Caetano Veloso (1942-)
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Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (n. 1942) esteve várias vezes em Portugal, sob o nome «Caetano
Veloso». Uma delas, em 1969, quando rumava a Londres, exilado da ditadura
militar. Aí, passou por Sesimbra – e por um alquimista. Vem tudo contado em Verdade Tropical (Companhia das Letras, 2002),
as memórias do músico, cantor, activista e artista. Não fala muito das
paisagens e das gentes, sendo talvez risíveis e até básicas as suas incursões por Pessoa e
pelo sebastianismo. Mas, sendo Caetano, o seu nome basta para merecer registo.
Ei-lo:
Quando, cerca de um ano mais tarde,
saímos do Brasil rumo ao exílio londrino, passamos antes em Portugal. Meu amigo
Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um
encontro com um senhor português que tomava conta do castelo medieval da colina
e era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifre revirado que se
punham perto do velho como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul
rodeando de longe as muralhas de pedra. A certa altura, Roberto pediu-me que eu
cantasse “Tropicália” para o alquimista ouvir. Não lembro se cantei ou se
apenas recitei as palavras da letra. Mas estou seguro de que comuniquei a
íntegra do texto ao português. Ao final, este olhou-me com uma expressão
exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou a mais insólita
interpretação de “Tropicália” de que eu já tivera notícia. Tudo na letra era
tomado à letra e valorado positivamente. “Eu organizo o movimento”, por
exemplo, significava que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia
dizer “eu” através de mim, organizava um importante movimento; e “inauguro o
monumento no planalto central do país” era clara e meramente uma referência a
Brasília como realização da profecia de são João Bosco. E pronto. Nenhum traço
de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então.
Não lembro se sublinhei o trecho “uma criança sorridente feia e morta estende a
mão” quando tentei explicar-lhe que minhas motivações para compor a canção
tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que tentei discutir o assunto.
Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu
escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o
Brasil, não se mostrou surpreso diante dos meus protestos e, rindo para Roberto
e repetindo “eu sei, eu sei…”, arrematou: “O que sabem as mães sobre os seus
filhos?”. Entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha
composição do que eu. Isso não era novidade: eu já sabia então que as canções
têm vida própria e que outros podem revelar-lhes sentidos que seu autor não
tinha suspeitado. Tampouco era-me de todo desconhecido o aspecto positivo que
aquela canção dava à representação do Brasil. E, mais que isso, eu não era
inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo
assim mesmo – não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza, e
não satiriza facilmente o que odeia. Mas que aquele homem não quisesse levar em
consideração o fato de na minha canção eu estar descrevendo um monstro, que
confirmara sua monstruosidade agredindo-me a mim –, era algo que, à medida que
ia acontecendo, ia-se-me tornando mais fascinante do que irritante.
Mas também eu não era de todo estranho
aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista. O ponto
de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, o intelectual português
que participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de
Brasília, e que, como já contei, durante o período dos grandes projetos
culturais da Universidade da Bahia no final dos anos 50 e início dos 60,
organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador. Esse
pensador heterodoxo disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração
pessoana, e com isso atraiu algumas pessoas que me pareceram atraentes. Não foi
sem pensar nelas que incluí a declamação do poema de Fernando Pessoa no
happening da apresentação do “É proibido proibir”.
Mas eu não tinha embarcado na viagem
desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos, militante. Apenas
me pareceu excitante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e
numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo tentava
falar em mais-valia e em teses científicas de transformar o mundo por meio da
classe operária. Eu conhecia o Fernando Pessoa do “Poema em linha reta” e da “Ode
marítima”. Também o do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o do
poeminha do “fingidor”. (“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que
chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”): eram os poemas que as
meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram
repetidos de cor e que uma ou outra vez eu mesmo lia no exemplar de algum
colega de faculdade. Sabia dos heterónimos e de algum folclore sobre sua vida,
e juntava aqueles poemas ao repertório da poesia brasileira moderna (Vinicius,
Drummond, Bandeira e Cecília, depois também Cabral) e isso era (com os negros
de Castro lves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorac) toda a
poesia que eu conhecia. Com Mensagem era
o Pessoa do poeminha do fingimento que se adensava. Cada peça curta era um
labirinto de formas e sentidos, e, mais importante que tudo, não me parecia
possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua
portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito – e o que mais extensamente
li – era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derramado e
desnecessário. Assim também os poemas de Álvaro de Campos – que eram os mais queridos
das meninas. Mas com Mensagem eu me
sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras, por
causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de ideia parecer estar ali como
uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles
poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.
Todo
o começo é involuntário
Deus
é o agente
O
herói a si assiste vário
E
inconsciente
À
espada em tuas mãos achada
Teu
olhar desce:
“Que
farei eu com esta espada?”
Ergueste-a
e fez-se.
O fato de esse livro – o único que
Pessoa publicou em vida na nossa língua – ter como tema a volta de d. Sebastião
e da grandiosidade de um adiado destino português, enobrecia, a meus olhos, os
interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em
Sesimbra, passei gradativamente do espanto de ver minha canção “Tropicália” – e
a pensar o tropicalismo – também à luz da minha versão do sebastianismo.
Caetano Veloso
O "alquimista" era o sesimbrense Rafael Alves Monteiro.
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