domingo, 22 de abril de 2018

O horror sem contexto.


 
 
         A fotografia considerada este ano pela World Press Photo Foundation como a melhor de 2017 mostra um homem a arder. O homem corre. Traz uma máscara anti-gás. As chamas intensas atingem-no nas costas, na cabeça e avançam para a parte dianteira do corpo. O homem corre com o braço direito à frente, a mão aberta, os dedos voltados para baixo. (Fig.1)
 
 
 
 
         A fotografia não nos indica quem é o homem, porque arde, onde está; precisamos, como observadores, que acrescentem toda a informação contextual, que nos digam que se trata de José ctor Salazar Balza, de 28 anos, “ardendo por entre recontros violentos com a polícia de choque durante um protesto contra o presidente Nicolás Maduro, em Caracas, Venezuela. Salazar incendiou-se quando o tanque de combustível de uma motorizada explodiu. Ele sobreviveu ao incidente com queimaduras de primeiro e segundo graus.” A fotografia é de Ronald Schemidt, da Agência France Presse, baseado no México, que a intitulou “Crise na Venezuela”.
 
Embora a Venezuela não esteja em guerra, nem mesmo em guerra civil, esta é uma fotografia de guerra. É, formalmente, bastante simples — meio caminho andado para a sua qualidade geral. As cores dominantes são o amarelo das chamas e o vermelho delas e da luz que projectam, nomeadamente sobre uma parede de tijolos vermelhos e umas portinholas que, se não são encarnadas, encarnadas ficam com a luz do fogo. As chamas prolongam-se, formam um rasto e, ao fundo, há também chamas para lá dum gradeamento.
        
O homem, que a máscara torna anónimo, corre da esquerda para a direita, do passado para o futuro. Corre para longe do mal, do fogo. Corre na mesma direcção da pistola pintada na parede de tijolos. Essa pistola aponta o futuro, negro como o passado no canto oposto. É uma pequena pintura mural irónica: a pistola dispara a palavra “paz”. O homem também esteve no meio da violência e foge agora da violência em busca de paz. A mão direita do homem mimetiza a posição e a orientação da pistola. É uma mão que pensaríamos fazer um gesto delicado se não percebêssemos que é um gesto de medo e dor. Para onde a pistola vai, vai a mão do homem. Entre aquele passado e aquele futuro, no presente passa um homem que arde. A imagem faz recordar as fotografias de monges asiáticos imolando-se como forma de protesto, pesadelos visuais que nos perseguem há mais de meio século. Numa ou noutra, os suicidas ficam quietos no seu sacrifício, mas em 2012 um homem que se imolou teve o mesmo gesto do venezuelano: correr, fugir do fogo que se cola às roupas, que em breve capturará a pele, o corpo. Fugir do próprio corpo. (Fig.2)
        
 

 
 
Ao contrário dos monges asiáticos, o venezuelano não se imolou. Pela fotografia, não o sabemos, mas adivinha-se. O movimento do corpo de José Salazar acompanha a diagonal entre o canto inferior esquerdo e o canto superior direito; o braço visível acompanha o sentido da diagonal inversa. Esse posicionamento dá equilíbrio à imagem. Verticalmente, as duas metades contrastam claramente, o que dá uma nitidez de significado à imagem: de um lado as chamas, do outro a parede vermelha.
        
Apesar do horror da situação, é o elemento estético o que motiva a escolha como foto do ano. A presidente do júri, Magdalena Herrera, disse que “é uma foto clássica, mas tem uma energia e dinâmica instantâneas. As cores, o movimento, e está muito bem composta, tem força.” Imagem clássica: no centro de “Escapan entre las llamas”, um dos Desastres da Guerra, de Goya (cerca de 1810-14), também um homem corre com as chamas atrás, na mesma posição de José Salazar, ambos irreconhecíveis, ambos em locais não identificáveis. (Fig.3)
 
 

    
     Whitney C. Johnson, outro membro do júri, disse que a fotografia é “muito simbólica”, pela presença da máscara na cara do homem. “Ele acaba por representar não apenas ele mesmo e ele mesmo ardendo, mas como que esta ideia da Venezuela ardendo”. Eman Mohammed, um terceiro membro do júri, igualmente sublinhou o simbolismo da fotografia: “ela dá-nos aquele sentido de mais poder para o povo. Para os que se pronunciam.”
 
         Compreende-se que os jurados tenham justificado o prémio acentuando o valor simbólico da imagem; tem sido habitual as fotografias premiadas apresentarem mais contexto da situação retratada do que esta.
 
         Mostrar os referentes e simbolizá-los, atribuir-lhes significado(s), é uma característica bastante associada ao foto-jornalismo; todavia, tem sido mais frequente que a imagem singularize um detalhe da realidade, conseguindo, ao mesmo tempo, mostrar uma parte mais ampla dessa realidade. Isto é, ao observá-la sabemos ou intuímos o onde e o quando do evento. Nesta foto, há apenas o horror de um homem que arde, sem que se possa contextualizar. A imagem é de tal forma reveladora do horror que o júri optou por escolhê-la. Todavia, é uma fotografia que necessita, mais do que outras, da âncora do texto verbal: quem é o homem, onde está, quando foi isto, o que aconteceu e, até, o que lhe aconteceu. Ela não responde a nenhuma das perguntas a que o jornalismo deve responder e, por extensão, o fotojornalismo: quem, quando, onde, o quê e porquê. O observador fica de tal forma longe da realidade ampla em que o evento mostrado se enquadra que a fotografia não chega a tornar-se “exemplar”, ou parte do todo, sem a ajuda da muleta verbal.
 
         A fotografia de Ronaldo Schemidt é magnífica, mas precisa de ser demasiado explicada. Ela poderá revelar uma tendência do foto-jornalismo semelhante à do jornalismo escrito: menos referencial, mais “opinativo”. Para quê transmitir factos — que se assume, erradamente, que já “todos” conhecem e que se assume, erradamente, que não é preciso referi-los— quando basta transmitir linguagem simbólica e opinada sobre esses factos? Nesta fotografia, por ser fotografia, a opinião está escondida no simbolismo. A imagem impõe que se interprete apenas a carga simbólica e através dela, porque não há suficientes referentes à vista. O próprio título é “geral” — “A Crise na Venezuela”, demasiado abstracto para uma fotografia de jornalismo, de reportagem, que “tem de narrar um evento”, como refere o regulamento do prémio.
 
         Na contemporaneidade, a comunicação, escrita e visual, está de tal modo carregada de tropos, de símbolos, que acaba por prescindir-se do referencial, do que liga as mensagens ao mundo real. Esta fotografia poderosa não perde nada da sua qualidade icónica, mas a sua escolha como foto do ano alimenta a inquietação sobre caminhos do jornalismo e do foto-jornalismo no nosso tempo.
 
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 20 de Abril de 2018
 

 

 

 

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