quinta-feira, 19 de abril de 2018

Marcelo Caetano, Ministro das Colónias, e o destino (5).

 
 



 

9.     Do regresso à saída do Ministério (Fevereiro de 1947)
A notícia da dissolução da Assembleia Nacional, o discurso a propósito pronunciado por Salazar em 7 de Outubro[1] e a abertura da campanha eleitoral provocaram «um verdadeiro levante» em Angola e grande desassossego em Marcelo Caetano[2]. Chegado a Lisboa, assistiu, após as eleições realizadas em 18 de Novembro, a uma reunião da Comissão Central da União Nacional e da sua Junta Consultiva, onde até tivera «pena de Salazar» perante o que se apresentava como «balanço do que se passara»[3]. Segundo um seu crítico, Marcelo Caetano – que teria pedido a demissão quando ainda se encontrava em Luanda[4] – passara a servir-se do Ministério para mero quartel-general das suas actividades políticas[5]. O certo é que a sua progressiva notoriedade e as variadas intervenções políticas, em especial, o discurso na Conferência da União Nacional, em 11 de Novembro de 1945 – definindo a «plataforma de reunificação das forças»[6] – elevaram, nas palavras do próprio, o Ministro das Colónias «a seguir ao Presidente do Conselho, a principal figura política do Governo»[7].
No Ministério, procurou «pôr em marcha providências que a visita tinha demonstrado serem necessárias»[8], nomeadamente a linha aérea imperial, ligando Lisboa a Luanda e Lourenço Marques, para cuja preparação convocou o tenente-coronel Humberto Delgado, então responsável do Secretariado da Aeronáutica Civil, na Presidência do Conselho[9]. Em finais de 1945, recordou a Salazar que a proposta de lei com as alterações da Carta Orgânica do Império continuava apenas dependente da «necessária» aprovação (política)[10]. Satisfeita esta condição, a proposta foi aprovada na Assembleia Nacional por via de uma (invulgar) “moção” – congratulatória e de «aplauso ao espírito ponderadamente descentralizador que informa a proposta do Governo»[11] -, e publicada como Lei n.º 2016, de 29 de Maio de 1946. As alterações, algumas bastante extensas, incidiram sobre quase trinta artigos. Conforme sintetiza o relatório inicial, podiam agrupar-se em três núcleos. Um primeiro grupo revestia a «maior importância política» e incidia no alargamento da descentralização dos poderes do Governo Central concedidos aos governos coloniais; um segundo grupo abrangia a orgânica do governo nas colónias; o terceiro grupo incluía os simples aperfeiçoamentos de técnica legislativa. Em resumo, esta reforma da Carta Orgânica do Império reforçou a descentralização administrativa: deu maior autonomia aos governos locais, criou a figura de secretários-gerais em Angola e Moçambique, modificou o sistema de elaboração dos orçamentos provinciais e delegou alguns poderes do Ministro nos governadores[12].
