor, o João (que,
aliás, já escreveu aqui no Malomil sobre o histórico duelo xadrezístico Spassky/Fischer).
Foi através dele que soube da existência destas memórias pessoais e familiares,
que Luís Borges de Assunção pretendeu deixar ao círculo restrito dos seus mais
próximos, dedicando-o aos netos e oferecendo-o a uns quantos privilegiados. Da Serra para a Cidade – Exemplo Biografado
de um Estudante não está, portanto, à venda no «circuito comercial», o que
é pena, pois constitui um extraordinário testemunho de vida, além de um retrato
de um tempo pretérito, a fotografia escrita de um movimento de êxodo rural que
marcou, como poucos, o século XX português.
O
que maravilha e enternece nesta obra é a sua simplicidade, a singeleza com que
o autor apresenta o seu percurso de vida, da infância à conclusão do curso de
Finanças no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Natural de
Travancinha, uma aldeia situada no concelho de Seia, Luís Borges de Assunção
descreve, com alguma nostalgia, a infância aí passada, e as primícias da
juventude, onde o sabor das «tibornas» compensava a falta de luz eléctrica. O
seu pai, agricultor e sapateiro, viera para Lisboa aperfeiçoar a aprendizagem
do ofício, recordando-se que, à época, o rei D. Carlos era um dos poucos
proprietários de automóvel do país, sendo conhecido por «Arreda», dada a
velocidade vertiginosa com que conduzia o veículo pelas ruas da capital. A
memória nem sempre acerta, pois a alcunha era dada, isso sim, ao infante D.
Afonso. Mas deixemos de lado este pormenor automobilístico, concentrando-nos no
essencial: tendo regressado à sua terra natal, o pai abriu um estabelecimento
comercial de venda vinhos, mercearias e miudezas. As suas qualidades de
carácter levaram-no a exercer cargos de responsabilidade na aldeia de
Travancinha, como regedor e presidente da junta de freguesia. Homem de fé
profunda, pertencia à Irmandade do Coração de Jesus. Foi neste ambiente que
Luís cresceu, uma atmosfera que hoje evocamos como bucólica e sadia, na companhia
de cabras de estimação – e «Bonita» e a «Jolie» –, mas cuja agrura da terra
fazia com que muitos ambicionassem de lá partir, em busca de melhor destino. O
irmão Manuel viera para Lisboa estudar, tendo abandonado o curso, facto de que
se arrependeria para o resto da vida. Outro irmão, Francisco, seguiu a carreira
eclesiástica, sendo ordenado sacerdote em 1946. Para o governo da loja, sobrava
portanto Luís, que não quis. Foi difícil vencer o destino de comerciante de
aldeia. O que mais impressiona, na narrativa dos seus tempos de estudante, é a
dimensão do esforço que Luís teve de fazer para concluir o curso. Enquanto
isso, na terra, assistia às discussões sobre a guerra que dilacerava o coração
de uma Europa atormentada. O primo Clemente mostrou a sua clarividência telúrica:
«tu vais ver que esta invasão vai ser o fim da Alemanha porque os soldados
alemães não conseguem aguentar os frios de Moscovo e serão derrotados. Nessa
altura vai ser o fim da amizade da Rússia com os aliados e vai ser a nossa
safa».
Enquanto
estudava em Travancinha, Luís ia tirar dúvidas junto do meu irmão, que dava
aulas no colégio de Oliveira do Hospital. Eram 15 quilómetros para lá, outros
tantos para cá, feitos a pé. Por alturas do exame, dormia num quarto
improvisado, num anexo da casa dos seus pais, para não incomodar quem dormia o
sono dos justos. Chegado o dia da prova, pôs o despertador para as quatro da
manhã e, entre atalhos nas matas, noite escura, com a sacola às costas, apanhou
uma camioneta em Meruge. Chegou a Coimbra eram 9 da manhã, fez o exame, foi aprovado.
Contudo, só mais tarde convenceria os pais a autorizarem-no a vir para Lisboa.