Entretanto, o Decreto n.º 35.461, de 22 de Janeiro de 1946, viera regular o regime jurídico do casamento nas colónias. Previa o casamento canónico celebrado entre «elementos civilizados residentes em território colonial» e também – facilitando «ao máximo a acção das missões religiosas quanto à população indígena» – a obrigatoriedade do registo do casamento entre indígenas e entre indígena e não indígena, como requisito da constituição da “família indígena”. Em 19 de Maio, Marcelo Caetano proferiu o discurso inaugural do Congresso Comemorativo do Quinto Centenário do Descobrimento da Guiné, organizado pela Sociedade de Geografia, de que era um dos dois Presidentes Honorários[13]. O último acto ministerial relevante foi a reforma da Escola Superior Colonial, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 35. 885, de 30 de Novembro de 1946, dotando-a de um novo plano de estudos com dois cursos, Administração Colonial e Altos Estudos Coloniais. A reforma tinha-se arrastado por dois anos; Marcelo queixou-se da multiplicidade de projectos que tivera de preparar, das reservas de Salazar (quanto à categoria superior da escola e ao ensino de árabe e de sânscrito) e da demora na sua aprovação final.
Em seguida, decidiu limitar-se às questões do dia-a-dia da política e da administração por já lhe faltar «ânimo para reformar o Ministério…»[14]. Quanto à correspondência que, enquanto Ministro das Colónias, trocou com Salazar até fins de Janeiro de 1947 abordou, sobretudo, o deficiente funcionamento do Conselho de Ministros, os boatos de recomposição ministerial, e o aparecimento de perturbações relacionadas com o Estado da Índia e o estatuto de Goa. De seguida, interveio activamente na remodelação ministerial de Fevereiro de 1947, em que acabou substituído por Teófilo Duarte. Discursando no acto de posse da nova comissão executiva da União Nacional, em 4 de Março de 1947, Salazar destacou, logo de início, que Marcelo Caetano «expressamente se ofereceu para abandonar a pasta das Colónias (onde poderia por alguns anos ilustrar o seu nome, servindo o Império), com o intuito de trazer para este campo [como Presidente da Comissão Executiva da União Nacional] tanto da sua inteligência e capacidade de trabalho como da sua fé nos destinos da Revolução Nacional»[15].
Na opinião de José-Augusto França, o declínio do Estado Novo – que começara verdadeiramente a 8 de Maio de 1945, com as manifestações livres feitas às Democracias aliadas vencedoras do nazismo – terminou efectivamente a 4 de Fevereiro de 1947, com esta remodelação governamental em que Marcelo Caetano colocou vários amigos e passou do Ministério das Colónias para a União Nacional [16]. Tornara-se “o delfim” ou, até, provável sucessor de Salazar[17]. Fernando Rosas di-lo de outro modo: por via de uma teia de «aproximações e cumplicidades», sobretudo com antigos alunos e amigos pessoais, o “marcelismo” começava a organizar-se «enquanto “partido informal” dentro do regime»[18].
 
10.                       O saldo e a carreira
Como Ministro das Colónias, Marcelo Caetano prosseguiu uma política de modernização imperial, embora limitada, conjugando integração e diferenciação, ou seja, tentou pensar o Império como (parte de) um Estado. Reforçou a capacidade de intervenção do Banco Nacional Ultramarino e dos organismos de coordenação económica, apostou na renovação da elite dirigente, investiu no conhecimento científico para realizar uma “colonização livre regulada”, preparou novos sistemas de transporte e de comunicação imperiais, pressentiu os primeiros sinais da descolonização e atentou na importância da África Austral.
Não passou, porém, de uma modernização sem reformas. As revisões do Acto Colonial e da Carta Orgânica do Império Colonial Português, apesar de muito debatidas, não trouxeram nada de novo ao modelo de “unidade imperial” construído jurídica e politicamente no período de 1930-1933. As cautelosas sugestões do Parecer da Câmara Corporativa não foram acolhidas e, satisfazendo-se com pequenas alterações da Carta Orgânica do Império Colonial, pouco lhe interessou a revisão do Acto Colonial (aprovada durante a sua ausência em África). Por isso, apesar de um seu discípulo falar de “uma nova escola de política colonial”[19], a ideia de  autonomia administrativa apenas se traduziu no alargamento dos poderes do Governadores coloniais  e na nomeação de alguns altos cargos, continuando sujeita à tutela directa do Ministério das Colónias. Marcelo Caetano apoiou-se sempre em Salazar que, por sua vez, se limitou a controlar os processos à distância, minimizando a questão colonial (que só o preocupará quando, dentro em breve, tiver de enfrentar “o caso do Estado da Índia”).
Em qualquer caso, a estadia no Ministério das Colónias marcou o futuro de Marcelo Caetano. Em 1947, de regresso à vida académica, retomou o ensino do curso de Administração e Direito Colonial e, no ano seguinte, publicou o livro Portugal e o Direito Colonial Internacional[20]. Depois, nas lições que ministrou ao curso de 1949-50, expôs desenvolvidamente a legislação colonial portuguesa – nas perspectivas das “Fontes do Direito Colonial Português” e da “Organização Administrativa Colonial” – e fez as primeiras considerações públicas sobre a eventual evolução do Império Colonial Português para um regime federativo[21]. Publicou também sob a forma de opúsculo, um resumo da experiência colonial portuguesa, explicando os quatro princípios da moderna administração colonial: a)- unidade política; b)- assimilação espiritual; c)- diferenciação administrativa; e d)- solidariedade económica[22].  
Também prosseguiu na carreira colonial, sendo reeleito vogal do Conselho do Império Colonial (1946) e designado administrador do Banco Nacional Ultramarino (1948). Em 1949, nomeado Presidente da Câmara Corporativa, regressou à “Alta política” colonial – para se opor, embora sem êxito, à revogação do Acto Colonial e ao reforço da política integracionista. Em 1952-1953, realizou na Associação Comercial do Porto um curso sobre “Os Nativos na Economia Africana” – considerando-o tão mais oportuno quanto a opinião metropolitana estava «a ser influenciada por um renovo das velhas doutrinas da assimilação integral das províncias ultramarinas ao regime europeu»[23]. Ainda em 1953, iniciou o exercício de funções como Vice-Presidente do Conselho Ultramarino, nomeado pelo Ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, que em 1945 tinha escolhido para Governador da Guiné[24].  
Em 1955, publicou na revista O Direito o extenso artigo “A Constituição de 1933 – Estudo de Direito Político”, onde expunha como, depois da revisão de 1951, ela passara a aplicar-se não só à Metrópole como, em certos termos, ao Ultramar, embora não desenvolvesse especificamente esta última matéria, remetida para o Direito Ultramarino[25]. Em Julho, foi nomeado Ministro da Presidência, pelo que, durante três anos, interrompeu de novo a sua actividade universitária. A 14 de Agosto de 1958, despedindo-se de Salazar por via epistolar, comunicou-lhe ter encerrado a sua vida política[26].
Em 1962, foi consultado, na qualidade de ex-Ministro das Colónias, sobre uma proposta confidencial apresentada por Sarmento Rodrigues, Governador-Geral de Moçambique, visando uma substancial revisão do sistema governativo das províncias ultramarinas, em especial Angola e Moçambique. Animado pelo seu consolidado pensamento jurídico-político, Marcelo Caetano foi além do proposto e aventou uma solução federal do problema colonial português, mediante uma modificação constitucional restrita à forma de Estado. Mas, ao formular essa solução discretamente, como resposta académica a uma consulta pessoal e de alcance reservado, cometeu um erro com consequências imprevistas e prolongadas: (i) quer imediatas (porque o seu “Memorial” foi logo escamoteado quando apareceu inopinadamente na sessão extraordinária do Conselho Ultramarino, realizada em Outubro de 1962, como se fora um parecer para nele ser considerado), (ii) quer em 1968 (porque a sua “recuperação” pelos adversários pesou na nomeação como Presidente do Conselho), (iii) quer em 1971 (porque o seu passado federalista obnubilou a proposta de revisão constitucional), (iv) quer em 1974 (porque a reapropriação do federalismo no livro de Spínola Portugal e o Futuro acelerou a sua derrota e exílio) – como aqui sustentei[27].
Já no fim da vida reconheceria amargamente que toda a sua actuação de governante «foi condicionada pela questão ultramarina»[28]. Tal como Amílcar Cabral dissera a propósito de Salazar, também se pode concluir que, sob um ponto de vista político, Marcelo Caetano «morreu, como se sabe, doente da África»[29].     
 