Para tanto, foi decisivo um acaso: num belo dia de Maio de 1946, recebera uma
carta do irmão, já instalado na capital, a comunicar-lhe que mudara de emprego,
pelo que havia uma possibilidade de trabalho, ocupando o seu lugar no Instituto
Sidónio Pais. Ao chegar a Lisboa, após a viagem mais longa que até então fizera
na vida, Luís tinha a aguardá-lo o irmão Manuel, na estação do Rossio. «Tudo
para mim constituía uma maravilha», diz o jovem de Travancinha, concelho de
Seia.
Luís
iniciou funções como vigilante dos alunos internos do Instituto Sidónio Pais, o
monumental edifício que ainda hoje vemos em Xabregas. Nas férias grandes, os
alunos iam para a terra, excepto os dos Açores e da Madeira, devido ao que hoje
chamaríamos os «custos da insularidade»; também Luís regressava a Travancinha,
para voltar a Lisboa no início de Outubro, como prefeito do Instituto, acompanhando
os alunos ao Liceu Gil Vicente, à Escola Comercial Patrício Prazeres, à Escola
Industrial Afonso Domingues. A caminho para o Gil Vicente, Luís Assunção não
perdia a passagem pela Feira da Ladra, começando a conhecer as graças da Lisboa
oriental, da Penha de França à Senhora do Monte. Uns vestígios da boémia
possível, na Ginjinha, na Tendinha, no Café Chave d’Ouro, até no Parque Mayer.
Incomodou-o sobremaneira o facto de, nos alvores da década de 1950, terem
arrasado uma parte da Mouraria e do Martim Moniz, «um verdadeiro disparate e um
atropelo à conservação do património do país», diz, acrescentando: «os
interesses capitalistas têm segredos deveras insondáveis».
A
vida foi prosseguindo, como acontece com todos. As férias em Travancinha, o
regresso de comboio a Lisboa já tarde na noite. Sempre que se apeava na estação
do Rossio, Luís tinha um ritual: ir comer um «Bife à Suíça», na pastelaria com
o mesmo nome. Mais tarde, passou a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia,
estudando à noite. Em 1948, fez exame de admissão no Instituto Comercial de
Lisboa, mas o tempo escasseava para o estudo, feito já depois das aulas, ou aos
domingos, o dia de folga. Ao tempo, não havia quaisquer facilidades para
estudantes-trabalhadores; quando muito, a condescendência de um chefe mais
generoso. De segunda a sábado, às 7h30, Luís ia a pé da Rua da Rosa ao ISCEF,
onde entretanto fora admitido; às 9h45, tomava o eléctrico ao fundo da Calçada
da Estrela, parando no Largo Camões, de onde subia a pé a Rua da Misericórdia, e
assinava o ponto às 10h15. Encerrado o expediente, por volta das 18h00, jantava
e estudava com os colegas, no Café Chiado. Os alunos que trabalhavam já estavam
cansados a essas horas, beneficiando da ajuda de um ou outro estudante ordinário,
que assistira às aulas teóricas e lhes poderia dizer que matérias foram aí
versadas. «Não havia nenhum incentivo para auxiliar quem desejasse estudar e
sair da mediania», lamenta-se Luís, sem amarguras nem ressentimentos. As suas
memórias, aliás, são um exemplo de reconciliação com a vida, sem mágoas, só
saudades. Luís Borges Assunção, entretanto, casou, na Capelinha das Aparições,
em Fátima, sendo o matrimónio celebrado pelo irmão do novo, o Pde. Francisco. Foram
viver para uma casa de renda limitada, na Avenida de Roma, e não fizeram
lua-de-mel, tanto mais que nenhum dos membros do casal tinha automóvel, um luxo
inacessível a quem começara a trabalhar no Metropolitano de Lisboa.
Aos
32 anos, ao fazer a última prova do seu curso, uma oral com Adérito Sedas
Nunes, Luís Borges de Assunção foi aprovado no exame. Saiu dali a correr até
uma cabine telefónica, para fazer duas chamadas: uma, para o seu chefe no
serviço, que o ajudara a concluir a licenciatura; outro, para a mulher, Maria
de Lourdes, que obteve essa tarde dispensa ao emprego. E assim, numa tarde de
Julho de 1957, um casal foi de comboio na linha do Estoril. Alegres, a celebrar.
Lancharam em Paço de Arcos.
António Araújo
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