António Duarte Silva


[1] Oliveira Salazar, “Votar é um grande dever”, in Discursos e Notas Políticas – IV – 1943-1950, Coimbra Editora Limitada, 1951, pp. 169,
[2] Cfr. Marcello Caetano, Minhas Memórias.., cit., pp. 236/239 e 243/245, respectivamente.
[3] Ibidem, p. 250.
[4] Manuel Maria Múrias, De Salazar a Costa Gomes, Lisboa, Nova Arrancada, 1998, p. 177.
[5] Ibidem, p. 180.
[6] Fernando Rosas, “ O marcelismo ou a falência da política de transição no Estado Novo”, in J. M.. Brandão de Brito (coord.), Do marcelismo ao fim do Império, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, pp. 20/21.
[7] Marcello Caetano, Minhas Memórias… , cit. p. 277.
[8] Ibidem, p. 253.
[9] Ibidem, pp. 255/256. O voo inaugural da Linha Aérea Imperial realizou-se a 31 de Dezembro de 1946.
[10] Carta de 18 de Dezembro de 1945, apud José Freire Antunes, op. cit., pp. 171/172.
[11] Cfr. Diário das Sessões, n.º 53, de 22 de Março de 1946, p. 924
[12] André Gonçalves Pereira, Administração e Direito Ultramarino, Lisboa, AAFDL, 1971, p. 169.    
[13] “Discurso do Senhor Ministro das colónias, Prof. Doutor Marcelo Caetano”, in Sociedade de Geografia de Lisboa (org.), Congresso Comemorativo do Quinto Centenário do Descobrimento da Guiné, Volume I, Lisboa, 1946, pp. 29-35.   
[14] Marcelo Caetano, Carta a Salazar, de 23 de Setembro de 1946, apud José Freire Antunes, op. cit., pp. 192/193.
[15] Oliveira Salazar, “Governo e Política”, in Discursos e Notas Políticas – IV – 1943-1950, cit., p. 266. Divergindo, para Luís Menezes Leitão, op. cit., Marcelo Caetano teve ao tempo «enormes conflitos com Salazar, que se recusava a abandonar o seu tradicional imobilismo» (p. 263) e dedica mesmo um Capítulo aos “Sucessivos desafios a Salazar e saída do Ministério das Colónias» (pp. 273 e segs.).
[16] José-Augusto França, O «Ano XX» - Lisboa, 1946. Estudo de Factos Socioculturais, cit., p. 12.
[17] Franco Nogueira, Salazar – O Ataque (1945-1958), Vol. IV, Coimbra, Atlântida Editora, 1980, p, 66. Também, Vasco Pulido Valente, op. cit., p. 34.
[18] Fernando Rosas, “O marcelismo ou a falência…”, cit., in loc. cit., pp. 22/25.
[19] Álvaro da Silva Tavares, in Jaime Nogueira Pinto (org.), Salazar visto pelos seus próximos (1946-68), Venda Nova, Bertrand Editora, 1993, p. 196.
[20] Nas 4 edições subsequentes, o livro passou a intitular-se Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos.
[21] Marcelo Caetano, Administração e Direito Colonial (Apontamentos das lições ao 3.º ano de 1949-1950, coligidas por Arminda Vilares Cepeda e A. J. Viana Rodrigues), publicação da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, com a revisão do Professor da cadeira.
[22] Idem, Tradições, princípios e métodos da colonização portuguesa, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1951. 
[23] Idem, Os nativos na economia africana, Coimbra Editora, 1954, p. 6.
[24] Ver “Conselho Ultramarino – Posse do novo vice-presidente Prof. Dr. Marcelo Caetano”, in Boletim Geral do Ultramar, n.º 333, 1953, pp. 17/19.
[25] Com separata e posteriormente ampliado para livro, 1.ª edição em 1956 e 2.ª edição em 1957.
[26] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., p. 585.
[28] Marcello Caetano, Depoimento, cit., p. 17.
[29] Amílcar Cabral, “O povo da Guiné e Cabo Verde perante a ONU”, in Obras escolhidas de Amílcar Cabral, Volume II, Lisboa, Seara Nova, 1977, p. 196.



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